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n.1 2022 DOSSIÊ CIDADES AFRICANAS Volume 1: Cidades e arquiteturas na África Laje é uma publicação semestral do ¡DALE! – Decolonizar a América Latina e seus Espaços, grupo de pesquisa vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. Dedica-se ao giro decolonial latino-americano, às epistemologias do sul e à descolonização do conhecimento, priorizando uma produção transdisciplinar em interseção com diferentes dimensões do urbanismo, da paisagem e da arquitetura. ISSN: 2965-4904 Laje, número 1, 2022. Dossiê Cidades Africanas. Volume 1: Cidades e arquiteturas na África ISSN: 2965-4904 Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia R. Caetano Moura, 121 - Federação, Salvador - BA, CEP 40210-905 Editores-Chefes Comitê editorial Leo Name Tereza Spyer Adriana Caúla Bruna Otani Ribeiro Céline Veríssimo Frank Andrew Davies João Soares Pena Larissa Fostinone Locoselli María Camila Ortiz Mariana Malheiros Murad Jorge Mussi Vaz Oswaldo Freitez Carrillo Rodrigo da Cunha Nogueira Alex Schlenker (UASB, Equador) Alfredo Gutiérrez Borrero (UTADEO, Colômbia) Ana Paula Alves Ribeiro (UERJ, Brasil) Ana Paula Baltazar (UFMG, Brasil) Andréia da Silva Moassab (UNILA, Brasil) Bianca Freire-Medeiros (USP, Brasil) Carolina Bracco (UBA, Argentina) Christian León (UASB, Equador) Cláudio Rezende Ribeiro (UFRJ, Brasil) Cristiane Checchia (UNILA, Brasil) Joaquín Barriendos (UNAM, México) Luciana da Silva Andrade (UFRJ, Brasil) Maria Estela Ramos Penha (UNIME, Brasil) Rita de Cássia Martins Montezuma (UFF, Brasil) Yasser Farrés Delgado (USTA, Colômbia) Concepção do design Editaram esse número Adriana Caúla Oswaldo Freitez Carrillo (coord.) João Soares Pena Leo Name María Camila Ortiz Céline Veríssimo João Soares Pena Murad Jorge Mussi Vaz Equipe de produção editorial Design final e projeto gráfico Oswaldo Freitez Carrillo Coordenação gráfica Leo Name Oswaldo Freitez Carrillo Editoração Oswaldo Freitez Carrillo Capa Leandro Ferreira Marques Tayná Almeida de Paula Colaboraram com esse número AbdouMaliq Simone Andréia Moassab Ângela Cristina de Branco Lima Mingas Bill Freund Céline Veríssimo David Viana Djamila de Sousa Henrique Cunha Junior João Soares Pena Lesley Lokko Luís Lage Malindi Neluheni Nnamdi Elleh Murad Jorge Mussi Vaz Patti Anahory Wacy Zacarias Traduziram nesse número Ana Mazzolini Céline Veríssimo Hugo Manuel Abreu Tomás Luís Paulo da Silva Almeida DOSSIÊ CIDADES AFRICANAS Volume 1 Cidades e arquiteturas na África número 1 - 2022 Sumário Apresentação da revista Laje: 9 ou quando um grupo de pesquisa decide tomar as rédeas de sua própria produção de conhecimento Leo Name; Tereza Spyer Editorial Cidades africanas: cidades e arquiteturas na África 24 Céline Veríssimo; João Soares Pena; Murad Jorge Mussi Vaz Entrevistas Decolonizar a educação em arquitetura, superando capital, raça e género com generosidade 38 Entrevista com Lesley Lokko A “praxis errante” e a multiplicidade das arquiteturas africanas 60 Entrevista com Patti Anahory Ensinos e práticas em arquitetura, urbanismo e território em Moçambique Entrevista com Luís Lage 80 artigos A vida urbana emerge em África 106 Bill Freund; Cidades africanas em 6000 anos de africanos construindo cidades: 148 rupturas conceituais e paradigmáticas Henrique Cunha Junior Cidades em Angola: 174 entre o conflito de urbanidades e a necessária mudança sde paradigma Angela Cristina de Branco Lima Mingas O desenvolvimento urbano do apartheid 206 Malindi Neluheni Ler a arquitetura das classes desprivilegiadas 232 Nnamdi Elleh Refazendo cidades africanas 262 Abdou Maliq Simone Ensaio Caminhos tecidos 292 Wacy Zacarias ; Djamila De Sousa Resenha Aprendendo com as cidades africanas a partir de “The history of African cities south of the Sahara: from the origins to colonization”, de Catherine Coquery-Vidrovitch David Viana 308 Apresentação da revista Laje: ou quando um grupo de pesquisa decide tomar as rédeas de sua própria produção de conhecimento Leo Name Líder do ¡DALE!, PPG-AU / FAUFBA Tereza Spyer Vice-Líder do ¡DALE!, PPGICAL / UNILA, PPGHIS / UNILA Este texto tem como tarefa apresentar a revista Laje, de que a leitora ou o leitor tem o primeiríssimo número diante de si. Tal periódico resulta de inúmeros esforços das pesquisadoras e dos pesquisadores do grupo de pesquisa Decolonizar a América Latina e seus Espaços (¡DALE!), que lideramos. Criado e cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq, em 2016, e inicialmente sediado no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (CAU UNILA), em Foz do Iguaçu, no Paraná, o ¡DALE! migrou, em 2021, para a Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA) e seu Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPG-AU/FAUFBA), em Salvador. Como seu nome indica, o ¡DALE! tem o giro decolonial em seu foco. Tal debate emergiu no Brasil somente nos últimos anos, mas no restante da América Latina, no Caribe e nos Estados Unidos tem projeção desde a década de 1990. Posto que, por aqui, “decolonial” é um termo da moda que, parece-nos, vem sendo crescentemente esvaziado de sentido, convém esmiuçar o que em nosso grupo de pesquisa consideramos como potências e contradições desta abordagem. Avaliamos, por um lado, que o giro decolonial é uma continuidade a um vasto legado de debates críticos conduzidos por intelectualidades latino-americanas e caribenhas, como a teoria da dependência, a pedagogia do oprimido, a filosofia e a teologia da libertação, os estudos da negritude e, no campo de arquitetura e urbanismo, até mesmo o regionalismo crítico. Por outro, que necessariamente mantém diálogo com outras abordagens, policardinais, que lhe são contemporâneas ou que o antecederam, como os escritos anticoloniais, pós-coloniais e contracoloniais, os estudos subalternos, a ecologia política, os diferentes feminismos não brancos e as epistemologias do sul, por exemplo (GROSFOGUEL, [2000] 2013; ARAVECCHIA-BOTAS, 2018; FARRÉS [2016] 2020; NAME, 2021). p. 10 No entanto, de modo sumário se pode dizer que a singularidade do enfoque decolonial está na sua capacidade de organizar e sintetizar tantos debates distintos, mas convergentes, em torno do conceito de colonialidade. Anibal Quijano (1992; 1999; 2000) o definiu como uma ordem diferencial hierárquica baseada na ideia de “raça”, cuja racionalidade específica é o eurocentrismo. Para o sociólogo peruano, a colonialidade organiza tempos e culturas, povos, “raças” e comunidades do mundo, tanto do passado como do presente, em um metarrelato no qual a sociedade industrial branco-burguesa é o ápice de todo o processo. Assim, o que em cada contexto geo-histórico é entendido como distinto da brancura ou da branquitude é concebido não só como inferior e bárbaro, mas também como anterior, de um estágio primitivo ou de uma “tradição” a ser deixada para trás. Por outras palavras, a colonialidade não se refere a quaisquer opressões: a “raça” – que é invenção, mas que opera hierarquias, subalternidades e toda sorte de violências –, é seu cerne. Assim, pensamos que não há abordagem decolonial sem que a dimensão racial esteja em cena. Somam-se a esse debate fulcral da colonialidade outros dois. Um deles, sobre a naturalização do eurocentrismo, racista e patriarcal, inerente a uma modernidade concebida como desdobramento da invasão das Américas, tem sido conduzido pelo filósofo argentino Enrique Dussel (2000; 2018). O outro, presente em textos como os do semiólogo também argentino Walter Mignolo ([1999] 2015a; [2013] 2015b), volta-se ao desvelamento da lógica perversa por trás de uma geopolítica do conhecimento, ancorada no racismo epistêmico, que apresenta os saberes norte-atlânticos, eurocentrados, como aplicáveis a quaisquer tempos e lugares; e que, ao mesmo tempo, subalterniza, expropria e descarta formas-outras de conhecimento (não modernas e/ ou normalmente racializadas fora da branquitude) – o que torna urgente a disputa em torno da concepção, da produção, da partilha e da circulação de saberes. Há que destacar, porém, talvez por sua literatura fundacional ser primordialmente de intelectuais da crítica literária, da filosofia e da sociologia, que o giro decolonial é bastante desatento às dimensões espaciais também muito presentes na produção de colonialidades (ESCOBAR; VERÍSSIMO, 2020; FARRÉS; CUNHA; NAME, 2020; GUTIÉRREZ; NAME; CUNHA, 2020; MOASSAB; RUGERI; FREITEZ; NAME, 2020; NAME, 2021) – que, por óbvio, são de interesse do ¡DALE!. Seus escritos também dão mais centralidade à análise de questões, conflitos e cosmologias relacionados a grupos indígenas – particularmente os andinos, haja vista a projeção político-acadêmica das noções de buen vivir e vivir bien. Não dão a mesma atenção às dinâmicas afrodiaspóricas e de grupos negros minoritarizados, o que é particularmente problemático nos países onde os legados simbólicos e materiais advindos de matrizes africanas e o racismo estrutural contra afrodescendentes são mais evidentes e com marcas mais permanentes – como é o caso da Colômbia, de Cuba, da República Dominicana, da Venezuela e, evidentemente, do Brasil. Tal apresentação sobre o giro decolonial nos auxilia na exposição despretensiosa de alguns dos motivos para a criação de nossa revista – dado que mediante sua produção e sua publicação queremos tanto albergar quanto tensionar a abordagem decolonial –, mas houve mais porquês que nos levaram a construir a Laje. Voltemos, então, a refletir sobre o ¡DALE!, contando a história deste grupo que lideramos, e cuja síntese visual está na Linha de Tempo que é a Figura 1. p. 11 Figura 1: Linha do Tempo – síntese da trajetória do grupo de pesquisa ¡DALE! (2016-2023). Fonte: elaboração própria (2023). Figura 2: Mapa da atual rede de pesquisadoras/ es e colaboradoras/es do grupo de pesquisa ¡DALE! (sem escala). Fonte: elaboração própria (2023). A despeito de sua localização geográfica e institucional e de seu cadastro no Diretório do CNPq na área de Arquitetura e Urbanismo, o ¡DALE! atua a partir de uma rede transdisciplinar, transterritorial e transinstitucional de intelectuais – ver Figura 2 –, com pesquisadoras e pesquisadores que entrelaçam tal campo a um escopo mais amplo de literaturas, metodologias e pedagogias, particularmente produzidas na América Latina e no Caribe e a seu respeito. Têm como ponto em comum o questionamento dos legados nefastos do colonialismo e do patriarcado racista que se mantêm desenhando dimensões objetivas, subjetivas e intersubjetivas das realidades socioespaciais, uma vez que possuem diferentes graus de interesse voltados à produção de saberes, à formação de quadros e à divulgação científica em torno da decolonialidade. Contam, para isso, com três linhas de pesquisa: Decolonizar Imagens, Cartografias e Narrativas 1 da América Latina e do Caribe; Decolonizar os Ensinos do Espaço e os Espaços de 2 Ensino da América Latina e do Caribe; e Decolonizar Paisagens, Territórios e Corpos da 3 América Latina e do Caribe. Recuando um pouco no tempo, foi a partir de 2018 que integrantes do ¡DALE! passaram a se reunir presencial e semanalmente em encontros bilíngues (português e espanhol), na UNILA, com vistas ao debate de textos decoloniais. Nesse ínterim, o grupo passou a dar ênfase à formação interna e à divulgação externa dos conhecimentos produzidos, formalizada em um projeto de extensão: ¡GENIAL! – Formação em Estudos Decoloniais, que objetiva ações relacionadas a temas, autoras e autores, epistemologias e metodologias decoloniais, incluindo cursos, seminários e colóquios presenciais ou on-line, além de publicações. Um exemplo precursor fora o Colóquio Universidade Insurgente, em 2016, ano de criação do grupo. Já no âmbito do ¡GENIAL!, em 2018, foram realizados o Colóquio Autonomía y Diseño, que debateu o livro homônimo de Arturo Escobar (2016), e uma Homenagem a Quijano, em ocasião de seu falecimento. Também em 2018, realizou-se uma leitura dirigida de textos sobre as distintas dimensões da colonialidade, aberta a quaisquer interessadas e interessados. Ainda em 2018, outra leitura dirigida, de El Lado Más Oscuro del Renacimiento, livro de Mignolo ([1995] 2016), foi organizada na forma de um curso de extensão, sediado na UNILA. Em 2019, solicitações externas ensejaram a criação coletiva do minicurso Insurgências Decoloniais: Geopolítica do Conhecimento para Outros Mundos Possíveis, que foi ministrado em três diferentes cidades e em três diferentes instituições: em Salvador, com apoio da UFBA, mais precisamente dos grupos de pesquisa Laboratório Urbano e Laboratório Coadaptativo, respectivamente liderados por Paola Berenstein Jacques e Fabiana Dultra p. 13 Britto; em Belo Horizonte, a convite dos grupos de pesquisa Morar de Outras Maneiras (MOM) e Laboratório Gráfico para Experimentação Arquitetônica (LAGEAR), liderados por Ana Paula Baltazar na Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais (EAU-UFMG); e, finalmente, em Foz do Iguaçu, na UNILA. Tais movimentos em torno da difusão da epistemologia decolonial aumentaram o diálogo do ¡DALE! com intelectuais e instituições. Assim, no segundo semestre de 2019, o grupo estava bastante ampliado, com pesquisadoras e pesquisadores de diversos lugares. Por conta disso, suas reuniões semanais ou quinzenais, estruturadas em sucessivos ciclos de debates (de 2019 a 2023, com as seguintes temáticas: Pedagogias Decoloniais; Giro Decolonial: Conceitos e Temas; Feminismos Decoloniais; Estéticas Decoloniais; Branquitude), passaram a ocorrer de forma remota – antes da pandemia de Covid-19, aliás –, objetivando atender a integrantes em doutoramento ou pós-doutoramento fora da UNILA ou que não pertenciam a essa instituição. Ao longo de 2020, durante o período de isolamento social, ocorreram transmissões ao vivo desses encontros para uma audiência virtual do canal do grupo no YouTube, tendo em mente uma maior divulgação e possibilidades de tradução do conhecimento 4 desprendidas do modelo de curso presencial: ao todo, foram 32 reuniões on-line. Também em 2020, de maneira bastante circunstancial, teve início um modo de atuação do ¡DALE!, talvez hoje o mais evidenciado do grupo, que culminou na criação da Laje. A convite do Laboratório Urbano – e como desdobramento do curso ministrado na UFBA e do pós-doutoramento de um de nós –, Leo Name, Tereza Spyer e Gabriel Rodrigues da Cunha organizaram uma edição temática sobre o giro decolonial na revista deste grupo (a Redobra, v. 6, n. 15, 2020 – Edição Temática: Insurgências Decoloniais). Tal volume contou com traduções de artigos e entrevistas de expoentes do giro: Arturo Escobar (Universidade Duke, EUA), Andréia Moassab (UNILA, Brasil), Alfredo Gutiérrez Borrero (UTADEO, Colômbia) e Yasser Farrés Delgado (Universidade São Tomás, Colômbia); textos inéditos a respeito do giro decolonial e em diálogo com outras epistemologias, assinados por Paola Berenstein Jacques (UFBA, Brasil), Rita Velloso (UFMG, Brasil), Ana Paula Baltazar (UFMG, Brasil), Luciana Andrade (UFRJ, Brasil) e Carolina Bracco (UBA, Argentina); e ensaios tangentes à decolonialidade, em sua maioria de estudantes do Laboratório Urbano. p. 14 O material originalmente produzido para o periódico da UFBA, contudo, era muito mais vasto que o publicado. O volume final da Redobra precisou descartar uma quantidade significativa de colaborações de pesquisadoras e pesquisadores do Brasil e do exterior. Por isso, a mesma equipe também editorou dois números da revista Epistemologias do Sul, uma publicação da UNILA coordenada por Marcos de Jesus Oliveira, líder de um grupo de pesquisa com o mesmo nome, a partir da celebração de um acordo que logo se revelou bastante frutífero. Tais volumes da Epistemologias do Sul (v. 3, n. 1, 2019 – Dossiê: Giro Decolonial – Parte 1: Artes visuais, Arquiteturas e Alteridades; e v. 3, n. 2, 2019 – Dossiê: Giro Decolonial – Parte 2: Gênero, Raça, Classe e Geopolítica do Conhecimento) foram lançados com datas retroativas, na verdade tendo sido produzidos e publicados no auge da primeira onda de Covid-19. Abrigaram o material excedente da Redobra e agregaram outros conteúdos, então reunindo entrevistas, traduções e artigos de nomes destacados, como Zulma Palermo (UNSA, Argentina), Julieta Paredes (Mulheres Criando Comunidade, Bolívia), Joaquín Barriendos (UNAM, México), Alex Schlenker (UASB, Equador), Christian León (UASB, Equador), Andréia Moassab (UNILA, Brasil), Cláudio Rezende Ribeiro (UFRJ, 5 Brasil) e Pedro Paulo Gomes Pereira (UNIFESP, Brasil), entre outras e outros. É importante destacar que, nessa ocasião, o design gráfico da revista Epistemologias do Sul foi totalmente reformulado, uma tarefa a cargo de Oswaldo Freitez (pesquisador do ¡DALE! e pós-graduando no PPG-AU/FAUFBA), na medida em que se compreendeu que conteúdo visual também é conteúdo epistêmico. Os dossiês sobre o giro decolonial na Redobra e na Epistemologias do Sul opor6 7 tunizaram uma mesa-redonda e dois colóquios, com transmissão ao vivo pelo YouTube, que reuniram parte das autoras e dos autores publicados (além de convidadas e convidados). Mais que isso, dado que este tão árduo quanto prazeroso trabalho de formulação, condução e transcrição de entrevistas, traduções, revisões de texto, alguma produção autoral e envio de mensagens a autoras e autores envolveu não somente a editora e os editores dos dossiês, mas também outras e outros integrantes do ¡DALE!, tal produção fez com que o grupo como um todo compreendesse, por um lado, que o giro decolonial que tanto valoriza também é valorizado por diferentes pessoas e outros grupos; e, por outro, que ainda mais importante é a produção criativa e autônoma de conhecimento. Dizendo de outro modo: a criação e a organização de propostas, a editoração, o design, a finalização e a publicação de tais dossiês temáticos nestas duas revistas fez com que nos percebêssemos cuidando do nosso próprio conhecimento e do conhecimento de outras e outros que estimamos; e, também, de modo nítido, nos entendêssemos conduzindo geopoliticamente tal conhecimento a contrapelo dos ditames euro e brancocentrados que decidem o que é conhecimento – de editais p. 15 de fomento à pesquisa a políticas editoriais e escopos de periódicos, passando por pareceristas que, convenhamos, várias vezes têm premissas e sugestões equivocadas. Munido deste entendimento, depois de ter sido responsável por dois números na revista Epistemologias do Sul, o ¡DALE! recebeu, em 2021, uma nova proposta de Oliveira: que a parceria fosse estendida, visto que o periódico estava com números atrasados. O resultado foi a produção de seis novos volumes, com diferentes temas, editoras e editores. O primeiro dessa nova leva está na Epistemologias do Sul, v. 4, n. 1, 2020 (Dossiê: Corpos e Sujeitos da/na Modernidade). Foi editorado por Oliveira e Spyer e traz um conjunto de artigos sobre a cisão entre sujeito e objeto operada pela tradição epis8 temológica ocidental ainda hegemônica nas produções acadêmico-científicas. Os dois volumes seguintes – Epistemologias do Sul, v. 4, n. 2, 2020 (Dossiê: Cineclube Cinelatino) e Epistemologias do Sul, v. 5, n. 1, 2021 (Dossiê: Deslocamentos Epistêmicos) – tiveram menor participação do ¡DALE!: ambos contaram com a coordenação gráfica de Name e Freitez (também levada a cabo nos números seguintes); e particularmente o primeiro teve Spyer como uma das editoras, com artigos relacionados a um projeto de extensão seu, voltado à exibição de filmes e à ampliação do cineclubismo e do 9 circuito de cinema independente em Foz do Iguaçu e sua região transfronteiriça. Na sequência, foram publicados dois volumes com a mesma temática: Epistemologias do Sul, v. 5, n. 2, 2021 (Dossiê: Feminismos Latino-Americanos, Ativismos e Insurgências – Parte 1) e Epistemologias do Sul, v. 6, n. 1, 2022 (Dossiê: Feminismos Latino-Americanos, Ativismos e Insurgências – Parte 2). Ambos foram editorados por Spyer e as pesquisadoras do ¡DALE! Ananda Vilela (PUC-Rio), Cynthia Montalbetti (UNILA), María Camila Ortiz (UNILA), Mariana Rocha Malheiros (UNILA) e Priscila Dorella (UFV), apresentando-se como espaços de enunciação em/desde/para o Sul de mulheres latino-americanas que, através da escuta dos seus próprios territórios, recuperam e ressignificam as experiências de lutas e resistências, contribuindo aos processos 10 emancipatórios da região. p. 16 Finalmente, o mais recente dossiê derivado desta parceria entre o ¡DALE! e a Epistemologias do Sul está no v. 6, n. 2, 2022 (Dossiê: Paisagens e Paisagismos do Sul). Foi editorado por uma pesquisadora e dois pesquisadores do ¡DALE! – Name, Rodrigo da Cunha Nogueira (UFOP) e Céline Veríssimo (UNILA) – e procurou problematizar tanto as conceituações de paisagem e paisagismo forjadas em meio a ambiguidades, indefinições e binarismos (sociedade/meio ambiente, cultura/natureza, produção/ representação e trabalho/arte, por exemplo) quanto as das variadas digressões sobre 11 o Sul, não menos imprecisas. Em meio à tamanha produção de dossiês – cuja síntese visual está na Figura 3, em que se apresentam todas as capas destas publicações –, e pelos motivos epistemológico-autonomistas já elencados, já havíamos decidido, desde 2020, que teríamos nossa própria revista. A partir daquele ano, Veríssimo, João Soares Pena (Ministério Público da Bahia) e Murad Vaz (UTFPR), integrantes do ¡DALE!, iniciaram os trabalhos rumo ao presente Dossiê Cidades Africanas, que inaugura a revista e contará com mais dois volumes. Ao mesmo tempo, outro grupo principiou a editoração de uma antologia de textos decoloniais, traduzidos do espanhol ao português, em dois volumes. Aguardem-na! A Laje é uma publicação do ¡DALE! de acesso universal livre, ilimitado e imediato a todas as suas publicações, que não estipula uma titulação mínima para a submissão de contribuições. Escolhemos seu nome em referência ao elemento estrutural das autoconstruções em favelas brasileiras, muitas das quais situadas em territórios de antigos quilombos. Além disso, essas lajes resultam de bastante conhecimento acumulado e transmitido no tempo, de trabalho profuso e de muita inteligência orientada ao improviso e às necessidades cotidianas – o que o projeto de design da publicação, mais uma vez a cargo de Freitez e equipe, tenta traduzir por elementos gráficos. Lajes também são projetos executados sem a ajuda de especialistas e que desafiam os binarismos de saberes mais hegemônicos e notadamente excludentes sobre a cidade e suas arquiteturas: legal/ilegal, formal/informal, cidade/favela, casa/rua, leigo/ experto (FREIRE-MEDEIROS; NAME, 2019). Chamar de Laje nossa revista sinaliza, enfim, ao menos duas de nossas preocupações: espacializar e enegrecer o giro decolonial. Por um lado, entendemos que a imposição militar, política, econômica, social, cultural e pedagógica que foi e tem sido o projeto discriminatório e predatório da modernidade não é algo abstrato, que ocorra tão somente no campo das ideias. Uma vez que a colonialidade se concretiza na ocupação, na transformação e na exploração de diferentes lugares, é pertinente pensá-la em diálogo com os saberes espaciais e sobre o espaço – ao que indubitavelmente se inclui a revisão dos fundamentos epistemológicos da arquitetura, do urbanismo, da paisagem e do planejamento do território, a partir de uma perspectiva decolonial. Por outro lado, uma decolonialidade “à brasileira”, se existe, naturalmente precisa se debruçar sobre os conflitos, as rotas de resistência e, sobretudo, os caminhos de esperança e emancipação dos grupos indígenas, mas também de grupos p. 17 afrodescendentes; além de esmiuçar o papel precursor de intelectuais indígenas, mas também de intelectuais negras e negros na luta anticolonial, antipatriarcal e antirracista. Não por acaso, tais diretivas se fazem presentes neste Dossiê Cidades Africanas: o desvio da América Latina e do Caribe à África e à diáspora africana é mais que necessário. A publicação pretende, portanto, dedicar-se ao giro decolonial latino-americano e caribenho, mas em um sentido ampliado – abarcando a multiplicidade de conhecimentos orientados à descolonização e de variadas localizações epistemológicas, mais ao Sul; e priorizando a produção transdisciplinar em interseção com as questões espaciais que, normalmente ausentes na abordagem decolonial, são caras ao campo de Arquitetura e Urbanismo com o qual a revista pretende promover interseções. Mais especificamente, a Laje quer se apresentar como uma radiografia, a cada momento e em cada volume, do estado-da-arte dos debates decoloniais e/ou de abordagens afins; e também – e sobretudo! – das discussões do grupo de pesquisa que a produz em meio a suas redes de colaboração, traduzindo-as a públicos mais amplos. Para isso, conta com um Comitê Editorial que também é transterritorial, transinstitucional e transdisciplinar e pretende priorizar dossiês temáticos em português e/ou espanhol relacionados às diretrizes e à atuação do ¡DALE!, editorados por equipes do grupo e/ ou da revista ou por comissão especialmente designada por convite. Rumando à finalização deste texto, assinalamos que a Laje faz parte da construção metodológica e epistemológica de nosso projeto de grupo de pesquisa. Fincado na divulgação científica e no debate epistemológico, o ¡DALE! tem como premissa estreitar laços com as comunidades acadêmica e não acadêmica. Uma revista eletrônica de perfil acadêmico propicia um diálogo estreito com as intelectualidades nacionais e internacionais – e, também, mais indiretamente, com movimentos sociais, ciberativistas e pessoas com interesse no giro decolonial. Isso pode tornar possíveis o fortalecimento e a divulgação dos debates sobre temas, perspectivas e problemas relacionados ao giro decolonial, particularmente como têm sido traduzidos nos contextos de pesquisa, extensão e ensino e especialmente nas inúmeras instituições nas quais o ¡DALE! possui integrantes. p. 18 Também destacamos, uma vez mais, que nossa Laje foi construída porque em 2020 alçamos a produção autônoma de nosso próprio material científico a uma condição estratégica. Como já apontou Eduardo Gudynas (2017), “sin nuestras propias revistas académicas latinoamericanas seríamos mudos”. Estamos de acordo com este enunciado do teórico ambiental uruguaio, seguido por outras e outros que, Figura 3: Capas das revistas Redobra, Epistemologias do Sul, com editoração e/ou participação do ¡DALE!, e da nova revista do grupo, Laje. Fonte: Oswaldo Freitez (2023). como nós, percebem o quão crucial tem sido, ao longo de várias décadas, o papel de inúmeras revistas acadêmicas da América Latina e do Caribe no tratamento e no rigor de seus temas específicos e no desenho de epistemologias próprias; e que, por isso, acusam de injustos e imprecisos os sistemas de indexação e os indicadores internacionais que tanto vêm descaracterizando as publicações da região, assim como de não haver nenhuma evidência de que ampliem quantitativa ou qualitativamente o acesso ao conhecimento (FALS BORDA; MORA-OSEJO, 2007; GOULART; CARVALHO, 2008; ALPERIN, 2013; NAME, 2020). Não sem fundamento se pode dizer, portanto, que as crescentes exigências para que se publique em revistas indexadas, preferencialmente em inglês – quase nunca questionadas, no Brasil, por Capes, CNPq, avaliações de pós-graduações e que tais –, posicionam intelectualidades e periódicos latino-americanos, caribenhos e de várias partes do Sul Global em profunda desvantagem. Além de efeitos de competividade, há implicações sobre o que se pode escrever e teorizar, na medida em que, por um lado, estimulam – e, em certa medida, determinam – que intelectuais das periferias pesquisem e publiquem sobre temas que, por serem de interesse científico em lugares centrais, não à toa são avalizados por tais sistemas de indexação e indicadores; e que, por outro, e consequentemente, reduzem as chances de urgências e emergências singulares de cada lugar ou comunidade específicos ganharem espaço de debate, tornando-as ausentes. Nossa proposta é outra: queremos ampliar espaços de discussão, traçar rotas novas ou complementares; escrever, pensar, imaginar e publicar de modos-outros; evitar o desperdício de ideias e experiências. Assim, desejamos que a Laje e, logo, o ¡DALE!, ao se abrirem a formas-outras de compreensão do mundo acadêmico e do conhecimento, e de como produzir seu próprio conhecimento no mundo acadêmico, possam vir a cumprir um papel insurgente e, quem sabe, transformador. Por que não? Referências ALPERIN, J. P. Ask not what altmetrics can do for you, but what altmetrics can do for developing countries. Bulletin of the American Society for Information Science and Technology, v. 39, n. 4, p. 18-21, 2013. GOULART, S.; CARVALHO, C. A. O caráter da internacionalização da produção científica e sua acessibilidade restrita. Revista de Administração Contemporânea, v. 12, n. 3, p. 835-853, 2008. ARAVECCHIA-BOTAS, N. O pensamento decolonial: caminhos para o ensino de arquitetura na América Latina. 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Busca revelar tanto as narrativas hegemônicas com base nas colonialidades do poder e do ver, suas estratégias de dominação e seus regimes de verdade e visualidade, quanto as narrativas subalternas, marginais e de resistência. 2 Objetiva revelar as colonialidades do poder e do saber que impregnam teorias e práticas ligadas ao ensino e à aprendizagem de disciplinas do espaço, em especial geografia, arquitetura, urbanismo e paisagismo; e que são reproduzidas nos espaços de ensino e aprendizagem latino-americanos e caribenhos, várias vezes sem tradução ou contestação e negligenciando as epistemologias latino-americanas e caribenhas e os saberes e as práticas de grupos minoritarizados. 3 Quer desvelar a colonialidade do poder e as colonialidades territorial e de gênero inerentes à multiplicidade de paisagens, territórios e corpos latino-americanos e caribenhos, com vistas ao enfrentamento das assimetrias de classe, raça, gênero e lugar. Leva em consideração proposições emancipadoras, como a ecologia política, a soberania alimentar, a justiça ambiental, o combate ao racismo ambiental, o buen vivir e os feminismos decoloniais. 4 Todas estas transmissões estão disponíveis no canal no YouTube do grupo: https://www. youtube.com/channel/UC0xIrsiOSSpz38dkrjdFEFw. 5 p. 22 Nos links http://bit.ly/giro_20191 e http://bit.ly/giro_20192, podem ser acessados e baixados os dois volumes da Epistemologias do Sul sobre o giro decolonial, ambos editorados por uma mesma equipe do ¡DALE!. 6 O lançamento de tal edição temática da revista Redobra ocorreu no formato de uma mesa-redonda com Yasser Farrés Delgado, Luciana Andrade e Rita Velloso. Para conferir o debate, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=YA1KZyFaWdM&t=1914s. 7 O lançamento dos supracitados números da revista Epistemologias do Sul tomou a forma de um colóquio com diferentes mesas temáticas. No Colóquio Virtual: Giro Decolonial, apresentaram-se Fran Rebelatto (UNILA, Brasil), Oswaldo Freitez (UFBA, Brasil), Alex Schlenker (UASB, Equador), Joaquín Barriendos (UNAM, México), Zulma Palermo (UNSA, Argentina), João Soares Pena (Ministério Público da Bahia, Brasil) e Pedro Paulo Gomes Pereira (UNIFESP, Brasil). Houve também, meses depois, o 2º Colóquio Virtual: Giro Decolonial, também com mesas temáticas e a presença de Ana Paula Alves Ribeiro (UERJ, Brasil), Carolina Bracco (UBA, Argentina), Christian León (UASB, Equador), Alicia Méndez Medina (UASB, República Dominicana), Gabriel Mantelli (USJT, Brasil), Lucía Castillo (àquele momento na UNILA, Colômbia/Brasil), Alfredo Gutiérrez Borrero (UTADEO, Colômbia), Bianca Freire-Medeiros (USP, Brasil) e Leo Name (àquele momento na UNILA, Brasil). Cf. https://bit.ly/coloquiogiro1 e https://bit.ly/coloquiogiro2. 8 9 Cf. https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/issue/view/203. Cf. https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/issue/view/222 e https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/issue/view/225. 10 Cf. https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/issue/view/228 e https:// revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/issue/view/264. Importa destacar que os números sobre feminismos foram elaborados a partir de tensionamentos e debates de dentro do próprio ¡DALE!, sejam durante as discussões de textos sobre Feminismos Decoloniais, das quais uma primeira leva foi realizada em 2019, sejam durante aquelas sobre Pedagogias Decoloniais e Giro Decolonial – Conceitos e Temas (ambas em 2020) e Estéticas Decoloniais (2021). As editoras se valeram principalmente dos questionamentos voltados à produção de/sobre/para mulheres como: onde estão as mulheres, especialmente as mulheres racializadas como não brancas, no giro decolonial? Como raça, gênero, classe e sexualidade se articulam e impactam na dicotomia modernidade/colonialidade? Como pensamos os ativismos, as insurgências e as manifestações de mulheres no Sul Global fora das construções feministas hegemônicas do Norte? 11 Cf. https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/issue/view/227. Os artigos guiam-se pela ideia de que abordagens sobre paisagens e paisagismos do Sul seriam aquelas capazes de transcender ou se desprender da ditadura do olhar ou do império da geometria, tornando-se encarnadas e localizadas – isto é, situadas em dimensões de gênero, raça, classe, etnicidade e em/desde/para a América Latina, o Caribe, a Ásia e a África. p. 23 Editorial Céline Veríssimo ¡DALE! / UFBA, MALOCA / UNILA, PPGPPD e CAU / UNILA, DAMG / UPT João Soares Pena ¡DALE! / UFBA, MPBA Murad Jorge Mussi Vaz DEAAU / UTFPR, ¡DALE! / UFBA, MALOCA / UNILA Cidades africanas: cidades e arquiteturas na África Qual é o impacto das histórias e das múltiplas contribuições africanas e afrodiaspóricas nas práticas socioculturais, simbólicas, técnicas, epistemológicas e ontológicas nos mais variados campos de saber, imbuídas nas noções de tempo, espaço, território, paisagem, arquitetura, arte e lugar nas cidades do continente africano, na América Latina, Caribe e no mundo? Organizamos este dossiê temático sobre cidades africanas precisamente porque estas contribuições têm sido historicamente obliteradas, invisibilizadas e apagadas através de relações de colonialidade, entre as quais o racismo é a mais onipresente (QUIJANO, 1999). Neste sentido, como rever as teorias urbanas que regem a práxis dominante (DELGADO; RUIZ, 2014), permitindo que as linhas abissais, que dividem a zona do ser da zona do não ser (FANON, 2020), desnudadas por Boaventura de Sousa Santos (2007), sejam tensionadas, evidenciadas e, em última instância, rompidas? n. 1 p. 24-35 2022 ISSN: 2965-4904 As questões acima constituem-se em múltiplas intersecções nascidas da invisibilização e do apagamento de saberes pelo epistemicídio infligido historicamente pelas epistemologias do norte (SANTOS, 2007; CARNEIRO, 2005) que corroboram, estruturam e perpetuam a herança colonial do racismo que, entre suas múltiplas manifestações, confronta-se e conforma-se no espaço urbano e arquitetônico, nos territórios, espaços e lugares de exclusão, segregação e violência nos dias de hoje e em todas as partes do mundo. No entanto, essas questões são contrapostas por resistências e insurgências, bem como, utopias, sonhos e transições. Anibal Quijano explica que “la idea de raza es, con toda seguridad, el más eficaz instrumento de dominación social inventado en los últimos 500 años” (QUIJANO, 1999, p. 141), encontrando-se subjacente às múltiplas hierarquias da universalidade de um só mundo no pensamento ocidental moderno. Assim, tudo o que foge da hegemonia branca heteronormativa eurocêntrica gera na sua gênese os conflituosos dualismos: natureza-humano; brancos-não brancos; homem-mulher; sul-norte; pobres-ricos; campo-cidade; legalidade-ilegalidade; centro-periferia; cidade formal-cidade informal, entre muitos outros que corrompem e destroem mundos outros. Sem dúvida, o caminho para a decolonização passa por eliminar a modernidade-colonialidade para um futuro pluriversal, “um mundo onde caibam outros mundos”, segundo o movimento Zapatista, onde os outrora oprimidos construiriam alianças políticas de luta entre si para celebrar a diversidade da vida. Buscando ampliar o debate Sul-Sul e a potencialidade em se aprender a partir de outras formas de ser urbano e de constituir espaços e lugares, para além do paradigma hegemônico ocidental, em 2020 iniciamos este dossiê que se apresenta composto por três números: I. Cidades e arquiteturas na África; II. Cidades e arquiteturas afrodiaspóricas; e III. Emergências. No primeiro e no segundo, as temáticas versam sobre o patrimônio arquitetônico, paisagístico e urbano, transversalizadas em cidades no continente africano e na diáspora, respectivamente, enquanto que o terceiro número observa mais de perto os contornos urbanos nas suas insurgências e emergências na luta contra as violências racistas, capitalistas e patriarcais da modernidade-colonialidade. Os três números, inevitavelmente, dialogam entre si e manifestam-se por complexos, diversos e dinâmicos contextos, procurando memórias, reflexões e comunalidades que nos possibilitem aprender a partir das zonas do não ser (FANON, 2020) que se situam do outro lado da linha abissal e mostram-nos caminhos para um futuro pós-abissal. Na modernidade-colonialidade, a presença negra nas cidades é obliterada e violentada pelo racismo estrutural. As cidades constituem-se por diversas camadas que se sobrepõem, resultado de acúmulos culturais ao longo do tempo. Para além de sua materialidade, as cidades também são formadas por aspectos imateriais, por práticas culturais que configuram territorialidades. Entretanto, há uma questão central em nossa sociedade que também é um agente de produção do espaço urbano, definindo elementos e sujeitos que têm sido sistemática e historicamente apagados no tecido urbano. No caso do Brasil, o país que, fora de África, conta com a maior população afrodescendente, o racismo tem definido, portanto, a conformação das cidades e suas dinâmicas. Apesar da grande influência e da importância da cultura negra para a própria constituição do Brasil, o processo de embranquecimento da população, entre finais do século XIX e começo do século XX, também se refletiu na cidade, ou melhor, p. 27 na ideia de cidade moderna almejada. Quando não suprimidos pela expansão urbana, como no caso dos terreiros de candomblé que têm perdido suas áreas na natureza, espaços ocupados pela população negra e marcados pela cultura afrodiaspórica são marginalizados e, frequentemente, criminalizados. Indo além dos espaços físicos e lugares, a contribuição social, cultural e simbólica africana e afrodiaspórica tem sido, historicamente, desconsiderada desde os discursos oficiais até a produção de teorias e conhecimentos acadêmicos. A presença negra é, então, resultado de movimentos de resistência e sobrevivência que, ao longo do tempo, têm sido decisivos não só para a permanência dessa população em determinados espaços da cidade, mas também para a continuidade de sua produção cultural contemporânea, onde quer que ela se manifeste. Trazemos para o debate os principais apontamentos, redefinições, questões teóricas e metodológicas, nos quais participaram mais de 30 autores e autoras das Américas, da África e da Europa. O ponto central deste dossiê foi, primeiramente, expandir a discussão sobre as cidades africanas e afrodiaspóricas e fazer circular ideias e práticas espaciais sob o olhar de autores e autoras, maioritariamente de origem africana. Partimos, indubitavelmente, de uma perspectiva decolonial urgente para ampliar a discussão sobre a questão racial na (re)produção de arquiteturas, campos e cidades, uma vez que, mesmo no giro decolonial, ainda nos parecem insipientes os vínculos com África e com as questões afrodiaspóricas. Ademais, também queremos contribuir para preencher a lacuna nos estudos decoloniais no que concerne às análises espaciais, territoriais e arquitetônicas da modernidade-colonialidade. p. 28 Este Dossiê cidades africanas – Volume 1: Cidades e arquiteturas na África que se apresenta neste primeiro número da Laje, reúne um conjunto de entrevistas, artigos, uma resenha e um ensaio a partir das cidades e territórios no continente africano, com implicações a serem interseccionadas com os demais territórios da diáspora negra. Além de obras originais, este volume conta com importantes textos pela primeira vez 1 traduzidos para o português. A partir das perspectivas apresentadas pelos autores e autoras, noções e conceitos como cidade, centro-periferia, territórios e lugares são tensionados. Isto permite que outras dimensões advindas dos variados contextos africanos contestem a continuidade e a hegemonia das epistemologias do Norte que ainda se perpetuam nas instituições, na produção de conhecimento e nas ações que incidem sobre e a partir das nações a serviço do capitalismo, do patriarcado e do colonialismo que caracterizam a modernidade-colonialidade. Este número inicia com a seção “entrevistas”. A primeira delas, sob o título “Decolonizar a educação em arquitetura, superando capital, raça e gênero com generosidade”, teve lugar em fevereiro de 2020, num café do Harlem, Nova Iorque, durante o qual Céline Veríssimo, professora da UNILA, pesquisadora do ¡DALE! / UFBA e do MALOCA / UNILA, convida a arquiteta ganesa-escocesa Lesley Lokko, diretora do African Future Institute, Acra, Gana e professora visitante na Escola de Arquitetura Bartlett, University College London, a discutir o papel tanto da disciplina quanto da profissão de arquitetura e urbanismo face à hegemonia ocidental e à universalidade e à sua tradição elitista (que rege tanto nossas práticas quanto nossas formações), partindo das suas experiências em África, na Europa e nos EUA. Conforme Lesley Lokko, as escolas, “neste momento, são a estratégia chave para a mudança,” sendo que a educação, para além de pensar o mundo, é, acima de tudo, uma forma de transformá-lo". Em suas reflexões, Lesley Lokko nos incita a pensar sobre a importância da imaginação, discutindo questões centrais como a legitimação de conhecimentos subalternos, o currículo escolar e os cânones ocidentais, as questões epistemológicas e culturais e o reconhecimento da potência das e dos estudantes que, historicamente, vieram de contextos que foram subalternizados. Na segunda entrevista, “A práxis errante e a multiplicidade das arquiteturas africanas”, conduzida em videoconferência no ano de 2021 por Andréia Moassab, professora do CAU / UNILA e líder do Grupo de Estudos MALOCA, à arquiteta cabo-verdiana Patti Anahory, da plataforma Storia na Lugar/Cabo Verde e docente da Columbia University/EUA, discute criticamente tanto a formação acadêmica quanto a prática profissional em arquitetura, através de uma narrativa franca e direta, partindo da sua trajetória pessoal como arquiteta mulher africana. Desde sua formação, nos EUA, até sua prática profissional como arquiteta e docente, além de diretora do Centro de Investigação em Desenvolvimento Local e Ordenamento de Território (CIDLOT) da Universidade de Cabo Verde, Patti Anahory tem proposto “um alargamento da compreensão de arquitetura e tensionar, propositadamente, algumas das limitações e insuficiências do ensino na área”, através de intervenções artísticas que ela denomina de uma “práxis errante.” Nas suas respostas e reflexões, Anahory discorre sobre a sua resistência às narrativas dominantes hegemônicas, na busca por desracializar, ressignificar e empoderar os sentidos, noções e práticas a partir do continente africano. Encerramos esta seção na forma de retrospectiva e balanço do ensino de arquitetura e urbanismo em Moçambique, com a entrevista intitulada “Ensinos e práticas em arquitetura, urbanismo e território em Moçambique”, realizada em 2020, por p. 29 e-mail por nós, Céline Veríssimo, João Soares Pena e Murad Vaz, junto ao arquiteto moçambicano Luís Lage. Ele explica-nos - através da sua trajetória pela arte, arquitetura, urbanismo e território, da cidade de Lourenço Marques colonial à Maputo independente, passando pela cidade de Roma e a Ilha da Juventude em Cuba -, o panorama atual da formação acadêmica no país, a partir da Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico na Universidade Eduardo Mondlane. Luís Lage reflete sobre os desafios que envolvem a profissão, da formação à prática, e como a dimensão do território é fulcral para Moçambique. A entrevista mostra-nos que a independência de Moçambique ainda é muito jovem e o quanto é difícil sair das amarras da hegemonia eurocêntrica e da herança colonial. No entanto, a esperança e o otimismo estão por detrás do seu cotidiano de trabalho, levando a universidade para as ruas e os bairros de Maputo, por meio do projeto de assistência técnica Kaya Clínica e das parcerias tanto com comunidades locais como com universidades do hemisfério norte. Seguidamente, a seção “artigos’’ se inicia com o texto “A vida urbana emerge na África”, do historiador estadunidense radicado na África do Sul, Bill Freund, falecido em 2020, que dedicou a sua vida à história urbana em África. Trata-se da tradução póstuma e primeira tradução da sua obra para português, realizada por Ana Mazzoline e Céline Veríssimo.. Este texto faz a introdução do livro The African city: a history publicado em 2007 e é, desde então, um marco sobre a história das cidades na África. Neste artigo, Bill Freund defende e mostra que a urbanização africana tem origem pré-colonial, desconstruindo o mito de que cidade é uma invenção europeia, acrescentando, ainda, que “África é o cenário ideal para estudar os primórdios da urbanização”. O autor segue explicando a gênese sagrada da cidade africana pré-colonial, cuja importância superava de longe a dimensão econômica. Freund nos dá uma ideia das cidades nas várias regiões do continente, desde antes dos faraós do antigo Império Egípcio até o séc. XX, com base numa rica e crítica informação obtida de várias fontes e de variadas épocas: embora na sua maioria de autores europeus, inclui importantes autores africanos, aborda muitas questões e reforça que o futuro das sociedades e das culturas africanas provavelmente passará muito pelas cidades. p. 30 Dando sequência à história das cidades africanas, o artigo “Cidades africanas em 6000 anos de africanos construindo cidades: rupturas conceituais e paradigmáticas”, do autor brasileiro Henrique Cunha Junior, professor visitante do PPGAU/UFBA, parte do pressuposto de que os referenciais ocidentais são inadequados para o estudo e a compreensão das cidades africanas, para propor uma mudança no eixo conceitual e na metodologia que regem os estudos sobre história das cidades, ainda de cariz eurocêntrico. O autor, portanto, traz um debate crítico a partir da ampla pesquisa que vem desenvolvendo sobre a formulação do urbanismo e da compreensão das cidades africanas, contemplando um período de 6000 anos. Neste espectro, suas reflexões são amparadas em princípios societários africanos, tendo como base a filosofia e a religiosidade das sociedades africanas. Adiante, a autora angolana Ângela Mingas, discute os impactos da invasão portuguesa na configuração urbana de Angola, argumentando que esta é anterior à chegada dos colonizadores. No seu artigo “Cidades em Angola: entre o conflito de urbanidades e a necessária mudança de paradigma”, a autora, arquiteta e professora da Universidade Lusíada de Angola, defende esta tese com foco na cidade de Luanda, destacando o tráfico de africanos, a mão de obra escrava no país e a segregação urbana decorrente da racialização do período colonial, ainda visível na paisagem urbana. Nesse contexto, os musseques - bairros negros que constituem a maior parte do edificado de Luanda e divergem do padrão urbanístico colonial -, têm sido objeto de projetos de erradicação e higienização da cidade. Mingas, ainda, evidencia a disparidade na ocupação urbana de Luanda entre negros e brancos, entre centro e periferia, e aponta a necessidade de mudança de paradigma, a partir de um urbanismo de gênese africana inspirado na dinâmica dos musseques. Tal aproximação faz-se fundamental para repensar os processos de urbanização no país para que as intervenções urbanas incluam esses bairros em vez de eliminá-los. Dedicado aos efeitos do regime do apartheid em espaços urbanos racialmente segregados, o artigo “O desenvolvimento urbano do apartheid”, da arquiteta sul-africana Malindi Neluheni, foi traduzido por Hugo Tomás e Céline Veríssimo, pela primeira vez do inglês para o português para este número, obtido do memorável livro White papers black marks: architecture, race, culture de 2000, organizado pela arquiteta ganesa-escocesa Lesley Lokko, também aqui entrevistada. A autora parte de uma análise crítica sobre a segregação racial e espacial do apartheid, com a duplicação de serviços e equipamentos: correios, escolas, mercados etc., com sinais sobre quem podia utilizar o espaço e onde. Publicado poucos anos depois da abolição do apartheid, com a eleição de Nelson Mandela em 10 de maio de 1994, Malindi Neluheni mostra-nos que o espaço foi a ferramenta mais eficaz do regime e indica o “espaço do descontentamento” como seu legado no longo caminho por fazer, para uma efetiva reconciliação entre brancos e negros na África do Sul. Para tal, Neluheni analisa dois estudos de caso, um na África do Sul e outro nos EUA, a partir dos quais elabora uma proposta para um novo urbanismo na “nova” África do Sul, dando particular enfoque na educação em geral e na educação em arquitetura e urbanismo muito em particular. p. 31 A seção de artigos segue com o texto “Ler a arquitetura das classes desprivilegiadas”, de autoria de Nnamdi Elleh, arquiteto nigeriano e professor da Universidade de Witwatersrand. O texto foi traduzido por Céline Veríssimo, pela primeira vez do inglês, a partir do seu livro Reading the Architecture of the Underprivileged Classes: A Perspective on The Protests and Upheavals in Our Cities, publicado em 2014. Elleh expõe as periferias urbanas como sintomáticas e emergentes do urbanismo do princípio do século XVIII, por todas as partes do mundo, como resultado da revolução industrial europeia. Assim, o autor entende que a periferização está na gênese do urbanismo moderno até os dias de hoje, cujas casas são convencionalmente chamadas de precárias, barracos e insalubres. Elleh refuta este conceito argumentando que os edifícios e bairros autoconstruídos por pessoas que não têm acesso a serviços de arquitetura e materiais construtivos modernos evoluíram até hoje além dos ditames da arquitetura modernista, bem como da arquitetura vernacular. Mais ainda, demonstra como o ensino e a profissão de arquitetura reforçam estereótipos sociais, assentes em descriminação de classe, raça e gênero, quando não arquitetos/as com poucos meios econômicos constroem as suas próprias casas. Mostra-nos também como esta profissão sempre se beneficiou, a serviço do capital, de renovar e erradicar bairros que são considerados económica e socialmente desafiantes. Elleh conclui, defendendo que os assentamentos espontâneos são efetivamente produções arquitetônicas e urbanísticas modernas e contemporâneas contra-hegemônicas. Encerrando a seção “artigos”, Luís Almeida traduziu para português o texto “Refazendo cidades africanas”, que apresenta o livro de 2004 For the City Yet to Come: Changing African Life in Four Cities, de autoria do célebre AbdouMaliq Simone, atualmente professor da Universidade de Sheffield, que se dedica há mais de vinte anos ao estudo das cidades africanas como ativista, professor, pesquisador e assessor de ONGs e governos locais. O autor mostra-nos as nuances, obscuridades e criatividades por detrás da vida urbana das várias Áfricas e elabora uma análise crítica ao sofrimento e injustiças da vida urbana. Simone contesta a visão convencional de “cidades falhadas”, argumentando que a compreensão dos centros urbanos em África passa por conhecer as origens históricas de cada cidade em particular e, não menos importante, também conhecer de perto os saberes locais, que são fortemente imbuídos na cultura, que se refletem nos sistemas sociais, econômicos e políticos “informais” que dão vida e forma às cidades. p. 32 Na seção “ensaio”, apresentamos o trabalho visual “Caminhos tecidos”, das artistas moçambicanas Wacy Zacarias e Djamila de Sousa, que debatem, através de uma perspectiva crítica, porém extremamente sensível, como a história dos têxteis em África no geral, e em Moçambique em particular, representa as múltiplas intersecções culturais, geográficas, simbólicas e cotidianas traduzidas a partir do universo feminino. A partir de uma reapropriação, tanto da produção quanto das narrativas vinculadas às 2 capulanas , as autoras enfrentam a violência de gênero que se perpetua sob relações de colonialidade, ressignificando os tecidos como “narrativas de cura” que constroem legados em novas histórias, nas dimensões da valorização de conhecimentos e histórias próprias. A seção “resenha” encerra este primeiro número deste dossiê Cidades africanas. Aqui, ao autor português David Viana, das Universidades do Porto e Portucalente, coube a tarefa de resenhar o livro The History of African Cities South of the Sahara: From the Origins to Colonization, da renomada historiadora francesa Catherine Coquery-Vidrovitch, que faz uma importante discussão sobre as cidades e a urbanização africanas. Na resenha “Aprendendo com as cidades africanas’’, Viana descreve como o livro evidencia a necessidade de compreender os diversos períodos da história das cidades africanas, sem reduzi-las ao processo moderno-colonial. Além disso, ressalta a complexidade de atores e processos que configuram as cidades africanas, articulando a história urbana da África à história do próprio continente, levando em conta os distintos contextos culturais, geográficos, políticos, econômicos, entre outros, ao longo do tempo e do espaço. Por fim, Viana afirma que ao aprendermos sobre a história das cidades africanas, aprendemos muito sobre o passado, o presente e o futuro da urbanização per se. Esperamos que as discussões empreendidas neste primeiro número de Cidades africanas contribuam não apenas para fortalecer as relações entre América Latina e África no âmbito do giro decolonial, mas também para ampliar o repertório dos campos da arquitetura, do urbanismo e dos estudos urbanos de modo geral acerca das questões urbanas na África para leitores da comunidade lusófona. Especialmente no caso do Brasil, onde a circulação do conhecimento produzido por pesquisadores/ as e intelectuais africanos e africanas sobre a cidade e o urbano é escassa, os textos aqui reunidos abrem outras possibilidades de compreensão da complexidade, da diversidade e da riqueza das cidades africanas. Acima de tudo, os textos demonstram o caráter inovador e sofisticado que as cidades africanas apontam, revertendo milhares de anos de saque e violência predatória, que além de ensinar-nos sobre estratégias, dinâmicas e valores para a diversidade, a equidade e a inclusão. Indubitavelmente, os três volumes que compõem este dossiê colocam África e a sua diáspora no epicentro p. 33 contra-hegemônico do pensamento e da práxis da humanidade sobre espaço, território e vida, de todos os povos subalternizados pela modernidade-colonialidade a caminho de “um mundo onde caibam outros mundos” (mote Zapatista), uma vez que na gênese da filosofia Ubuntu a vida é “sermos-com-os-outros”. Referências CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, 2005. QUIJANO, Aníbal. ¡Qué tal raza! Ecuador Debate, n. 48, p. 141-151, 1999. disponível em: https://repositorio.flacsoandes.edu.ec/ handle/10469/5724. Acesso em: 11 maio 2022. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estudos CEBRAP, n. 79, p. 71-94, 2007. Disponível em: https:// www.scielo.br/j/nec/a/ytPjkXXYbTRxnJ7THFDBrgc/?lang=pt. Acesso em: 16 maio 2022. FARRÉS DELGADO, Yasser; MATARÁN RUIZ, Alberto. Hacia una teoría urbana transmoderna y decolonial: una introducción. Polis, v. 13, n. 37, p. 339-361, 2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.4067/S071865682014000100019. Acesso em: 14 maio 2022. Notas 1 Para os textos do dossiê, optamos por acolher as diversas formas do idioma português, respeitando as diferenças e particularidades das maneiras como é escrito nos diversos países da comunidade lusófona. 2 Capulana é o termo na língua tsonga usado em Moçambique para chamar o pano que, tradicionalmente, as mulheres vestem à volta da cintura como saia, vestido e na cabeça, emoldurando o rosto. p. 34 p. 35 Entrevistas Decolonizar a educação em arquitetura, superando capital, raça e género 1 com generosidade Entrevista com Lesley Lokko Diretora do African Future Institute, Acra, Gana e Professora Visitante na Escola de Arquitetura Bartlett, University College London Quem entrevista: Céline Veríssimo ¡DALE! / UFBA, MALOCA / UNILA, PPGPPD e CAU / UNILA, DAMG / UPT Entrevista e tradução (PT europeu) Harlem, Nova Iorque, Fevereiro 2020 Lesley Lokko Lesley Naa Norle Lokko é uma arquiteta Ganesa-Escocesa com carreira mundial como docente e também na chefia de escolas de arquitetura, nomeadamente nas cidades de Chicago, Cidade do Cabo, Joanesburgo, Sidney, Londres, Accra, Edimburgo e Nova Iorque. Organizadora do livro White Papers, Black Marks: Race, Culture, Architecture (University of Minnesota Press, 2000), Lokko tem se dedicado às questões de cultura, raça e espaço, além de também ser romancista contando com mais de vinte livros mais-vendidos e traduzidos em quinze línguas. Lesley Lokko fundou e dirigiu a Escola de Arquitetura de Joanesburgo (20142019), e, recentemente, o African Future Institute (AFI) uma escola de pós-graduação em arquitetura e plataforma de eventos públicos, em 2020, em Accra, sendo também fundadora e diretora da revista FOLIO: Journal of Contemporary African Architecture, publicado pelo AFI, e co-fundadora do UN-Habitat Council on Urban Iniciatives. Ela tem sido amplamente homenageada, como há pouco tempo atrás, com o prémio RIBA Annie Spink pela Excelência na Educação 2020 e, o prémio AR Ada Louise Huxtable por Contribuições em Arquitetura 2021. Num domingo frio de Fevereiro de 2020, recém chegada ao Harlem, como diretora da Escola de Arquitetura Bernard & Anne Spitzer da Universidade da Cidade de Nova Iorque (CCNY), Lesley recebeu-me para um animado café juntas. Entre risadas e indagações, Lesley partilhou tanto preocupações sobre a pressão do racismo e do patriarcado, que foram premonitórias dos motivos que a levariam, meses depois, a abandonar o cargo alegando “falta de respeito e empatia para com mulheres negras” e “um ato vital de auto-preservação”. Acima de tudo, Lesley falou-me das vitórias, alegrias e sonhos com a vitalidade e entusiasmo característicos da mulher visionária e destemida que é, cujo conteúdo descrito nesta entrevista irá certamente inspirar mais pessoas, como a mim, com muita esperança no futuro, apesar dos tempos turbulentos e obscuros em que nos encontramos. Em Dezembro de 2021, foi nomeada curadora da 18ª Exposição Internacional de Arquitetura - a famosa e prestigiada Bienal de Veneza (Maio a Novembro de 2023), tornando-se, só agora, em pleno séc. XXI, a primeira pessoa negra e a terceira mulher a liderar a curadoria na história do evento, demonstrando o quão o colonialismo está entranhado na nossa sociedade. Ao refletirmos também sobre o prémio Pritzker 2022 ao arquiteto Diébédo Francis Kéré de Burkina Faso, estaremos perante um momento de descolonização para “a emergência de uma nova ordem mundial” nas palavras de Lesley, ou mais um fenómeno de moda, desta vez, voltado para África? p. 41 Gostaria que nos falasse um pouco sobre como a sua trajetória multifacetada e internacional a conduziu, recentemente, de Joanesburgo até o Harlem, em Nova Iorque, como diretora da Spitzer Architectural School. Como veio aqui parar? n. 1 p. 36-59 2022 ISSN: 2965-4904 Então, eu criei a Escola de Arquitetura em Joanesburgo, há cerca de cinco anos atrás. Estive fora da academia por cerca de doze anos, a escrever livros de ficção, mas de vez em quando, eu dava uma palestra, algo a ver com minha vida anterior. Em 2008, eu estava numa conferência na Holanda, onde Edgar Pieterse e algumas outras pessoas também estavam. Era uma conferência sobre as perspectivas africanas da arquitetura ou o que quer que seja entendido por isso, e eu conheci alguém lá, que era chefe de departamento da Escola de Arquitetura, em Joanesburgo. Eu não tinha em mente, na época, voltar para a academia, porque me dedicava a escrever. Mais tarde, em 2013, fui convidada para compor um júri de mestrado em arquitetura, mas tinha apenas oito estudantes. Lembro-me de ter pensado: interessante que aqui, no extremo sul da África, estão a fazer projetos de arquitetura que a Europa parou de fazer há cinquenta anos atrás. Nem sequer era antiquado, era de alguma forma irrelevante, a forma como pensavam e falavam de arquitetura. Quando voltei para Londres, cerca de três semanas depois, essa mesma pessoa me enviou um e-mail e disse: “Olha, temos um cargo de professor associado a chegar. Conhece alguém nas suas redes que estivesse interessado?”, e pensei sobre isso por cerca de cinco minutos: “Ah! Estou meio que interessada.” Candidatei-me, viajei para a entrevista e consegui o emprego. Mas o trabalho estava muito mal definido, era para montar um think tank para pensar as cidades africanas. Quando cheguei lá, percebi que essa escola não tinha capacidade para iniciar um think tank. Durante a entrevista, percebi que eles realmente não sabiam bem o que queriam e, portanto, era uma oportunidade para começar algo. Comecei então o programa de mestrado mudando o sistema de 2 unidades curriculares, a partir do que eu conhecia da Bartlett . Passámos de onze para cinquenta e dois alunos, do dia para a noite. Assim que anunciámos que se tratava de um novo programa curricular, tivemos um grande aumento de candidatos. Então, naquele primeiro ano, percebi: “Ok, há vontade para fazer algo diferente, mas a escola ainda não tem toda a infraestrutura.” Enfim, para encurtar a história, demorei dois anos para formar a Faculdade de Arquitetura, como uma escola separada do resto da universidade, como uma espécie de escola de arquitetura semi-autónoma. Dirigi aquela escola por mais quatro anos e fui, diria eu, muito bem-sucedida. Eu era a única contratada com dedicação exclusiva e tínhamos uma equipa docente fantástica, mas, contratada a tempo parcial. Os professores não conseguiam conceber uma nova forma de pensar a arquitetura. Então, por muito tempo, foi bastante antagônico, particularmente a relação da escola com a cidade em geral. Quero dizer, estou interessada em política, em informalidade e tudo isso, mas, na verdade, estou mais interessada na imaginação. Então, para mim, a faculdade foi uma forma de ensiná-los a pensar diferente. Porque uma vez que eles sejam capazes de pensar de forma diferente, poderão pensar em outras coisas para fazer em arquitetura. Foi uma tentativa de libertação da tecnocracia da África do Sul, que é muito motivada pela culpa. A relação da África do Sul com a arquitetura tem sido muito problemática, em parte por causa das desigualdades espaciais do Apartheid, mas também porque a maioria das pessoas que ensinam são Sul-Africanos brancos mais velhos, que passaram a maior parte das suas carreiras se refazendo à imagem dos arquitetos europeus e ocidentais, e a única maneira que eles conseguem “lidar”, com a população africana, é na relação entre mais o mais esclarecido e o despejado, e eu não estava interessada nisso. O que descobrimos nessa escola é que ter essa equipa, que era muito intuitivamente resistente, eles eram muito críticos, curiosos, corajosos e jovens. Mas não tinham experiência. Então, eu fui constantemente pressionada para orientar esse corpo docente mais jovem, que eram pessoas fantásticas. Tinha acabado de ganhar o prémio Serpentine do ano, pelos meus programas de ensino. Então, eu pedi demissão três vezes, porque estava a trabalhar dezoito horas por dia, sete dias por semana, era muito louco. Era eu que encomendava o papel higiênico, eu que ia para arrecadar fundos, e assim por diante. E não apenas por isso… No ano anterior, dois dos meus irmãos faleceram, com sete semanas de diferença um do outro, assim do nada. A minha irmã teve um ataque cardíaco, o meu irmão teve um derrame. Foi então que p. 43 percebi, se eu ficar aqui vou morrer. Pedi demissão em dezembro de 2018, e disse: “Vou dar um ano para vocês encontrarem um substituto”. Como o nosso ano letivo lá, vai de fevereiro a novembro, pensei: se eu me demitir agora, não há ninguém para dirigir a escola... Por isso, dei-lhes um ano e eles não encontraram ninguém para me substituir. Assim, no final do ano, simplesmente disse: “lamento, adeus”. E foi assim que vim aqui parar. A experiência foi incrivelmente poderosa, muito transformadora, e reconheço que foi uma abordagem muito ousada do plano curricular, que poderia produzir os resultados que desejávamos, mas era um projeto para uma vida. Então, essa é a história de como vim aqui parar. Como é ser mulher, escritora, arquiteta e gestora, num mundo dominado por homens? Considera-se uma arquiteta africana? É uma pergunta interessante. Eu cresci no Gana, na África Ocidental, morei lá até os dezoito anos. A minha mãe era Escocesa e o meu pai era Ganense. Fui para a universidade no exterior, como muitos, no Reino Unido. O meu pai vendia medicamentos na Escócia, foi onde ele conheceu minha mãe, mas a minha mãe partiu quando eu era muito jovem, então fui criada pelo meu pai. O meu pai foi sempre muito claro conosco: “Tu és Ganense. Sim, tens herança Escocesa, mas identifica-te antes de mais nada como Ganense”. Quando alguém me perguntava: “Ei, de onde você é?”, eu respondia: “sou do Gana”. Quando você mora em África, dentro do continente, você entende que é negro, mas não é o principal mecanismo da sua identidade. A sua identidade é cultural, não é racial, porque todo mundo é negro. O meu pai, de certa forma, estava a tentar preparar-nos, os meus irmãos e eu, para o momento, caso fossemos para fora, passaríamos de repente, a ser definidos de forma diferente, racializada. p. 44 Na verdade, se você é do Gana ou da Nigéria, ou do Senegal, ou seja de onde for, não é que você não entenda o que significa ser negro, mas não é a maneira como você se descreve. Então, de uma forma estranha, aquela experiência de crescer no Gana, sabendo, por um lado, que era uma identidade muito, muito forte, sou Ganense, falo a língua, entendo a cultura, eu nasci lá. No minuto em que saio de lá, essa identidade se torna supérflua, porque ninguém sabe onde fica o Gana. Ninguém se importa. Então, passo a ser vista como negra, talvez como Africana, mas essas são categorias muito, muito amplas. E se você se interessa pelas disciplinas criativas, acho que a criatividade depende da especificidade, é muito difícil ser criativo de uma maneira geral, você precisa de algo com que trabalhar. Então, de alguma forma, essa atitude face à relação entre o universal e o específico sempre foi ambígua para mim. E, de uma forma estranha, é também a forma como eu vejo o feminismo, porque sendo uma mulher africana, tenho uma relação com o patriarcado diferente do que teria se fosse ocidental no Gana. Meu pai era muçulmano e minha mãe judia, então, novamente, existem religiões desiguais. Existem também diferenças subtis. Tenho 56 anos e posso ver no meu papel de líder, como gestora, que o meu gênero desempenha um papel, mas é simplesmente parte de muitas facetas minhas que desempenham um papel. Então, eu sempre fui um pouco relutante em me rotular como algo, porque entendo que esse rótulo também carrega ficção e ambiguidade, e eu realmente gosto da ambiguidade, como se a ambiguidade fosse mais poderosa. Para mim, não é um problema, então, não é um problema ser múltiplas coisas. Na verdade, gosto bastante disso, mas também reconheço que tem limitações, porque não se pode ser tudo para todos, em determinado momento. Temos que traçar os nossos próprios limites. A única coisa que eu diria é que essas fronteiras, ao longo das décadas, foram mudando. Agora estou nos EUA, há cerca de sete semanas. Reconheço que existe em mim o carácter de uma mulher afro-americana com raiva. As pessoas percebem o que isso significa. Então, se fico impaciente numa reunião ou chocada com alguém, as reações são logo “Oh, você está sendo assim...”. Mas, de certa forma, também significa que sei que surpreendo as pessoas. Elas estão, de alguma forma, à espera disso. Então, embora eu esteja aqui há sete semanas, é muito interessante ver esses dados de expectativa, confusão, o fato de que tenho que soar como uma afro-americana.., existem muitas ambiguidades a acontecer. Quando se tem múltiplas experiências, de ser múltiplas pessoas em locais diferentes, acabamos por ser como que um tecido bastante complexo. Mas, curiosamente, também, sabemos que não devemos levar isto a sério. Portanto, de certa forma, é para mim também uma protecção. Eu compreendo que as reacções que recebo das pessoas nem sempre são pessoais, têm a ver com os estereótipos, ou seja, lá o que for. É muito mais tarde na vida, que ficamos num lugar bastante seguro para se estar. Penso que as pessoas pensariam que isso é inseguro. Eu acho que é o contrário. O truque é ficar distante o suficiente da situação, para que se possa olhar com objetividade, mas é preciso ser-se autêntico sobre isso. Mas, ao mesmo tempo, é preciso saber quando permitir que isso nos atinja profundamente, e quando não o deixar. p. 45 Qual o seu olhar sobre a sua aceitação ou rejeição, na sociedade ocidental e no mundo da arquitetura? Você considera-se uma exceção, num mundo racializado e dominado pelos homens? Essa é uma questão pertinente. Ontem à noite estava em Chelsea e peguei um Uber para casa aqui no Harlem. Já era tarde, e o motorista era de Burkina Faso, que fica acima do Gana, ele virou numa esquina e um carro da polícia mandou-o parar. Então, luzes de sirenes a piscar, fomos parados pela polícia. Demoraram provavelmente uns três, quatro minutos para chegar ao carro. Estou sentada no banco de trás a pensar: “O que está a acontecer?”, e era uma rua escura, e eu ali: “Hum... será que este vai ser um desses momentos de violência policial racista?” Fiquei muito apreensiva. O agente aproxima-se do carro - ele era negro, afro-americano, e falou para o motorista. Então, o agente disse: “Você atravessou a rua, mas alguém estava a tentar atravessar e você ignorou a pessoa.” O motorista disse que tinha a câmara de filmar ligada. Então, ele fica com uma câmara ligada o tempo todo no carro. É uma filmagem a 360º, então filma de lado. Imagino que os motoristas de Uber precisem disso. Depois o agente começa a falar para ele: “Eu entendo, eu não preciso ser agressivo.” O agente está, obviamente, a falar uma espécie de linguagem que ele foi treinado para usar para manter a situação calma. E ele reconhece que, se um deles agir mal, a coisa pode correr muito mal. Então, o motorista está com a câmara, o policial com o manual dele e eles conversam. Eu percebi que: “OK, há algo muito complexo a acontecer aqui, que tem tudo a ver com poder, defesa e resistência. A razão pela qual estou a trazer isto é que o que costumava ser homens brancos mais velhos, agora tem gente mais jovem, diferente entrando nesse lugar de poder. p. 46 No Reino Unido, você administra essa tensão através da etiqueta, de uma certa maneira de falar uns com os outros, que é muito britânica. Então, a língua é sempre muito codificada. Você pode falar inglês de uma determinada maneira, há uma espécie de entendimento que todos nós sabemos o que estamos ali a fazer. Na África do Sul, é o oposto, não há uma linguagem compartilhada. A língua é a mesma, mas não existe uma linguagem comportamental compartilhada. Então, os dois ou três paradigmas dominantes na sociedade Sul-Africana são homens Africanos brancos, homens Africanos negros e homens Africanos Indianos e de cor, e cada um deles tem um sistema de valores diferente. Quando se está numa sala, na África do Sul, numa posição de liderança, no minuto em que há alguma tensão, todos se voltam para esses sistemas de valores. Os Africanos negros gritam, totalmente agressivos, para que você fique calada na reunião. Os Africanos brancos nunca falam nada na sua frente, mas falam uns para os outros. As comunidades Indianas e de cor são muito defensivas. No minuto em que você ataca, há uma enorme parede. Então, na África do Sul, achei que gerir pessoas era exaustivo, porque a posição do gestor ou líder, ou qualquer outra coisa, é entender as diferentes linguagens de valores que estão a acontecer, mas em qualquer sala, há quatro ou cinco delas. Na África do Sul, eu voltava para casa no final de um dia de reuniões, em que não conseguia sequer falar. Para manter a autoridade e trazer as pessoas a bordo, não se pode simplesmente dizer: “Faça isso.” Aqui nos EUA, estranhamente, é como um terceiro modo, em que todo mundo está ciente das tensões, tem um roteiro de respostas, mas não acreditam nele. Então, é muito interessante ter trabalhado nesses três locais diferentes. Para mim, o interessante é que, se eu olhar para todos os reitores, porque há muitos reitores de escolas de arquitetura, um deles acabou de ser nomeado no ano passado, alguns chineses americanos, alguns asiáticos americanos, alguns brancos americanos. Acho que sou a primeira reitora afro-americana. A reitora de Harvard agora é uma mulher, em Cornell também. Existe uma crescente vaga de mulheres, mas somos todas muito diferentes. Por isso, quando as pessoas falam sobre reitoras, acho que, novamente, há essa tendência de supor que há algo ali que une como nós somos. Acho que ainda não sabemos o que isso é. Estamos a explorar, porque também há como descobrir essas coisas, à medida que vamos trabalhando nelas e ocupando esses lugares. No Brasil, provavelmente como resultado do crescente poder dos movimentos sociais, movimentos negros e movimentos feministas, e feministas negras, muitos estudantes da UNILA e outras partes do Brasil, estão propondo projetos feministas anti-racistas e anti-capitalistas em Arquitetura e Urbanismo. Na sua opinião, o que poderia ser na prática, esse tipo de projeto? Como chegar a isso, em termos de carreira educacional, em termos de preparação para uma forma mais liberta e descolonial de praticar a arquitetura? Eu estudei línguas, depois estudei sociologia e só depois formei-me em arquitetura. E no Reino Unido, é preciso voltar ao primeiro ano. Portanto, não me qualifiquei como arquiteta até os meus trinta e poucos anos. E uma das coisas realmente interessantes para mim, sobre a educação em arquitetura, foi que não apenas mudou a maneira como eu penso sobre todas as coisas, mas mudou a minha forma de pensar. E para mim, a arquitetura como disciplina, constituiu realmente uma série de ferramentas que me permitiram ver o mundo de maneiras peculiares. E se essas ferramentas p. 47 forem autênticas, refletem, de alguma forma, aquilo que eu entendia como valores, princípios, política - a psicologia política que carrego. Então, essas ferramentas ficaram comigo para o resto da minha vida. E não estou a falar da capacidade de desenhar uma pessoa... Talvez ferramentas que giram mais em torno da curiosidade, da empatia, da tradução. De certa forma, as minhas ferramentas já são descoloniais, já são transformadoras, já são resistentes, porque essa é a minha experiência no mundo. A arquitetura é muito útil, num lugar peculiar como a Bartlett, porque me permitiu interpretar essas ferramentas através da minha própria experiência. Eu diria que o propósito da educação em arquitetura é estabelecer uma estrutura, na qual o universo estudantil seja capaz de traduzir as ferramentas aprendidas em ferramentas que sejam significativas para cada um em particular. Por isso, coisas como anti-racismo e anti-propriedade, anti-poder e práticas feministas, são paradigmas realmente interessantes em arquitetura, porque também versam sobre ferramentas - ferramentas para pensar o mundo de forma diferenciada. Penso que, onde a educação em arquitetura tem falhado, é na exigência que faz aos estudantes para que deixem essas ferramentas para trás, particularmente as suas próprias experiências, e usem as ferramentas do cânone ocidental, oriundo de fontes muito, muito diferentes. Não estou com isto a dizer que estão erradas. Se você quer explicar a alguém como construir um edifício, as plantas e os cortes podem ser um mecanismo útil. Mas também vêm de uma história específica. Parece-me que essas práticas de que você fala são fenomenalmente úteis, porque mostram aos arquitetos como as pessoas em outras disciplinas usaram ferramentas diferenciadas para “desempacotar” a disciplina. Acho que a arquitetura é muito, muito insegura como disciplina, porque está constantemente à defesa. Como vê o reconhecimento e a legitimação desses saberes subalternos, como o feminismo étnico, racial etc., diante da hegemonia ocidental e a universalidade da tradição elitista da educação em arquitetura? p. 48 A Escola de Pós-Graduação em Arquitetura é uma experimentação muito interessante, porque no Ocidente as questões de identidade, gênero são sempre colocadas como questões de minorias. Num lugar como a África do Sul, essas questões são a maioria. Portanto, demograficamente falando, é muito mais provável que você seja negra e mulher do que branco e homem. Se um programa pedagógico curricular se abrir à interpretação do cânone ocidental, demograficamente falando, terá muitos mais alunos, fisicamente. Estou muito mais interessada em desconstruir o cânone, do que os estudantes estão em segui-lo. É uma espécie de economia de escala, de uma forma estranha. Depois de quatro ou cinco anos de, literalmente, abrir esse currículo à sua interpretação, o que descobrimos foi que os alunos estavam muito à frente dos professores, muito além. A habilidade deles em traduzir esse cânone, estende-se à capacidade de traduzir muitos, muitos outros aspectos das suas vidas. Você sabe que não há um único Africano vivo que não fale mais de uma língua. Fala português e outra língua africana, fala francês, fala inglês, fala... A gente em África só traduz, o dia todo. Então, de alguma forma, quando se traz a disciplina de arquitetura para estes estudantes Africanos, com esta ênfase, as coisas que produzem são incríveis. Eu dei aulas o tempo todo que fiquei lá, gosto muito de dar aulas. Enquanto eu estava a trabalhar com os alunos, eu arrepiava-me “Como é que eles podem pensar nisto?”. O estudante é agência. Para mim, não havia nada mais poderoso do que estabelecer a estrutura para que eles reivindicassem o seu próprio arbítrio. Acho que muitas escolas tentam ser a agência. Por exemplo: o que eu sei sobre a vida de uma mulher africana de 38 anos? Nada. Sei que existem certas áreas que consigo imaginar, mas não posso falar por elas. Mesmo geracionalmente. Eu via os meus alunos e olhava para os desenhos deles, e dizia para mim mesma: “Eu nem entendo como esse desenho foi feito.” Na minha época, era o esboço, a cor, a montagem, eu tinha uma espécie de vocabulário. Quando a gente conversa com alunos dessa idade, sobre escala e proporção, para eles existe uma rede. Eles não pensam em termos de um em cem, um em duzentos, porque não faz sentido. E porque eu acho que, particularmente na educação em arquitetura, temos uma mão cheia de educadores que têm mais ou menos a minha idade, cinquenta, quarenta, não sei exatamente o que aconteceu, mas não há tantos professores com trinta e quarenta anos. De repente, há este enorme corpo docente de vinte e poucos anos emergindo... passou de um paradigma para outro, e todos nós estamos a trabalhar para descobrir como atravessar esse vazio. Então, na verdade, antes de vir para cá, eu estava a escrever uma entrevista para o Sunday Times, sobre as pessoas que ganharam o Pavilhão Serpentine, que foram meus colegas de ensino. Então, eu tive uma espécie de papel de mentora com eles, e foram muito úteis também, porque são da mesma idade, mais ou menos, que os alunos, até serem capazes de traduzir o que eu sabia para uma linguagem que fizesse sentido para os alunos. É por isso que a parceria de ensino foi tão bem sucedida. Mas em muitos lugares fico nervosa com p. 49 esse tipo de relacionamento. Então, estou a trazer as mesmas mudanças de currículo que fiz na África do Sul para Spitzer, e isso vai ser muito interessante. O que você almeja de 2020 em diante na Spitzer School of Architecture? Quais são suas prioridades, estratégias e metodologias em termos de abordagem sobre os problemas de raça, gênero, aumento da segregação espacial e crise ecológica na educação arquitetónica? Nos últimos quatro, cinco anos, temos vindo a trabalhar, em notícias com pessoas, em torno desta ideia de uma pedagogia transformadora, ou seja, que a educação no seu melhor é uma forma de transformar o mundo, não é apenas uma forma de pensar sobre ele. E o que eu penso que é interessante na arquitectura é, como disciplina, que é sempre propositiva. Não se pode apenas criticar. Portanto, o que estou interessada em fazer aqui é levar este método de pensar a contextos diferentes. No entanto, os estudantes que aqui estão são diferentes dos estudantes de Joanesburgo. São estudantes imigrantes de primeira geração, temos muitos indocumentados. Esta é a única escola pública de arquitetura, e ao contrário dos estudantes que vão para Columbia e Yale, onde pagam cem mil dólares por ano, os nossos estudantes pagam sete ou oito mil. O lugar onde não se pode experimentar, porque os desafios não são tão altos. Quando se paga esse tipo de dinheiro por uma educação, quer ter-se a certeza de que se está a obter o valor do dinheiro, e se “valor do dinheiro” é uma forma específica de pensar, para mudar isso é difícil. Na nossa situação, é um pouco diferente. Há um fluxo de estudantes que entram no City College, que querem e precisam arranjar trabalho, querem ganhar dinheiro. A minha atitude é: “Óptimo! Se é isso que um estudante que entra quer, óptimo”! Nós fornecemos uma educação realmente forte e sólida, para que eles possam fazer isso. De alguma forma, sinto que não me compete dizer aos estudantes o que eles devem ser. p. 50 Mas em cada cem estudantes que entram na Spitzer, dez por cento, com sorte, seguirá a fazer trabalhos excepcionais, coisas que nem sequer imaginávamos que pudessem fazer quando entraram. Esses dez por cento, particularmente agora, neste momento político, são incrivelmente poderosos, porque as mudanças que eles e elas querem fazer, estão ligadas com quem são. Portanto, estas são mudanças em torno da pobreza, da injustiça, da ecologia, de todas as coisas que os vinte e poucos anos de idade consideram pertinentes para as suas vidas. Vejo o meu papel na Spitzer a fazer uma espécie de ambiente onde se um estudante entra e quer mudar as coisas a partir desse contexto, ele ou ela, pode fazê-lo. Este tipo de trabalho para mim, educa- tivamente falando, é transformador. Os jovens suburbanos privilegiados que estudam em Columbia, e eu vejo isso a toda a hora, vêm e falam em ir a África para construir e ajudar os pobres e... Sabem que mais? Está bem, não vou dizer: “não o faças”. Então, no minuto em que chega e diz-me que quer construir casas de banho na Tanzânia, já consigo situar-me. Mas se é daqui e diz que quer fazer algo no Harlem, é uma situação mais complexa, porque é muito mais difícil fazer o bem quando você está implicado. Para mim, a oportunidade de pensar sobre este tipo de questões perto de casa é muito significativa. Mas, esta é a minha experiência na África do Sul, às vezes, para resolver um problema, a forma mais criativa é manter a distância ou contorná-lo. Nem sempre é ir direto ao assunto. Então, um dos motivos pelos quais a mudança curricular é muito importante para mim é que, no sistema de unidades, pode-se ter alunos a trabalhar por até dois anos, em temas específicos. O sistema semestral, que é o das treze semanas, começa com uma ideia interessante, e, de repente, eles já estão fora deste prédio. Assim, estamos a mudar para ateliers de projeto com a duração de um ano. Estamos também a mudar para duas faculdades que ensinam sempre juntas. Por isso, existe um diálogo entre as pessoas que ensinam. Cada unidade curricular terá de doze a quinze alunos e o/a líder da unidade. A faculdade tem de propor algo que valha a pena investigar. E isso tem trazido muito bons resultados. Tenho estado a falar agora com o corpo docente: “Então, se tiveres de gerir uma unidade, o que propões?” Depois, começam a contar-me sobre o livro ou o capítulo que estão a escrever… E eu: “Não é isso. O que é que você quer fazer em arquitetura?” E para muitos docentes, esta é uma pergunta que ninguém jamais lhes fez. Na verdade, parte do meu trabalho é levar o corpo docente a uma posição em que tenha confiança o suficiente para declarar: “É nisto que estou verdadeiramente interessado/a”. E isso vai ser muito difícil. As pessoas simplesmente fazem o que lhes foi ensinado. A gente replica o que sabe. E eu disse-lhes: “Sabem, durante três meses, estaremos em fase de consulta”. Não vou planear tudo até ter ouvido todas as pessoas. Portanto, tem sido um processo de fazer com que as pessoas tenham confiança suficiente para vir e falar. São pessoas que têm estado sem liderança durante cinco anos, então, estão todos a brigar uns com os outros. Eu até trouxe para a faculdade um terapeuta organizacional, porque não me compete a mim ser terapeuta. É lento, mas está a funcionar. As pessoas têm de perceber que a educação em arquitetura não é um dado adquirido. Por isso, a minha abordagem é mais baseada na cultura. Cultura é uma palavra bastante complexa na língua inglesa. Mas eu vejo todos eles, os paradigmas que compõem alguém com a língua que fala, os lugares em que vivem, o passado que p. 51 têm... o pano de fundo que todos temos. Essas questões para mim, constituem culturas individuais. E esses mundos interseccionam-se de maneiras diferentes, e isso constitui “a cultura de um lugar”. Penso que Nova Iorque é um lugar muito interessante, porque é muito diverso. Mas se perguntar a alguém o que a Spitzer tem de especial, todas as pessoas vão dizer: “Oh! Os alunos são tão diversos.” Eu digo: “Ok, essa é a pedagogia da Spitzer.” Assim, qual será slogan ou modus operandi da Spitzer, daqui a uns anos, da sua transformação na educação em arquitetura? Eu diria que é “transformador’’, sobretudo ao nível da disciplina, porque acho que o mundo da prática profissional que muitos desses alunos vão entrar, não é o que era há dez ou quinze anos atrás. O mundo é fluido, é indeterminado, e muitos deles sairão daqui, sairão de Nova Iorque. Quer dizer, não podemos prever o que eles farão. Então, para mim, o trabalho não é ensinar a detalhar uma maçaneta, porque, daqui a cinco anos, pode até nem mais existir. O importante é ensiná-los a pensar, para que se possam adaptar, explorar, envolver com condições complexas e inesperadas. Penso que tem havido uma compreensão do currículo, que é definido e é herdado. Que no primeiro ano fazes estruturas, no segundo ano ... por aí fora. Como um dos docentes me dizia no outro dia: “Quer jogar o pré-cálculo fora?”, Eu disse: “Sim! O que é que o cálculo faz aqui? “, “Hum! Você não pode fazer isso! É preciso ter mais cálculo.” Não quero com isto dizer que não seja importante, mas “o que acha da maneira como ensina isso? E a fragmentação do currículo em estruturas, tectónica, local …”. Os alunos chegam e dizem: “Este semestre vou fazer esta disciplina e esta...” Não é algo que você vai ao supermercado e compra. Os alunos estão na Escola de Arquitetura, estão passando por um momento especial, intelectual e criativo. Não entendem isso. Pelo que eu consigo entender, significa que é muito fácil passar a bola. Então, se você tem um aluno que falha em alguma coisa: “Bom, quem ensinou antes não ensinou bem.” Assim ninguém se responsabiliza. Na entrevista que dei sobre o sistema de unidades curriculares, disse assim: “Se você é um mau professor, vai se ver imediatamente.” E é disso que a maioria das pessoas tem medo. p. 52 É por isso que precisa de uma equipa unida e de confiança. Prevê algum envolvimento com comunidades de base, movimentos sociais? Qual é a sua abordagem sobre arquitetura paisagista? Temos muitas coisas interessantes. Temos algo no Spitzer chamado Bond Center, o Max Bond Center for Urban Futures, que é uma instituição realmente interessante, localizada dentro da escola, mas é uma espécie de organização separada. Faz parte do sistema, mas é uma instituição que é, basicamente, criada para analisar a relação entre a Escola de Arquitectura e a comunidade do Harlem. A pessoa que a dirige é um arquiteto, que também tem um passado em Big Data. Estou realmente interessada no tipo de instituições que podem querer sustentar a capacidade e a ecologia, que trabalham tanto como institutos de investigação como de ensino, dentro da escola. É como um grupo de estudos, mas que também gere unidades curriculares. Assim, os estudantes que estão na Escola de Arquitetura também têm a oportunidade de trabalhar em projetos específicos que têm exigências diferentes, para além do exame na ordem, o registo profissional. Considero essas oportunidades, realmente interessantes. São os veículos pelos quais estudantes e professores se envolvem, quer se trate do projeto de um edifício na Guatemala, ou a remodelação de uma igreja no Harlem, ou um projeto participativo com crianças. Quaisquer que sejam esses projetos, quero ter certeza de que a estrutura para trabalhar neles, é sustentável. O que eu não quero que aconteça, e que vejo em muitas escolas, é que os estudantes têm a grande ideia: “Agora vou trabalhar com migrantes no México”, metem-se num avião, vão para o México e depois constroem um abrigo. Portanto, quero diferentes tipos de resultados para esse tipo de compromissos, em vez de forçar estas questões a conformar-se com o currículo arquitectónico: “Agora é preciso construir um edifício sem barreiras físicas”, conduzir a disciplina a empenhar-se de forma diferente. Assim, através dessas instituições, podemos vir a descobrir, por exemplo, que um/a arquitecto/a - activista é alguém para quem o currículo em arquitetura é também psicologia, antropologia, sociologia, design, teoria, etc., como se tivesse uma composição diferente. O mais importante para mim, é que o currículo é um problema de design. Como você projeta algo que é forte o suficiente como uma estrutura, mas é aberto o suficiente para mudanças? Não conheço nada que faça isso melhor do que o sistema de unidades. Já existe há quarenta anos, funciona bem. Então, as pessoas pensam que estou a inventar. Não é isso, não estou inventando nada. Isso existe. p. 53 A arquitetura tem sido historicamente uma ferramenta bastante eficaz para a dominação social, ambiental, espacial e epistêmica - o que é necessário para uma descolonização da arquitetura, entendida aqui tanto como ambientes construídos, quanto não construídos? Como podemos reverter e até mesmo curar as feridas sociais e naturais da violência estrutural e histórica da modernidade colonial, patriarcal e capitalista? Essa é uma grande pergunta, mas acho que vou respondê-la de uma forma muito, muito curta. Acho que o termo “arquiteto/a” está protegido por lei, você não se pode chamar arquiteto/a, a não ser que tenha cumprido certos requisitos legais. Mas a palavra “arquitetura” não tem proteção legal. Interesso-me em fazer arquitetura, estou menos interessada em produzir arquitetos. Então, para mim, a mudança tem a ver com disciplina, não tem a ver com profissão. A profissão existe para outra gestão de risco legal, capitalista, qualquer que sejam as razões. Para lutar contra isso, é exaustivo. Eu prefiro abrir a arquitetura, porque ao abrir a disciplina, acho que se vai, no final de contas, mudar a profissão. Não me parece que se consegue mudar a disciplina mudando a profissão. Não sei exatamente quais são os valores ao certo. Algumas pessoas dizem que noventa e nove por cento do mundo é construído sem arquitectos. Assim, noventa e cinco por cento do ambiente construído mantém-se de pé. As pessoas ainda vivem, ainda vão trabalhar, vivem as suas vidas em ambientes que nenhum arquiteto jamais viu. Isso é altamente sofisticado! Será necessariamente o ideal? Não sei. Penso que há uma escala da qual o assentamento humano se torna complexo e desafiante, e se for deixado inteiramente auto-organizado, funciona. Será que florescerá? Não sei. E eu penso que as condições são muito variáveis. Por exemplo, quando eu trabalhava na África do Sul, toda a gente falava de informalidade. Vivi durante dezoito anos da minha vida na informalidade, só não sabia que se chamava informalidade. Mas o poder da arquitetura em rotular e construir uma base de conhecimentos em torno da informalidade é enorme. Todas as escolas de arquitetura, estão a lidar com informalidade. A arquitectura nomeia algo, e depois, torna-se isso. O currículo aborda-o, a terminologia fala com ele. p. 54 O que eu disse anteriormente, mudou tudo sobre a forma como eu penso. Pode ser positivo, mas também pode mudar de forma negativa. Verifiquei que, para muitos estudantes Sul-Africanos, começou a mudar de forma negativa. Começaram a olhar para as suas próprias práticas como problemas que precisavam de ser resolvidos!?... Não encararam as suas próprias práticas como simplesmente a forma como vivem. Então, o truque, de certa forma, para a disciplina de arquitetura tanto é uma questão de escala - o quanto se intervém, o quanto é permitido que as condições com as quais se trabalha também dialoguem. Essa relação entre problema e solução, é muito mais complexa do que nós gostaríamos. Existe uma parte da arquitetura que é muito “científica”. Aqui é que está o problema: a ciência é uma solução que vai resolver o problema. Mas acho que isso é um falso paradigma. Penso que o desafio urbano é realmente interessante, porque amplifica as nossas condições. Amplifica as consequências. Assim, se eu entrar, digamos, em certas partes da cidade de Acra, e vejo que surgiu um assentamento informal (seja lá como lhe queiram chamar) e é formado por migrantes que vieram do Norte do Gana, que podem ter entre si ligações de parentesco e redes de relacionamento. Por isso, quando alguém chega à cidade à procura de trabalho, instala-se, entra em contacto uns com os outros. Mas trazem práticas. Trabalham num assentamento comunitário de uma centena, duas centenas de pessoas. À escala de duzentas mil pessoas, os mecanismos pelos quais se auto-gerem tornam-se mecanismos diferentes. Portanto, independentemente do que me disserem sobre a resiliência da informalidade, a incapacidade de lidar com os esgotos, porque não têm a agência para lidar com eles, significa que o seu filho vai morrer. Podem dizer-me o que quiserem sobre a capacidade deste grupo para se auto-gerir, sim, com duzentas pessoas, com problemas, mas com duzentas mil, não. Arquitetos urbanistas, particularmente no chamado “mundo em desenvolvimento”, entram nessas situações com medo de chamar aquilo que vêem, mas incapazes de pensar de outra forma, de pensar sobre a questão, a não ser no sistema de gestão de cima para baixo ou no paradigma da organização de base, que é quem tem a culpa. Por vezes, quando vejo o trabalho de outras universidades na África do Sul, os estudantes vão fazer mapeamentos. Vão lá e cartografam. Mais ou menos o mesmo diagrama, mapeando tudo, desde um carro a uma pessoa, enfim. Digo eu: “O que se está a descobrir quando se cartografa?” Mas a questão aqui é que eles não têm outra forma de, diretamente, ver. Portanto, quando falo sobre a ferramenta, o mapa é a ferramenta errada. Não é o facto de os estudantes estarem a entrar nesse ciclo, é no que estão a entrar para ver, é a questão. Quero com isto dizer que as pessoas, as hierarquias sociais, as práticas sociais e a forma como o conhecimento é organizado costuma estar relacionado com o nível da experiência. Mas estes sistemas de compreensão não vêm do nada. Vêm de uma história, vêm de contatos, vêm da geografia, vêm da relação com o meio ambiente, vêm da relação que você tem com os seus vizinhos. Em noventa e nove por cento p. 55 das línguas Africanas, não existe uma palavra para público. Existe uma palavra para alguém que você não conhece, mas o sentido público, aí está, não existe. Portanto, se retirássemos as palavras público e privado da linguagem arquitetónica, ficaríamos sem nada. A arquitetura assenta na relação entre o público e o privado. Então, como disciplina, entramos num contexto de quase um bilhão de pessoas que não têm uma palavra para aquilo em que sua disciplina se fundamenta!… Como se faz isso? Para mim, não é apenas uma questão de escala, é uma questão epistemológica. Estas coisas são profundas. Se disser a alguém: “Você, homem A, ela é a mulher B, vocês formam uma parceria, não vamos chamá-la casamento, ela não é sua esposa, você não é marido dela, você produz uma criança. Qual é a estrutura social em que se cria essa criança? Achamos que isso é casamento?” Mas essa instituição, o casamento, tem múltiplos significados. Existem múltiplos ambientes, múltiplas construções, múltiplos meios para ser um cunhado. Na minha cultura, não temos a palavra “cunhado/a”, porque o casamento não é uma coisa legal. Portanto, mesmo a linguagem que descrevemos um ao outro, nas nossas relações, não é uma linguagem universal. Penso que a arquitectura acredita que tem uma linguagem universal. p. 56 Penso que as questões de clima, de gênero, de identidade, de globalização, agora estão a chegar de forma tão rápida. Há cinco, dez anos, talvez se falasse em sustentabilidade, mas ninguém falaria em crise climática. Quinze anos atrás, se quisesse ter uma discussão sobre raça e arquitetura, falavam para você ir para o Departamento de Sociologia! Essas questões não estavam no discurso. Acho que o que está a acontecer é a velocidade com que entram para a disciplina de arquitetura, não para a profissão, e a disciplina não sabe como reagir. Falamos sobre escala ou falamos sobre tecnologia ou algo assim. É algo essencialmente gráfico. A disciplina de arquitetura não sabe falar essas questões. Então, para mim, de certa forma, somos menos científicos do que pensamos. Não conseguimos ver com clareza que há um problema e apresentar soluções. A escola deve ser um lugar onde exploramos e experimentamos como fazê-lo. Se a escola não for o espaço protegido o suficiente para permitir que esse processo exploratório aconteça, daqui a cinquenta anos, estaremos a dizer as mesmas coisas. Todo mundo na África do Sul pode pensar: “O que é arquitetura Africana? Você sabe? Mostre-me. O que é?”, e eu diria: “Isso não é uma pergunta.” Porque é muito cedo para dizer o que é. Tem que se desenvolver. E se a escola de arquitetura não pode ser o lugar que permita crescer e evoluir, para que servirá a escola? Qual é o propósito da escola? Dada a atual turbulência mados, socio-ambientais e direita radical em todo o o papel da profissão? Será sobre as migrações forçadas, os conflitos arpolíticos, e perante esta virada política da mundo, qual é o papel da arquitetura? Qual é apenas para continuar refém do mercado? Nesse sentido, eu diria o seguinte: a escola de arquitetura é mais importante agora do que nunca. Se você se aliar ao poder que a profissão tem, pode ter um poder enorme! O poder para mudar a maneira como interagimos, a maneira como nos comportamos, a maneira como pensamos. Se você aliar a esse poder com o desejo de dizer algo diferente, e isso está vindo deste grupo de estudantes no Harlem, não dos estudantes que estão vindo da China para ir para a Columbia e pagar cem mil dólares. Esses não são os alunos que você quer dar poder para falar. São estes alunos, alunos de lugares como a Spitzer, Joanesburgo, Tanzânia… São esses alunos que têm algo a dizer. Historicamente, estas pessoas nunca tiveram voz, o seu trabalho sempre foi o de herdar a voz de outra pessoa e, então, aprender a falar essa voz. Acho que agora esse equilíbrio mudou e o único lugar que julgo que pode proteger o espaço por tempo suficiente para que essa voz se torne autêntica, é a escola. Então, para mim, as escolas, neste momento, são a estratégia chave para a mudança. Se olharmos para o continente Africano nos anos cinquenta e sessenta, no momento das independências, a educação era o campo de batalha. Não é isso que se passa aqui como educação, mas o que estamos fazendo no Spitzer é treinamento. Mas não é fácil mudar de um dia para o outro. Qual é a sua expectativa dessa mudança como reitora da Spitzer? Porque você está a lidar com um corpo docente que está aqui há muito tempo, provavelmente com convencionalismos e tradições profundamente enraizadas. É verdade, mas a mudança em Joanesburgo foi rápida. Eu não esperava que fosse tão rápido, sabe? Quando cheguei lá, pensei: “Este vai ser um projeto de vinte anos.” Acho que dentro de três anos, já se poderia ver isso. Eu não acho que demore tanto. Penso que provavelmente a mídia social tenha ajudado, mas também movimentos sociais. Parece-me que os mais jovens têm um maior sentido do seu próprio poder. Há dez anos atrás, isso teria sido quase impossível de conceitualizar. Isso é o que é difícil sobre o equilíbrio entre experiência e energia. Eu estava a conversar com alguém em Londres, ela até vai cá vir dentro de duas semanas, vamos lançar um livro para um projeto chamado Breaking Ground, que é sobre mulheres na arquitetura, e o simpósio chamava-se Difficult Women or Good Girls, e vamos começar a falar sobre ativismo … Eu estava a dizer-lhe que desde que fiz 55 anos, na minha família, no Gana, as pessoas p. 57 às vezes referem-se a mim como sábia, e isso não é algo que se ouviria de alguém descrever alguém que tem 30 anos. Sabedoria é algo que vem com a idade, mas não é conhecimento e não é inteligência. É uma estranha combinação de maturidade, experiência, fracasso ... Há uma razão pela qual você pensa na sabedoria como algo que acontece depois, porque é algo complexo, que não se adquire. De alguma forma temos que vivê-la. E isso para mim foi um elogio enorme, porque estou acostumada a ouvir: “Ah, você é inteligente”, esse tipo de comentário. Mas para alguém dizer: “Oh, eu acho que você é sábia”, confesso que me surpreendi com o quão tocada fiquei. De certa forma, é meio aquilo que quero transmitir ao corpo docente, aqui, é que o trabalho do académico mais velho não é simplesmente passar o conhecimento, mas transmiti-lo de maneira sábia, o que também significa algo sobre compreender onde se encontram. Portanto, não acho que os professores mais antigos não tenham nada a dizer. Parece-me que têm coisas interessantes a dizer, mas acho que não podem dizê-las da forma como tem sido historicamente dita, em que: “Aqui está o quadro-negro. Aqui está minha fórmula. Venha aqui.” Este é o grande desafio. Aqui, penso que o termo generosidade é um valor que tem sido tão subestimado. Se uma instituição tem generosidade na forma como faz a sua gestão, isso pode encorajar uma cultura de generosidades. Como atualmente estamos, as instituições não passam de uma colecção de pessoas, que têm de trabalhar em conjunto. Depois das cinco horas vai cada um para seu lado... Depois, há coisas muito parvas, como, por exemplo, não termos um bar! Não conheço nenhuma boa escola de arquitetura que não tenha um bar! [risos] Notas 1 (Nota dos editores [N.E.]): Esta entrevista foi escrita no português de Portugal. Os editores decidiram acolher neste dossiê as múltiplas grafias da língua portuguesa, conforme é escrita em cada um dos países lusófonos. p. 58 2 (Nota da Entrevistadora [N. Ent.]) Faculdade de Arquitetura da Bartlett, University College London, onde Lesley estudou arquitetura. p. 59 A “praxis errante” e a multiplicidade das arquiteturas africanas Entrevista com Patti Anahory Plataforma Storia na Lugar, Cidade da Praia, Cabo Verde; Columbia University, EUA. Quem entrevista: Andréia Moassab MALOCA, PPGPPD, PPGIELA e CAU / UNILA, ¡DALE! / UFBA Patti Anahory Patricia (Patti) Anahory é arquiteta pelo Boston Architectural College e mestre em arquitetura pela Princeton University, ambas nos Estados Unidos. Após o mestrado, a arquiteta aprofundou a sua pesquisa sobre as práticas construtivas e culturais em diversos países no continente africano, tendo viajado durante catorze meses pelo continente, com financiamento concedido pelo Prémio Rotch Fellowship (EUA). Anahory foi a segunda mulher a ganhar o prêmio em mais de um século de sua existência e foi a primeira a propor que a viagem fosse pelo continente africano. Ainda, foi diretora do Centro de Investigação em Desenvolvimento Local e Ordenamento de Território da Universidade de Cabo Verde - CIDLOT, de 2009 a 2012. Em 2017, integrou o júri da primeira edição do Africa Architecture Awards. Nos seus trabalhos acadêmicos, tem abordado questões de gênero, identidade, construção e reconstrução de memória e suas traduções arquitetônicas. É co-coordenadora do projeto Storia Na Lugar, uma plataforma que visa explorar as possibilidades de storytelling, mídia participativa e projetos de mapeamento em contextos de marginalização. Em 2021, com César Schofield e a plataforma Storia Na Lugar, expôs na 17ª Exposição Internacional de Arquitetura em La Biennale di Venezia (Itália), com o trabalho Água(s): Produção de Territórios e Imaginários. Atualmente, exerce a função de avaliadora externa do curso de arquitetura no departamento de Arquitetura e Planeamento da Universidade de Ciência e Tecnologia da Namíbia; como moderadora externa na escola de arquitetura da Universidade de Johannesburgo e como avaliadora crítica na Universidade de Cape Town, ambas na África do Sul. É curadora de arquitetura e exerce a profissão também como projetista, tendo diversas obras e projetos em Cabo Verde, Gana e Portugal. Patrícia Anahory e Andréia Moassab trabalharam juntas no CIDLOT/UNICV e desde então são parceiras em diversos projetos. Publicaram juntas nas coletâneas Rogue Urbanism, editada na África do Sul, em 2013, e Sub-Saharian Africa: Architectural Guide, editada na Alemanha, em 2020. São autoras do livro Panorama da Arquitetura Habitacional em Cabo Verde, editado pela Universidade de Cabo Verde, com lançamento previsto para o primeiro semestre de 2022. p. 63 Com uma experiência de mais de vinte anos atuando como arquiteta, tendo feito a graduação e o mestrado nos Estados Unidos, é interessante notar que, ao contrário de uma reprodução da arquitetura hegemônica que sabemos dominar aquele país, você tem percorrido caminhos em direção oposta, defendendo o que posso chamar de uma “arquitetura da autonomia” parafraseando o educador brasileiro Paulo Freire. Isto não seria contraditório com a formação profissional que você recebeu, inclusive tendo estudado com alguns dos “grandes” nomes da arquitetura? De fato, estudei e atuei profissionalmente nos Estados Unidos por muitos anos. Porém, nunca tive dúvidas do meu lugar, do lugar em que cresci e das condições desiguais impostas aos países no capitalismo globalizado. Eu nasci a bordo de um navio, em meio ao oceano Atlântico, quando meus pais se deslocavam para São Tomé e Príncipe. Ali, passei os primeiros anos da minha infância. Vim para Cabo Verde ainda criança, no ano da independência, conquistada em 1974. Foi após concluir o liceu, equivalente ao ensino médio no Brasil, que migrei para os Estados Unidos, onde vivi por mais de duas décadas. Minha mudança de país para seguir os estudos foi devido a não existir, nessa altura, ensino superior em Cabo Verde, como aconteceu em muitos países africanos, consequência das políticas de dominação coloniais, desinteressadas em qualificar a população local, uma das maneiras para manter a dominação. n. 1 p. 60-79 2022 ISSN: 2965-4904 Nos Estados Unidos, nem na graduação, nem no mestrado, o percurso curricular fez qualquer referência ao meu contexto cultural, político ou socioeconômico. Tampouco as escolas de arquitetura estavam preocupadas em desenvolver uma compreensão geopolítica mais ampla, visando entender as implicações espaciais e construtivas decorrentes da dominação colonial, não apenas em África. Por isto, este tema é uma luta imprescindível e constante, não apenas nos meus processos de autoeducação, mas também naquilo que posso colaborar para alterar este cenário, como venho fazendo nos diversos tipos de assessorias a universidades e cursos de arquitetura no continente africano. Julgo que as questões de representatividade são fundamentais para serem enfrentadas, ainda que, por si só, não consigam desmontar por completo as opressões da geopolítica capitalista. Vale a pena mencionar que durante os quatro primeiros anos da faculdade, no departamento de arquitetura, só conheci duas outras colegas negras. Dos colegas homens negros, havia um pouco mais. Mesmo assim, eram menos de seis. Nessa instituição, sentia-me multiplamente isolada: economicamente; identitariamente, por ser negra e africana, portanto, minoria, pelas ausências de referências curriculares; e nos escritórios de arquitetura, onde trabalhei desde o primeiro ano do curso. O meu desenquadramento era notável nas minhas roupas, por vezes, impróprias ao clima, e na disponibilidade financeira para a aquisição de material do curso. Nessa altura, não tínhamos o auxílio de computadores para a produção de trabalhos. Era necessário um enorme investimento em materiais de desenho, para maquetes e, claro, livros. Quando iniciei os meus estudos, era ainda muito jovem, sensível, mas politicamente naive, sem ferramentas para me posicionar diante destas situações. No contexto das dinâmicas raciais, equivocadamente binárias, dos Estados Unidos, eu era de difícil encaixe nessas categorias. Não branca, no entanto, visivelmente pouco negra. Em parte, eu era acolhida como hispânica/caribenha e menos acolhida pela comunidade afro-americana, uma espécie de “sem lugar”. Soma-se aí que o conteúdo curricular nunca abordou qualquer questão minimamente relacionada a realidades mais próximas dos meus contextos culturais e de identidade. Mesmo estando localizada num bairro negro, e dentro da multicultiral cidade de Nova Iorque, a escola de arquitetura e as disciplinas não abordavam essas realidades. Eram zonas, pessoas e questões invisibilizadas. A história de arquitetura que estudei chegou ao continente africano apenas através do Egito. Nunca estudamos arquitetos negros, menos ainda, arquitetas negras. Não tive nenhum professor negro e havia poucas professoras mulheres. Em termos de convívio, ressalto que passava pouco tempo na universidade, porque vivia 1 com os meus avós e não nas residências estudantis, como era comum. Eu tinha que trabalhar para poder complementar os empréstimos para pagar os estudos; era a única aluna na minha turma (e de outras) que estudava em período integral e trabalhava. p. 65 Então, como mulher e como mulher africana, que quer exercer e pensar a profissão para o contexto africano e também para a diáspora e para o mundo, tenho tentando suprir essas ausências em minha educação formal. A despeito dessas dificuldades, ou talvez por conta delas, sua trajetória acadêmica foi marcada por projetos provocativos de excelência, que fazem emergir a questão racial. Este foi o tema do concurso de projetos que resultou na primeira colocação no prêmio Rotch Fellowship e também de seu mestrado, quando você concebeu um memorial da escravatura no Senegal. Poderia comentar sobre este projeto e os desafios para a arquitetura contemporânea em África? As universidades do Norte, apesar de extremamente conceituadas, têm historicamente ignorado certos saberes ou um continente inteiro, como o africano. A universidade onde fiz meu mestrado, Princeton, foi fundada no século XVIII. Sua escola de arquitetura reforçava e reproduzia, naqueles anos, o que há de mais hegemônico: os grandes projetos autorais assinados e excepcionais, normalmente descolados das realidades locais. Tive que vir a resgatar por interesse próprio outras práticas e reflexões críticas no processo formal educativo e fora dele, o que nem sempre aconteceu de maneira tranquila. Na ocasião do meu mestrado, em 1999, a UNESCO tinha acabado de publicar um edital para a concepção de um memorial da escravatura no Senegal, motivo da minha opção temática e projetiva para a pós-graduação, que teve por título Home[ing] 2 landscapes: Mapping Memory[-ial] Dakar, Senegal, a slavery counter-memorial . Entre várias outras questões, causou estranheza o fato da agência internacional ter escolhido o local apenas por ser o ponto mais ocidental do continente africano. Como um critério geográfico, meramente simbólico, podia ser a base para escolha locacional de um memorial para um período tão violento na história da humanidade? Minha opção foi, portanto, um projeto de intervenções em várias escalas e ações: na arquitetura, paisagem, nos mapas (de navegação), performance, em resposta aos vários problemas de concepção do edital – a começar pelo critério da locação. Foi também, uma provocação sobre a memória e os espaços de violência, enfrentando o desafio de como a arquitetura, não apenas como espaço construído, igualmente como linguagem, estratégia ou coreografia, poderia confrontar uma história remota com o contexto atual. p. 66 Por acaso, naquele semestre, a arquiteta e historiadora negra, Mabel Wilson, nessa altura doutoranda, estava de visita no departamento e acabou sendo minha co-orien- tadora. Hoje em dia, ela tem um trabalho muito respeitável de valorização e resgate da história afro-americana, problematizando a relação entre raça, racismo e arquitetura. Há quase vinte anos, isso era uma raridade. Devo ressaltar as dificuldades emocionais subjacentes a tais escolhas inusuais. Havia muito preconceito entre os e as colegas, na medida em que o tema passou a despertar curiosidade dos professores e professoras. Foram muitas batalhas diariamente, inclusive contra o racismo velado e, por vezes, escancarado mesmo. Num destes episódios, um professor perguntou como é que eu tinha conseguido entrar em Princeton, com insinuações vexatórias de desconfiança por uma arquiteta negra africana, com um percurso académico modesto, conseguir estar num espaço “tão privilegiado”. Dito de outra forma, muitas vezes a trajetória acadêmica é uma experiência bastante solitária, por não se ter nem colegas, nem professores ou professoras com quem comunicar a nossa realidade, com quem dialogar. Por isso, julgo indispensável criar espaços dentro das instituições, como faz o MALOCA, numa espécie de militância para dentro da academia, a tratar estas questões, estas identidades e histórias excluídas. Ao sempre propor meus projetos e estudos acadêmicos no continente africano, eu não tinha uma orientação apta a dar respostas, nem mesmo para pensar junto. Então, os desafios para a arquitetura contemporânea em África devem necessariamente abarcar o ensino, enfrentando a invisibilidade e o desinteresse por práticas espaciais e arquitetônicas não-hegemônicas, pautando as instituições e o fazer científico para a reversão deste cenário. Nesse sentido, é vital questionar a completa ausência da arquitetura africana do ensino de arquitetura e as raríssimas referências de profissionais negros e negras durante o curso, o que o ocorre no mundo todo. O ensino acaba por reproduzir o racismo estrutural, nas suas escolhas curriculares, nas referências bibliográficas e também arquitetônicas. Temos vindo a observar que a Universidade se torna cada vez mais um braço instrumental do capitalismo, com pouco espaço para o pensamento crítico. Cabe perguntarmo-nos, então, qual o lugar da arquitetura africana no ensino, nesse contexto? A arquitetura como área de conhecimento ou forma de compreender a nossa relação com o mundo, tem como grande desafio o ensino. A escolha curricular de ignorar certos temas e formas de conhecimento nos currículos, precisa ser urgentemente revista. Podemos afirmar, com tranquilidade, que os cursos apresentam vários semestres de história de arquitetura em que não consta nenhuma referência fora do p. 67 contexto hegemônico de produção arquitetônica. Ou seja, estamos falando de um “não-lugar”, ou de um lugar a ser conquistado no ensino profissional. No meu tempo de universidade, nos anos de 1990, o que prevalecia e ainda prevalece em muitas universidades até hoje, eram os estudos dos assim chamados “clássicos” da arquitetura ocidental, desde a Grécia Antiga. Talvez, até se contemple o Egito antigo, sem qualquer outra referência da rica tradição arquitetônica no continente africano, seja da antiguidade, seja da atualidade. Além disso, sequer era incluída qualquer relação ou referência com as demandas hodiernas do continente africano para qualificação de seu espaço construído e habitado. Poucas pessoas, nem mesmo estudantes de arquitetura, conhecem as civilizações africanas antigas, seus modos de morar e fazer cidades - distintos dos critérios europeus para definição de urbanidade; ignoram a grandiosidade arquitetônica de Lalibela; as técnicas construtivas milenares em terra, como as usadas em Djenné; a arquitetura biomimética dos Dogon, no Mali; para citar somente estas. É também importante, ressignificar este passado construtivo e espacial pré-colonial para desenvolver uma arquitetura contemporânea própria. Não pretendo, com isso, um olhar nostálgico para o passado, nem vislumbrar uma arquitetura estilizada africana. Pelo contrário, defendo uma valorização dos saberes e compreensão profunda das formas de habitar e de construir milenares que possam apontar para formas mais equilibradas de conceber e materializar os espaços no presente. Sob o império Mali, por exemplo, foi construída a mesquita JingerBer em Timbuktu, pelo poeta-arquiteto Abu Issak, no século XIII e é, até hoje, o maior edifício em adobe do mundo. Localizada na cidade de Djenné, no Mali, o templo foi declarado patrimônio mundial pela Unesco em 1988. Outra mesquita que vale mencionar é a de Bobo-dioulasso, na Burkina Faso. A construção, do século XIX é toda em adobe e madeira, cujos pináculos salientes são utilizados de apoio para a constante manutenção do adobe. Suas cúpulas ogivadas são características da arquitetura sudanesa. Da terra para a pedra, as igrejas de Lalibela, na Etiópia, foram “extraídas” da rocha no século XII. Isto é, foram escavadas em grande monolito de rocha vulcânica a muitos metros de profundidade, constituindo um exemplar único e grandioso deste tipo de construção. p. 68 É inconcebível que os cursos de arquitetura, mesmo no continente africano, não tratem destas práticas arquitetônicas em suas aulas, o que tem chamado minha atenção desde a graduação. Há, no continente, uma gama de profissionais produzindo arquitetura e reflexões para a nossa área extremamente relevantes. Alguns são bem conhecidos internacionalmente, como Lesley Lokko, Mariam Kamara, Kunle Adeyemi, David Adjaye ou Francis Kèrè. Sem mencionar outros arquitetos e arquitetas, pro- jetistas e teóricas/os já com uma trajetória sólida, que deveriam ser referência nos cursos: Mpho Matsipa, Ilze Wolff, Sumayya Vally, Paula Nascimento, Tosin Oshinowo, Tuliza Sindi, Luyanda Mpahlwa, Rahel Shawl, Doreen Adengo, Mokena Makeka, Issa Diabaté, Joe Addo, Christian Benimana, Kabage Karanja, Stella Mutegi, Khensani de 3 Klerk e Sonja Spammer, para além daquelas que permanecem de fora das grandes 4 plataformas de visibilidade . No Brasil, os currículos dos cursos de arquitetura e urbanismo são bastante eurocentrados e pouco críticos, muitos, inclusive, voltados exclusivamente para atender ao mercado imobiliário. No continente africano, o ensino segue na mesma direção? Ainda sobre educação, nos últimos anos, você tem trabalhado como avaliadora e parecerista em diversas universidades africanas, com destaque para a Universidade da Namíbia, além da sua experiência pregressa, marcante, na direção do CIDLOT/UNICV. Nesse seu vasto território de atuação acadêmica, quais são as práticas de ensino de arquitetura, em África, que têm se destacado? Das poucas escolas de arquitetura existentes em África, muitas também têm, de modo geral, um currículo desatualizado, eurocentrado, pouco crítico e que não está a dar resposta às necessidades e à forma de estar nos diversos contextos, climas, culturas, paisagens construídas e imaginárias do continente. Soma-se aí, o fato de que são ainda poucas as universidades no continente africano que têm departamentos ou faculdades de arquitetura, levando a que muitos e muitas jovens estudem fora dos seus contextos - mormente com pouco ou quase nada de base curricular pertinente às suas realidades no continente africano. No entanto, também já se encontram propostas de pedagogias transformadoras, como são os casos da criação e sucesso do programa de pós-graduação da Graduate School of Architecture - GSA, da Universidade de Johannesburgo, na África do Sul, em funcionamento desde 2015, sob a coordenação da multipremiada arquiteta e educadora Lesley Lokko, que fundou recentemente o African Futures Institute em Acra, Gana, e que irá com certeza ser um espaço marcante de produção de pensamento crítico; do African Design Centre, fundada em Ruanda, por volta da mesma altura, com a visão e implementação do arquiteto Christian Benimana, que já foi descrita, inclusive, com a referência eurocêntrica e limitada de ‘African Bauhaus’; ou do African Centre for Cities - ACC, na África do Sul, fundado em 2007, e dirigido, desde então, por Edgar Pieterse. p. 69 O modelo pedagógico da GSA é centrado no questionamento das ferramentas do campo da arquitetura a partir de experimentações que confrontam os legados racistas, coloniais e eurocêntricos que ainda dominam o ensino. Nesse sentido, os exercícios projetivos são desenvolvidos ao longo de um ano, sob orientação de uma mesma professora ou professor. A partir da dialogia com o corpo estudantil, formado por arquitetos e arquitetas, são definidas as abordagens da pesquisa a guiar a atividade projetual 5 com base no tema pré-definido. Esta metodologia é baseada na unit system que Alvin Boyarsky desenvolveu na Architectural Association, em Londres, nos anos de 1970. Por sua vez, o African Design Centre propõe um currículo interdisciplinar com uma abordagem abrangente, por assim dizer, que visa formar designers habilitados e habilitadas a uma profunda conexão entre o meio ambiente construído e os direitos humanos. O currículo foca num aprendizado territorializado, a partir da conexão dos alunos e alunas aos seus contextos, para que projetem respostas pensadas especificamente para suas realidades africanas, explorando as tradições artesanais locais 6 e pesquisam questões urgentes que afetam o continente . Vale lembrar, ademais, 7 do African Centre for Cities , dentro da Universidade de Cape Town, na África do Sul, que desde a sua implementação tem vindo a produzir conhecimento sobre cidades africanas para subsidiar políticas públicas e qualificar quadros para a gestão urbana no continente. Estes centros têm abordagens muito distintas mas, ao mesmo tempo, complementares. Um voltado para as técnicas locais, outro que incentiva uma busca dos significados da arquitetura e um mais voltado para o contexto urbano. São muitos caminhos possíveis. Estas escolas e centros estão fomentando imaginários do que pode vir a ser a arquitetura africana em suas próprias bases e não referente à conjuntura geohistórica que construiu a profissão na Europa Central, no início do século XX. Está-se, assim, permitindo um exercício livre para compreender o continente, experiências vividas, propor futuros e utopias e, ao mesmo tempo, desenhar o campo disciplinar que emerge desse contexto. p. 70 O curso de arquitetura e urbanismo da UNILA tem uma preocupação em formar profissionais para um mercado de trabalho ampliado, isto é, não apenas o usual exercício liberal da profissão, mas valorizar o ou a profissional das gestões públicas e, ainda, das assessorias técnicas comuni- tárias, num exercício, digamos, mais popular da profissão. Como tem sido, no continente africano, caracterizado o exercício profissional? Depois de longa data trabalhando nos EUA, como tem sido sua experiência de atuação em Cabo Verde? Quando defendo que é preciso oxigenar o debate sobre a formação, o mesmo vale para o exercício da profissão, são duas faces da mesma moeda. No caso africano, mas não exclusivamente, é preciso colocar em pauta as condições de atuação e também o limitado acesso da população a serviços de arquitetura. Acredito que, à semelhança da América Latina, atualmente, a maioria da população em África, nas zonas de rápido crescimento, constrói sem acesso a serviços técnicos de arquitetos e arquitetas, nos moldes usuais de atuação profissional de base privada e liberal. Em Cabo Verde, pode-se afirmar que acima de 70% da população não recorrem a estes e estas profissionais, para a concepção e eventual construção ou reparação de suas habitações, o que se repete no resto do continente africano. Vale lembrar, ademais, que existem imensas obras milenares feitas em África, de extrema qualidade construtiva e estética, feitas sem o auxílio de arquitetos ou arquitetas. Contudo, o que acontece na atualidade é um contínuo e super acelerado crescimento urbano, muito distinto do período pré-colonial. Isto significa, por sua vez, um desafio para o modelo de escritório privado, de prestação de serviços, na medida em que as demandas são escassas e servem meramente uma classe privilegiada. Ademais, os serviços públicos mantêm poucos profissionais em seus quadros, o que faz com que certamente muitas regiões não tenham nenhum acesso a tais profissionais. Estes limites impõem as seguintes questões: que tipos de atuação se adequam a estes contextos e qual o papel social do arquiteto e da arquiteta nessas situações? De alguma maneira, fiz este exercício quando, em 2009, regressei a Cabo Verde e tive oportunidade de fazer parte da primeira universidade pública do país, recém-implantada. Fui convidada a montar e dirigir seu Centro de Investigação em Desenvolvimento Local e Ordenamento do Território, um lócus de pesquisa e reflexão crítica sobre o espaço - que acabou se distanciando desta função, diga-se, nos últimos anos. Na ocasião pudemos colocar em prática esta perspectiva de pensar o território a partir das questões locais, nos esforçando por frear a imposição de uma agenda externa, sobretudo vinda da União Europeia. O desafio posto era enorme, a começar pela extrema ausência de bibliografia – se é difícil livros sobre arquiteturas e cidades em África, mais difícil é numa perspectiva crítica, e ainda mais raro, em língua portu- p. 71 guesa. De qualquer maneira, nos quase quatro anos que estive à frente do Centro, pudemos alinhavar uma agenda própria e pautar diversos temas significativos para o país naquele momento. Entre os muitos os desafios do CIDLOT, uma das principais questões com a qual nos deparamos foi a ausência, nos estudos urbanos, da urbanidade em África anterior à dominação colonial. Ficou evidente, além disso, o quanto a definição de cidades pouco serve às realidades urbanas em África. No livro Panorama da Arquitetura Habitacional em Cabo Verde tivemos muitas dúvidas com relação à urbanidade ou ruralidade de determinadas tipologias, justamente porque tais conceitos dizem pouco respeito às múltiplas complexidades de contextos no continente, para ficarmos apenas neste ponto. Dito de outra forma, o ensino é uma das dimensões a serem transformadas e deve vir acompanhado de pensar tanto as condições de trabalho no continente quanto o acesso da população a estes serviços profissionais, tarefa urgente das universidades e das ordens profissionais. Em 2017, você esteve no Brasil para a conferência de abertura do I En- 8 contro Internacional do MALOCA, realizado na UNILA, em Foz do Iguaçu. Vinda diretamente da África do Sul, você expôs alguns dos dilemas de ter sido júri de um prêmio internacional dedicado à arquitetura africana, o Africa Architectural Award. Poderia nos contar um pouco daquele contexto e a pertinência de um prêmio como este? Felizmente, nos últimos anos tem-se fortalecido no continente uma rede de arquitetos e arquitetas críticas, cujos efeitos começam a despontar. O prêmio Africa Architectural Awards faz parte deste cenário emergente e colaborativo. Apesar das complexidades e das imensas contradições de um prêmio, foi uma oportunidade excelente para travar discussões profícuas. p. 72 Primeiramente, uma premiação sempre dá visibilidade, o que em termos de arquitetura no continente africano, é fundamental. Além disso, as categorias da premiação saíram do lugar comum de valorizar apenas obras construídas, alargando o escopo da arquitetura. As categorias de premiação incluíram trabalhos teóricos, trabalhos de estudantes, recém-formados ou formadas, e projetos não construídos. Ressalte-se que as assimetrias regionais são enormes, no que respeita às oportunidades de ter sua uma obra construída. A possibilidade de concorrer ao prêmio com obras não-construídas é primordial num contexto de premiação no continente africano. Outra novidade positiva naquele prêmio foi viabilizar que as candidaturas fossem apresentadas numa plataforma digital – evitando os altos gastos com impressão e correio – ao mesmo tempo em que permite a um largo público o acesso aos projetos concorrentes. A página do prêmio teve mais de um milhão de visitantes, cobrindo uma lacuna da total ausência de publicações especializadas que se dedicam à produção de arquitetura no continente africano. Existem muitos concursos internacionais onde estamos excluídos de alguma forma, direta ou indiretamente. Portanto, o Africa Architectural Awards foi um espaço muito expressivo para dar visibilidade, para gerar reflexão – o que nunca vai ser consensual, as escolhas são sempre sob tensão. Foi, sem dúvida, um trabalho bastante difícil para o júri, que marcou uma posição que gerará muito desdobramento nos próximos anos, cumprindo assim o relevante papel de arejar e fomentar o debate sobre arquitetura no continente africano e sobre arquitetura africana. Finalmente, na última década, após a experiência acadêmica no CIDLOT, você tem se dedicado a intervenções artísticas de diversas naturezas, o que culminou com a sua participação – ao lado de César Schofield Cardoso, na prestigiada Bienal de Arquitetura de Veneza, realizada em 2021. O que te impulsionou a adotar a arte como espaço privilegiado para o pensamento crítico? Nesses trabalhos contundentes, o território e a vida das pessoas parece ser um denominador comum. Comente um pouco como a arte tem permitido problematizar estas questões? Num primeiro momento, desenvolvi o que designo como uma práxis estético-política, em paralelo à minha atuação no CIDLOT, onde fomos parceiras. Pudemos estabelecer ali, desde o início, uma ponte com artistas que vinham trabalhando o espaço urbano. Um dos nossos primeiros eventos que realizamos no CIDLOT foi “arte, ocupação do território, desenvolvimento local”, no qual contamos com artistas, curadoras e pesquisadoras vindas do Brasil, França e África do Sul para trocar experiências e reflexões com artistas locais, de Santiago e São Vicente. Assimilamos, no centro, a arte imbricada com o fazer científico como ferramenta central para compreender o mundo. Com isso, ficou cada vez mais evidente, para mim, algumas limitações dos projetos acadêmicos em chegar a um público mais amplo, devido, sobretudo a sua linguagem mais hermética. 9 Em paralelo ao CIDLOT, integrei o coletivo XU , grupo com o qual participei com o da exposição “Climate Change in Africa: Africa Speaks and Connects 2010”, trabalho Cape Verde social [un]sustainability. Tratava-se de uma mostra digital com artistas, cien- p. 73 tistas e ativistas, realizada ao mesmo tempo que a 16a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas - COP16, ocorrido no México, em 2010. A proposta dos organizadores foi pautar a COP do ano seguinte, que seria no continente africano. A nossa proposta teve por objetivo problematizar o conceito de sustentabilidade, por meio da linguagem artística. No ano seguinte, montamos a exposição completa, no Palácio da Cultura Ildo Lobo, centro cultural na cidade da Praia. Com fotomontagens, instalações e audiovisual, propusemos uma contra-narrativa da sustentabilidade com base em quatro pilares: água, lenha, areia e território, centrais no cotidiano cabo-verdiano. O trabalho convidava a uma reflexão e compreensão de um ciclo ampliado da produção dos impactos ambientais, sobretudo nos países marcados pela pobreza. Ao tensionar o conceito de sustentabilidade, incluindo a questão social, intentamos mostrar as contradições do discurso hegemônico da preservação ambiental, útil à manutenção do capitalismo e, ao mesmo tempo, extremamente inadequado para contextos de população carenciada 10 e de escassez de recursos naturais. Fui, então, enveredando por caminhos outros, que visassem questionar narrativas dominantes hegemônicas e ressignificar seus sentidos. Em 2012, saí da universidade para poder ter mais liberdade nos projetos próprios de engajamento local comunitários e práticas participativas, num processo também de dar a conhecer essa realidade que não constava nos programas de ensino e investigação, esta produção de conhecimento fora do ambiente acadêmico. Nos anos seguintes ao meu desligamento da UNICV, propus, com o artista multimídia César Schofield Cardoso, a plataforma Storia na Lugar, na qual desde 2016 temos vindo a lidar diretamente com a comunidade. Storia na Lugar, em língua cabo-verdiana tem um duplo sentido: são histórias de vida das pessoas, que produzem o seu espaço, produzem a cidade – têm, portanto, a ver com histórias no lugar. Também pode significar “colocar a história no lugar”, ou seja, alargar e reverter percepções limitadas e preconceituosas dos lugares, focando nas perspectivas dos próprios habitantes. Ainda, o nome forma um trocadilho em cabo-verdiano: storia é estória, mito, conto, fábula e história. Já, nha lugar, o meu lugar, refere-se à terra de cultivo, a área fértil. p. 74 A partir destas várias sutilezas é que embasamos nossas análises socioespaciais e desenhamos modos de dar visibilidade a várias comunidades. Este é o caso do 11 web-documentário Finka Pe , que conta a história de um espaço comunitário num dos bairros marginalizados da capital, criado a partir da ocupação, por um grupo de jovens ativistas, de um antigo vestiário esportivo desativado. Com a apropriação de edificações abandonadas, reivindicam espaços, políticas públicas para as comunidades e inseriram-se nos fóruns de decisão sobre a cidade. Outro trabalho interessante da plataforma foi a instalação multimídia Island Crossings: between myths and hallucinatory 12 realities , apresentada na exposição “African Mobilities”, promovida pela Technischen Universität, na Alemanha, em 2018. Trouxemos, ali, noções de imaginários e deslocamentos insulares, pelas lentes do comércio e da circulação de produtos, explorando as múltiplas passagens, reais e imaginárias, forçadas e desejadas, que caracterizam o país. Em 2017, desta vez como artista sola, fui uma de seis artistas, entre nacionais e internacionais, convidados e convidadas para propor uma instalação no Museu da Resistência de Cabo Verde. O Museu ocupa as instalações de um antigo campo de concentração utilizado pela PIDE - Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a polícia política portuguesa atuante entre 1945 e 1969, responsável pela repressão de todas as formas de oposição ao regime político do Estado Novo. Eram desterrados para as ilhas de Cabo Verde, mais especificamente para o Tarrafal, na ilha de Santiago, os opositores do regime ditatorial e lutadores anticoloniais que defendiam a independência dos países africanos sob dominação portuguesa. Há décadas, as antigas instalações administrativas do campo de concentração, ao redor do Museu, estão ocupadas por pessoas maioritariamente retornadas de São 13 Tomé e Príncipe, após a independência dos países africanos . Com o peso inerente ao sofrimento imposto - no passado e no presente -, realizei duas intervenções convergentes: Pedestais de [X]clusão, no circuito turístico proposto pelo governo para visitação externa aos muros da prisão; e Volumes Vazios [Vazios] de Memórias, no interior do espaço prisional. A proposta problematizou a falta de conexão com seus lugares e a (im)possibilidade de reconstrução da memória da violência em projetos museológicos. Por último, gostaria de destacar como a água – ou a falta dela tem sido um elemento fundamental em meu trabalho para compreender e debater Cabo Verde, presente desde a instalação com o coletivo XU. Em 2021, este é o ponto central da intervenção Água(s), Produção de Territórios e Imaginários, que levei com o Storia na Lugar para a 17ª Exposição Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza, cujo tema foi “como iremos viver juntos?”. A nossa proposta partiu do imaginário de um país marítimo, rodeado pela imensidão do oceano, onde gigantescos resorts oferecem oásis, com vegetação abundante e piscinas imensas, que estendem a imensidão do azul, que se contrapõem, perversamente à extrema escassez de água potável no país. Nessa direção, a obra expos o “imaginário azul” cenográfico dos resorts turísticos da ilha da Boa Vista, os quais são, ao mesmo tempo, o local de trabalho dos e das habitantes da ilha, que em contraste a tal abundância, sofrem com a escassez de água potável p. 75 e, muitas vezes, a falta de água canalizada em suas casas. Para ser ainda mais contundente, montamos a instalação com garrafas de água PET, símbolo da privatização da água e da pressão ecológica no planeta. De um modo geral, estas experiências artísticas têm me possibilitado levar reflexões e ações para perto das pessoas. Sua práxis estético-política questiona narrativas dominantes hegemônicas e procura ressignificar sentidos geopolíticos a partir do continente africano, com forte relação com os territórios. Nas suas palavras, estas seriam “intervenções enraizadas”. Você poderia definir um pouco mais este termo? Tenho usado o termo “intervenções enraizadas” para demarcar um esforço epistêmico de pensar o mundo considerando as múltiplas opressões de gênero, raça, classe e geografia em simultâneo. Apesar de trazer no meu corpo estes marcadores, por ser uma mulher, negra, africana, da classe trabalhadora, porém privilegiada nesta sociedade, é imprescindível desconstruir cotidianamente o hegemônico em nós, sob o risco de reproduzi-lo acriticamente. Inseridos num capitalismo que mata pessoas e destrói a natureza todos os dias, muitos países acabam por adotar os discursos das agências internacionais, reforçando assimetrias sociais ou, pior, culpabilizando a população mais pobre, não por acaso, não-branca e em maior número, formada por mulheres. Nesse sentido e retomando o início de nossa conversa, em minha trajetória, tenho vindo a propor um alargamento da compreensão de arquitetura e tensionar, propositadamente, algumas das limitações e insuficiências do ensino na área. Acredito que por meio de experiências e práticas artísticas é possível mostrar como muitas vezes as universidades estão distantes das realidades das pessoas – no mundo todo e não é diferente no continente africano. Assim sendo, toda essa minhas “práxis errante” é, ao mesmo tempo, uma desconformidade com aquilo que nos impõem como arquitetura e que ignora diversos saberes espaciais e continentes inteiros; e, é também desenho propositivo e provocativo às instituições e ordens profissionais, almejando desenhos múltiplos e inclusivos para as arquiteturas africanas, em toda sua multiplicidade. p. 76 Notas 1 (Nota da Entrevistadora [N.Ent.]): Cabo Verde é um país historicamente marcado pela emigração, ficando nos EUA a maior comunidade caboverdiana na diáspora. Estima-se hoje em dia cerca de 1,5 milhões de caboverdianos no exterior, frente a cerca de 500 mil residentes no país. 2 [N.Ent.]: Em tradução livre, paisagens de regresso/s: mapeando memória[l] Dakar, Senegal, um anti-memorial da escravatura. 3 [N.Ent.]: Muitas das arquitetas africanas citadas foram entrevistadas por Joice Berth e Andréia Moassab, o que resultou no capítulo O ensino de Arquitetura e a dupla invisibilidade das arquitetas negras, integrante do livro Por um ensino insurgente em Arquitetura e Urbanismo (MOASSAB; NAME, 2020). 4 [N.Ent.]: A plataforma www.hereotherwise.space pretende reverter a invisibilidade das arquitetas africanas e da diáspora com a criação de uma rede, que é também um acervo dinâmico de suas produções. 5 [N.Ent.]: Conforme aponta Irene Sunwoo em seu texto de 2009, Pedagogy’s Progress, pu- blicado na revista Grey Room, do MIT/EUA, o “unit system” foi a base do programa pedagógico da escola londrina, estabelecendo seu funcionamento por estúdios verticais, cada qual com seus tutores a orientar experimentos e perspectivas críticas em arquitetura. Para Boyarsky, segundo Sunwoo, a nova missão da escola de arquitetura é ser crítica da sociedade e não mera provedora de formas. 6 7 [N.Ent.]: Para mais informações, consultar: www.africandesigncentre.org/curriculum. [N.Ent.]: Para mais informações, consultar: https://www.africancentreforcities.net/ about/acc-at-uct/ 8 9 [N.Ent.]: Para mais informações, consultar: https://encontromaloca.wordpress.com/ [N.Ent.]: para mais informações, consultar: https://xu4innovation.wordpress.com/ p. 77 10 [N.Ent.]: Em 2015, o trabalho mais uma vez na sua versão digital, abriu o IV Encontro Internacional Balance-Unbalance, na Arizona State University, nos Estados Unidos, que tinha como tema “water, climate, and place reimagining environment”. 11 12 13 [N.Ent.]: para mais informações, consultar: https://storianalugar.net/finkape/ [N.Ent.]: em português, Cruzando ilhas: entre mitos e realidades alucinantes. [N.Ent.]: Durante a ditadura de Salazar, um grande contingente populacional foi deslocado de Cabo Verde para trabalhar nas plantations de São Tomé e Príncipe, em situação análoga à escravidão. Até hoje o retorno destas pessoas e seus descendentes é uma questão a ser enfrentada, pois nem as pessoas, nem suas famílias ou mesmo o governo tem verbas suficientes para a repatriação ou para lhes garantir uma vida digna. Nos anos de 1980, alguns retornados foram alocados no entorno do campo de concentração, nos arredores da cidade do Tarrafal, onde vivem nos dias atuais, com seus descendentes em precariedade, sem água encanada tampouco saneamento básico e com energia elétrica apenas em pouco mais da metade das casas. p. 78 p. 79 Ensinos e práticas em arquitetura, urbanismo e território 1 em Moçambique Entrevista com Luís Lage Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico Universidade Eduardo Mondlane Quem entrevista: Céline Veríssimo ¡DALE! / UFBA, MALOCA / UNILA, PPGPPD e CAU / UNILA, DAMG / UPT João Soares Pena ¡DALE! / UFBA, MPBA Murad Jorge Mussi Vaz DEAAU / UTFPR, ¡DALE! / UFBA, MALOCA / UNILA Luís lage Luis Eugénio da Silva Lage, é arquiteto e professor universitário moçambicano, nascido em Lourenço Marques, atual cidade de Maputo. No decorrer de sua carreira profissional tem atuado na estruturação do ensino em Moçambique, quer a nível secundário quer universitário. Trabalhou tanto Direções Provinciais de Educação e Cultura quanto e em Departamentos de Planificação, atuando, inclusive, no Ministério da Educação. Na década de 1980 trabalhou nas Escolas Moçambicanas na República de Cuba na Ilha da Juventude. Graduou-se em Arquitetura e Planejamento Físico na Faculdade de Arquitetura da Universidade Eduardo Mondlane (FAPF-UEM) na década de 1990, tendo assumido cadeiras de História, Planejamento e representação, assumindo no início dos anos 2000 o papel de Diretor Pedagógico da referida Faculdade. É doutor pela Universidade de Roma “La Sapienza” Itália, em seu regresso foi nomeado diretor da FAPF-UEM de 2009 a 2016. Desde então tem se dedicado a projetos de extensão em bairros periféricos de Maputo, através do projeto “Kaya Clínica”. Além de sua vasta experiência projetual prática também é Membro Fundador da Academia de Ciências de Moçambique (2009), foi Presidente da Academia de Escolas de Arquitectura e Urbanismo de Língua Portuguesa (2010 a 2014). É membro deste 2012 do Conselho Nacional do Património Cultural e membro fundador da Ordem dos Arquitectos de Moçambique (2019). Nesta entrevista, Luís discorre sobre sua trajetória como arquiteto moçambicano em diferentes contextos nacionais, além de uma reflexão crítica sobre a trajetória do curso de Arquitetura e Planejamento Físico da FAPF- UEM, da sua origem ao presente. Neste sentido, resgata um panorama atual da formação em arquitetura no país, bem como reflete sobre os desafios para o campo que envolvem a profissão, da formação à prática. Lage traz-nos um panorama atual sobre a arquitetura moçambicana, descrevendo e refletindo a respeito das dificuldades enfrentadas por arquitetos e arquitetas no que concerne não somente ao projeto e à construção, mas também as dimensões urbanas. Por fim, deixa-nos uma reflexão otimista sobre os cursos e as reflexões sobre os currículos escolares ao refletir sobre o crescimento das escolas de arquitetura no país e seu envolvimento com a extensão universitária, potencializada pelo projeto Kaya Clínica, que redimensiona e abre caminho para um diálogo franco entre comunidade e academia sobre a urbanidade moçambicana. p. 83 Como arquiteto moçambicano você tem uma trajetória importante de atuação no país. Além disso, tem desenvolvido atividades de investigação e extensão baseadas em comunidades e áreas periféricas. Você poderia nos contar um pouco mais sobre a sua formação e prática profissional? A partir de qual perspectiva teórica e epistemológica você tem embasado o seu trabalho? A minha formação a partir do ciclo preparatório dá uma grande viragem, resultado de ter tido uma professora na cadeira de desenho, a arquitecta Maria Carlota Tinoco. Esta figura fez com que saísse de uma formação do ensino geral para o ensino técnico, concretamente para a escola industrial, ingressando no curso de pintura decorativa que depois mais tarde passou a designar-se por artes gráficas e visuais, na Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque, em Maputo. Portanto, esta mudança de ambiente de ensino foi determinante para a minha formação, não só pessoal como profissional. Tive a oportunidade de aprender com belíssimos professores, todos eles com o curso das belas artes, alguns arquitectos, outros pintores e escultores Portugueses, vindos nos anos 1950, para trabalhar em Moçambique – como é o caso do Garizo do Carmo, António Bronze, João Paulo, o escultor Silva Pinto e também o arquitecto Miranda “Pancho” Guedes. Este curso situava-se na escola industrial e conferiu-me a base formativa no universo das artes. Assim, o conceito das artes e também o de cultura desenvolveram-se fortemente nesta instituição. n. 1 p. 80-103 2022 ISSN: 2965-4904 Acrescento a isto, já numa fase de adolescência, aquilo que foi a minha leitura sobre a sociedade e, sobretudo, sobre o estado socioeconómico em que a maior parte da população de Moçambique vivia. Era muito consciente e evidente, já na época, a dualidade e a segregação que existia na cidade. A cidade “cimento” estava feita para uma minoria branca, e alguns assimilados, e a população “nativa” (designemos assim pois era a expressão utilizada na altura a que me refiro), de origem africana, viviam nas periferias da cidade. Esta realidade acompanhou-me ao longo do meu crescimento, dado que nasci e cresci na cidade de Maputo, no bairro da Polana. Outro marco determinante, relacionado com o anterior, ocorreu por volta dos anos 1972-73 em que comecei a fazer parte de grupos de leitura clandestina na cidade, formados por jovens de ambos os sexos, maioritariamente brancos, filhos de boas famílias da urbe. Líamos sobretudo os princípios fundamentais da filosofia, de Georges Politzer, em pequenos grupos restritos, com muito cuidado e sigilo. Estas leituras fizeram-me compreender e ter uma percepção melhor sobre o panorama político, social e económico à minha volta. Fiquei consciente que vivia em uma colónia, em que a maioria da população era explorada e acredito que esta leitura influenciou o início e a formação do meu questionamento social. Ainda no período da minha adolescência, foram também importantes dois momentos. O primeiro, em Maio de 1968, que me marcou bastante. A minha leitura política do estado colonial, a percepção que tinha sobre o desenvolvimento da história e da evolução das sociedades, aliados à minha formação nas artes e na cultura, conduziram-me para uma posição diferente perante a sociedade, estando já na época também consciente da segregação racial da sociedade na sociedade que vivia. Posteriormente, em 1974, fui chamado para dar aulas no Liceu António Enes (hoje Escola Secundária Francisco Manyanga), nas cadeiras de desenho geral e de geometria descritiva e fi-lo por um ano. Depois da independência, em Janeiro de 1976, fui transferido para dar aulas em Montepuez, na província de Cabo Delgado. Iniciei assim o meu percurso na área da educação, onde dei aulas no ensino secundário em escolas públicas, dado que todo o ensino tinha sido nacionalizado. Estive em Cabo Delgado por 6 anos, onde acabei sendo também director da Escola Secundária de Pemba e na de Namuno e onde também trabalhei para a Direcção Provincial de Educação e Cultura, como chefe de departamento de planificação, por proposta da Direcção Provincial de Educação e Cultura e nomeação Ministerial. Na foto à esquerda, Lage com estudantes de Namuno - Cabo Delgado, 1979. Fonte: foto cedida pelo autor. Na foto à direita, em 1981, Lage em Montepuez, Cabo Delgado como Chefe de Planificação de Educação provincial com Arnaldo Maroto do Ministério da Educação e o Diretor Distrital de Educação. Fonte: foto cedida pelo entrevistado. p. 85 Os anos que estive em Cabo Delgado fizeram-me conhecer melhor a realidade do país, dimensão esta que desconhecia. Não só viajei pela província de Cabo Delgado, durante esse período, como também conheci e circulei por outras partes e províncias do país, sobretudo no norte, como Niassa e Nampula. Portanto, esse contacto que tive com a realidade fora de Maputo (para quem sempre viveu e esteve toda a vida em Maputo até aos seus 18/19 anos), forneceu-me uma nova perspectiva de leitura da sociedade moçambicana. É claro, e acrescento, que a aposta socialista da época revolucionária era a que estava presente e foi a que eu abracei com bastante convicção no momento, dado que sempre partilhei dos princípios de viver numa sociedade justa e igualitária, que combatesse as desigualdades, conferindo as mesmas oportunidades para todos. Aliando a formação que tive na área das artes gráficas e visuais com a experiência profissional na educação em Cabo Delgado e com a leitura que tive da realidade, sobretudo rural, do país, posso dizer que estas induziram-me a uma melhor compreensão e à formatação do meu ser, posso assim dizer. Isto consolidou-se com o meu regresso a Maputo. Vim trabalhar no Ministério de Educação, a convite da Ministra, na altura, Graça Machel, na Direcção Nacional de Planificação, onde fiquei cerca de um ano. Entretanto, casei-me, e eu e a minha mulher abraçamos a oportunidade de irmos para Cuba como educadores e professores, onde vivemos durante cinco anos. Moçambique tinha quatro escolas na Ilha da Juventude, em Cuba, e cada escola possuía cerca de 900 estudantes Moçambicanos, que eram selecionados de entre os melhores alunos da escola primária de todo o país. Era um processo de seleção que iniciava primeiramente nas escolas, depois a nível distrital e por fim na província. Cuba recebeu sempre a representação de todo o país, de acordo com as percentagens de estudantes no ensino, por região e género. Era, portanto, um grupo grande de estudantes que se enquadravam sobretudo no ensino secundário, mas também existiam alguns a fazer o ensino pré-universitário, ou seja, nos institutos politécnicos. Durante 6 anos estive em Cuba onde conheci também a realidade de um país socialista, que abraçou projectos de solidariedade com outras nações. Cuba tinha escolas com estudantes de 16 nacionalidades e algumas destas tinham até 4 escolas, tal como Moçambique, Angola e Etiópia. Havia assim um grande projecto multinacional de solidariedade, sobretudo com os povos que lutavam por uma sociedade mais justa e igualitária e inclusiva. p. 86 O regresso de Cuba para Moçambique ficou marcado com o meu ingresso na faculdade, aberta muito recentemente (em 1986). A partir daqui, foram estes aspectos de leitura, de posição política e social, com aquilo que transportava das artes e p. 87 Na foto, vê-se Luis Lage, no ano de 1984, com um grupo de professores Moçambicanos. em Cuba. Fonte: foto cedida pela entrevistado. da cultura que me fazem, quando entro, em 1989, na Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico da Universidade Eduardo Mondlane, abraçar fortemente estas duas grandes áreas. O meu percurso foi sendo assim traçado por estas áreas, uma com um olhar para as artes no geral e também sobre o património edificado que foi o que mais me interessou. Por outro lado, as intervenções naquilo que eram as partes mais frágeis da sociedade, nas zonas de menor atenção por parte das entidades públicas, dado a falta de recursos financeiros e técnicos, para fazer frente ao grande aumento demográfico, por migração e por crescimento natural – nas periferias da cidade, onde se encontra a maioria da população urbana com condições de baixa renda e sem grandes assistências, serviços e infraestruturas. Portanto, a minha área de interesse é assim marcada, não só pelo meu percurso pessoal e profissional anterior, mas também por estas duas dimensões e linhas de acção – a salvaguarda do património edificado do país e as intervenções nos espaços mais precários junto às populações com maiores dificuldades socioeconómicas. A Universidade Eduardo Mondlane desde a sua origem tem ampliado seus vínculos e atuação na sociedade. Neste sentido, como você analisa os conteúdos e conhecimentos que vêm sendo ministrados, as matrizes, as práticas pedagógicas, as bases, e as referências teóricas em arquitetura e urbanismo? Como os objetivos e abordagens desta escola de arquitetura, têm acompanhado essas transformações em Moçambique, considerando o seu passado como colônia portuguesa até 1975? O mesmo poderia ser discutido com relação ao acesso à Universidade, à transformação do território, do ambiente, das cidades, do povo Moçambicano, como você vê a trajetória histórica da FAPF-UEM? p. 88 Como mencionei anteriormente, a faculdade foi fundada em 1986 e procurava responder, de alguma maneira, às necessidades que o país tinha ao nível do ordenamento do território. Sentia-se uma grande ausência (pois não existia nenhuma) de instituições de formação e ensino que tratassem das questões da arquitectura e do urbanismo. No seu contexto, esta surge também como resultado de uma grande prática anterior da Secretaria de Estado de Planeamento Físico, a primeira instituição no pós-independência, que começou a abordar os problemas do ordenamento do território em Moçambique. A Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico surge então como uma continuidade desta visão principal, de que o território necessita de uma acção de ordenamento e urbanização de uma forma planificada e programada. Possuiu também um papel importante o Secretário de Estado da época, o arquitecto José Forjaz, ter tido uma grande relação com a Itália e com outro arquitecto italiano que coordenaram a possibilidade da instalação de uma faculdade de arquitectura e planeamento físico em Maputo na UEM. O desenho do currículo foi estabelecido entre os professores e a disponibilidade que estes teriam para vir de Itália para Moçambique, provenientes da Universidade La Sapienza de Roma. A contraparte moçambicana foi sobretudo coordenada pelo arquitecto José Forjaz. Ficou claro, de início, por posição de Moçambique, que o curso seria um curso de arquitectura e de planeamento físico, dada a grande carência que tínhamos no país de técnicos e quadros qualificados na área do planeamento urbano e ordenamento do território. Portanto, o curso foi desenhado, sim, com uma grande vertente de arquitectura que foi ministrada pelos professores italianos, mas, também, com uma vertente de planeamento físico, que apesar de ser aplicada por professores italianos, sempre foi com o cuidado de se adaptar e enquadrar à realidade do país. A faculdade, desde o seu início, para além dos seus programas curriculares, começou desde logo a preocupar-se com os problemas do país e a intervir no território, tendo para o efeito, promovido temas de trabalhos de fim de curso dedicados ao território, ou sobre cidades, ou sobre áreas administrativas de Moçambique. Foi também no início que se criou o Centro de Estudos e Desenvolvimento do Habitat (CEDH) na própria faculdade, o que permitiu a extensão da faculdade para os diversos territórios. E foi esse um dos papéis principais da faculdade ao longo dos anos, trabalhando com várias cidades, elaborando vários planos de estruturas de diversas capitais provinciais e também desenvolvendo trabalhos em vários pontos e províncias do país, que resultaram em várias publicações. Considero que a faculdade, apesar de ter cerca de 35 anos de existência, ainda tem um longo percurso a percorrer para responder às verdadeiras demandas que o país possui. Moçambique tem um crescimento demográfico elevado, cerca de 2,6% de população anual, e isto reflecte um desafio muito grande em relação às questões habitacionais, mas também ao próprio ordenamento do território, dado que o país não tem a capacidade de responder actualmente a este crescimento, por falta de recursos financeiros e técnicos. Creio que os cerca de 500 arquitectos formados ao longo dos anos em Moçambique não são ainda suficientes para responder à demanda que temos actualmente e que teremos no futuro. O País tem mais 4 faculdades públicas e duas privadas de Arquitectura e Urbanismo, sendo que a maioria dos seus graduados estão profissionalmente no activo. p. 89 1996 p. 90 2006 Nas fotos, a Faculdade de Arquitetura da Universidade Eduardo Mondlane (FAPF-UEM), em 1996 (acima) e em 2006, Fonte: Fotos cedidas pelo entrevistados. Uma das dificuldades que a instituição possui é a limitada capacidade de receber novos ingressos para formar maior número de profissionais ao longo do tempo. Para isto seria necessário investir na construção de uma nova unidade da faculdade para poder albergar maior número de estudantes. Neste momento a sua capacidade máxima é de apenas cerca de 35 a 40 estudantes por ano. O curso de arquitetura e planeamento físico iniciou em 1986, em plena Guerra de Desestabilização pós-independência, tendo sido tutorado pela universidade italiana La Sapienza de Roma. Como esse período inicial, de instauração apoiada por uma instituição europeia serviu, ou não, para constituir o cerne da escola? Não terá sido uma outra forma de colonização europeia? Até que ponto as vossas referências mantêm a hegemonia do pensamento ocidental em arquitetura e quais os vossos esforços para um curso voltado para a realidade africana de Moçambique? Qual a missão deste curso, que tipo de arquitetas e arquitetos Moçambique precisa? Daquele momento até agora, como se tem constituído a construção das bases para reflexão para uma arquitetura Moçambicana? Sobretudo com autores e arquitetos moçambicanos como referências teóricas, o que tem sido feito e quais são as suas expectativas nas próximas gerações de arquitetos/as formados na FAPF-UEM? Talvez referir que o apoio para a instalação da faculdade por parte da cooperação italiana foi extremamente importante e considerável, sobretudo financeiramente. Não foi apenas no pagamento dos professores que vinham de Itália dar as aulas mas também em equipamento e em materiais que eram necessários e que, na altura, a universidade não possuía disponibilidade para fornecer. Foi obviamente uma combinação prévia e houve também uma comparticipação da Universidade Eduardo Mondlane, contudo pode-se dizer que o curso foi praticamente financiado, inicialmente e durante cerca de 20 anos, pela cooperação italiana. A contraparte Moçambicana, foi a de criar as condições infraestruturais e dos procedimentos colegiais para que a Faculdades pudesse funcionar. Os professores, sendo italianos, grande parte deles já não se encontravam no activo. Alguns ainda davam aulas, mas eram professores com uma grande experiência e sobretudo disponibilidade para estar em Moçambique, o que o fizeram com bastante empenho e força. Foi um grupo muito coeso e extremamente importante para todos nós e para a construção da própria faculdade. p. 91 Sendo o corpo docente maioritariamente italiano, nos primeiros anos de formação o currículo foi administrado pelo conhecimento que eles tinham, não da nossa realidade, mas sim com base no contexto de ensino de Itália. Contudo, o mais importante foi ter-se conseguido consolidar este grupo de professores que todos os anos, ao longo de vários anos, vieram a Maputo. Por virem regularmente a Maputo, isto fez com que se enquadrassem rapidamente no contexto da realidade existente. Muitos deles, sobretudo o grupo que permaneceu até aos finais da cooperação italiana, viajaram pelo país ao longo dos anos, aumentando assim a sua consciência e o seu conhecimento, adaptando o próprio método de ensino ao contexto em que se encontravam. Acredito que Moçambique necessita de arquitectos que sejam em simultâneo, ordenadores do território, ou seja, que sejam planeadores físicos/ urbanistas, visto que em termos de arquitectura podemos dizer que praticamente 90% da população moçambicana ergue as suas casas, constrói o seu habitat. Portanto, é claro que é necessário arquitecto, contudo o que o país mais necessita de momento é de profissionais conscientes e capazes de auxiliar no ordenamento do território. E os estudantes nesta profissão, formados na faculdade, devem ser preparados para poder intervir nestas várias áreas de abrangência a nível do país. Se tivermos em conta que Moçambique tem 11 Províncias, 53 Municípios e 154 Distritos, considero que em cada uma destas estruturas deveria ter pelo menos um arquitecto e planeador físico, devidamente pago pelo estado, para apoiar as autoridades na gestão do território. Há várias iniciativas de cooperação internacional entre a FAPF-UEM e universidades estrangeiras. Qual é a sua avaliação sobre essas parcerias? Como isso tem contribuído para a formação de arquitetos e urbanistas moçambicanos? p. 92 A criação da faculdade, como já mencionei, surge com o objectivo de suprir a carência total que existia, dado que na altura da independência só deveria existir cerca de 5 ou 6 arquitectos moçambicanos disponíveis – e estes trabalhavam sobretudo em áreas de gestão administrativa. Desde 1986 até por volta de 2005-2007, a grande contribuição foi italiana. A cooperação italiana, nos primeiros anos fez o que pôde, apoiando sobretudo com professores e equipamentos. A partir de 2000, foi criado o que se chamou de CICUP, que era um programa de assistência técnica às faculdades, não só de arquitectura mas também de medicina, agronomia e engenharia florestal. Era um consórcio interuniversitário para a cooperação universitária com os países emergentes e teve um programa muito grande. Assim, a faculdade de arquitectura, a partir de 2000 até praticamente 2005, teve um grande apoio em investimento por parte deste programa. Os objectivos deste programa eram sobretudo melhorar a capacidade e autonomia científica e didática dos docentes e investigadores destas unidades. Isto desenvolveu-se com actividades de capacitação e com suporte técnico e científico. Podemos dizer que surgiram daqui três resultados fundamentais. O primeiro, a capacitação institucional – no âmbito da didática; o segundo, através de um programa muito específico no âmbito da investigação e da extensão, onde se desenvolveram, com os fundos disponíveis, grandes programas de investigação, como também forneceu ao corpo docente da faculdade a possibilidade de editar e publicar conteúdos de investigação; por último, foram também levadas a cabo acções de melhoria das infraestruturas e equipamentos da faculdade, no que diz respeito a salas de aulas, equipamentos informáticos e também destinados ao trabalho didático, de pesquisa e de investigação. O corpo docente moçambicano nesta época tinha essencialmente o nível de licenciatura e foi este projecto que possibilitou a formação dos professores, permitindo que passássemos, muitos de nós, para o nível de mestrado e também, alguns para o nível de doutoramento. Nos trabalhos de investigação, podemos dizer que foram iniciados 25 trabalhos de pesquisa. Destes 25 trabalhos, 19 deles foram publicados. Foi assim possível ter um grande grupo de professores, e também de estudantes, a trabalhar em conjunto em projectos ligados à realidade e às necessidades do país. Somente depois de ter finalizado o programa do ciclo de cooperação com Itália, é que a faculdade, pela primeira vez na sua história, a partir de 2007 começou a ter contactos e abertura para outras faculdades. Estabeleceu memorandos de entendimento com várias faculdades, quer na Europa – Portugal e sobretudo em Espanha e Itália, mantendo a sua ligação com este país, mas também com o Brasil. Eu tenho imensa pena que neste esforço que fizemos de abrir estas ligações e levar a faculdade de arquitectura e o seu trabalho para outras partes do mundo, não o tivéssemos feito com a mesma intensidade, como devíamos, para outros países da região, sobretudo com a vizinha África do Sul. Outra questão que posso considerar com estas novas cooperações é que o que nós sempre sentimos foi que estas modalidades de cooperação eram mais Norte-Sul e muito pouco Sul-Norte. Creio que as faculdades com quem estabelecemos relações tiraram maior proveito em trabalhar aqui em Moçambique connosco e desfrutaram muito mais disso, do que nós com eles, dado que tinham as condições financeiras para realizar a mobilidade, puderam o realizar em Moçambique, utilizando nossas infraestruturas e acervos para seus trabalhos. Contudo, é claro que o contacto que os estudantes e os professores, sobretudo moçambicanos, tiveram aqui e também p. 93 algumas oportunidades de deslocação a esses países, através dessas relações de cooperação, que foram obviamente frutíferas. Também creio que todos nós beneficiamos, principalmente nos primeiros anos, com a cooperação italiana. Foi, de facto, marcante e determinante naquilo que foi na constituição e também no pensamento deste corpo docente. De licenciado a diretor da Faculdade de Arquitetura e Planejamento Físico, da UEM, algumas décadas se passaram. Você poderia comentar sobre as alterações que vem acompanhando no país, cada vez mais inserido no modelo capitalista global, na formação e na prática de arquitetos e arquitetas? O país passou por diversas etapas. Se falarmos no pós-independência, primeiro com uma idealização socialista de uma sociedade mais igualitária e justa com uma distribuição da riqueza mais proporcional; e uma segunda etapa, depois dos grandes conflitos armados que tivemos, das agressões que o país sofreu, em que a economia de mercado entrou plenamente na nossa sociedade. O país viveu esses dois momentos, um numa economia centralizada e outro numa economia completamente liberal e capitalista. O que tenho a dizer é que a faculdade manteve-se, ao longo dos seus anos de existência, uma mesma filosofia didática, de orientação e de princípios. Dividida em dois grandes ramos, a arquitectura e o planeamento físico sempre direccionados para a realidade do país. Ao longo destes anos a faculdade já graduou entre 500 a 600 arquitectos e planeadores físicos e posso afirmar que a maior parte deles são funcionários, empregues na estrutura do Estado – trabalham para os municípios, para governos provinciais ou mesmo para o governo central. Outros, em menor número, trabalham por conta própria, como arquitectos liberais. Contudo, em todos eles, creio que há uma posição relevante e consigo ver essa preocupação de melhorar as condições socioeconómicas da população e trabalhar para o benefício do país. p. 94 O papel das mulheres na arquitetura brasileira, por exemplo, tem sido historicamente invisibilizado, apesar do número expressivo de arquitetas e urbanistas graduadas anualmente. Em sua trajetória acadêmica na FAPF-UEM e como arquiteto, como você analisa, atualmente, a presença das mulheres, tanto no âmbito dos estudos, quanto da prática profissional? É uma questão interessante de leitura. Na minha experiência em instituições de ensino de arquitectura ao longo da minha vida, quer na Europa, quer na América do Sul, sempre observei uma maior percentagem de mulheres nesta área em relação a homens. Em Moçambique, desde que a faculdade foi criada, os ingressos têm sido maioritariamente controlados por um processo de exames de admissão anual em que, actualmente, o número de candidatos varia entre 600 a 800. Têm sido admitidos, ao longo dos últimos anos, cerca de 35 a 40 estudantes por ano. O que se tem observado, ao longo do período de existência da faculdade, é que de uma média dos 35-40 candidatos que ingressam, apenas 11% são do sexo feminino. O interessante, e que pessoalmente acredito que deve ser digno de leitura, é que no universo dos candidatos que fazem esses dois exames de admissão – de matemática e de desenho – 50% são homens e 50% mulheres. Não se consegue ainda explicar como é que apenas 11%, em média, são ingressos do sexo feminino na faculdade após os exames. No entanto, apesar de ser uma taxa muito baixa e que não se nota grande alteração ao longo dos anos (o que é também uma particularidade interessante), as mulheres têm desempenhado um papel dentro da faculdade bastante importante. Tem havido casos de serem das melhores alunas da faculdade que quando saem e ingressam na sua vida profissional, algumas delas têm tido papéis de destaque, não só em organizações governamentais no Estado como também profissionais liberais. Acredito, no entanto, que como arquitectas no termo de profissão liberal, de facto há ainda uma ausência e de certeza um percurso a percorrer. Mas não significa que não existam, existem sim em Moçambique arquitectas graduadas na faculdade que têm desenvolvido trabalhos de interesse e relevância na área. O ensino de arquitetura e urbanismo tem forte apelo aos referenciais ocidentais, marcadamente europeus e estadunidenses. Como você analisa, a partir de sua experiência de ensino e pesquisa em Moçambique, em particular, e no continente Africano em geral, a matriz curricular do curso da FAPF-UEM, no que concerne aos referenciais e seus vínculos com a situação política e socioeconômica do país? A faculdade de arquitectura já passou por três reformas curriculares e considero que o currículo existente está, de certo modo, adequado à realidade do país e às necessidades de formação de técnicos para esta área, sobretudo na conjugação da arquitectura e do planeamento físico. Contudo, também sinto que os currículos p. 95 actuais são de certo modo, globalistas. Tenho visto currículos de outras faculdades, a nível mundial, e parece-me que possuem um grande perfil e traço comum entre elas. Considero que deveríamos ter tido uma maior leitura, sobretudo na elaboração e revisão da última reforma curricular, dos países vizinhos em primeiro lugar – como é o caso da Tanzânia, da Zâmbia e principalmente da África do Sul. Temos recebido estudantes de países vizinhos, são poucos os casos da África do Sul, mas com a cooperação interuniversitária que temos com a Tanzânia, recebemos nos últimos anos cerca de 20 estudantes, dos quais 17 já se licenciaram na nossa faculdade. Na minha opinião, devíamos estreitar relações curriculares com a África do Sul. Eles possuem várias faculdades de relevância, como é o caso da de Cape-Town, de Durban e de Johannesburg. Portanto, era necessário fazer uma ligação e um entendimento maior nesta área geográfica para as futuras reformas curriculares. Apesar de Moçambique não se encontrar em uma situação estável em termos políticos, considero que se se coordenasse os currículos com estes países vizinhos poderia abrir possibilidades para uma melhor planificação e um olhar futuro de maneira a que a formação destes quadros profissionais, que os países emergentes urgentemente necessitam, na área da arquitectura e do planeamento, fosse mais efectiva e mais virada a uma realidade de longo prazo. Moçambique continua a ser um país com um padrão de crescimento urbano em cidades pequenas e a maior parte da população continua a ser predominantemente camponesa. Como está a distribuição das escolas de arquitetura e planejamento nas distintas províncias do país? Olhando, tanto o ensino como a atuação profissional, qual a preparação e capacidade de resposta dos profissionais de arquitetura para as populações mais vulneráveis, não só nas cidades como também nas aldeias? A maior parte das cidades africanas é marcada por uma situação dualista e que não pode ser ignorada, havendo uma zona formal (planificada), que é regrada por dispositivos normativos específicos, e outra informal (não planificada), ou “margens”, como temos vindo a caracterizar, onde não se aplicam aquelas normas e para a qual não se têm destinado os procedimentos adequados, visando a sua integração gradual no todo urbano, do qual é parte integrante. p. 96 Outro lado da dualidade, na história urbana das cidades em Moçambique, é marcado por uma diferenciação territorial, derivada de aspectos estruturais de ordem socioeconómica política, cultural e de segregação racial, pela necessidade de espaço para a moradia da população segregada, ou seja, negros, asiáticos e mestiços, que se desenvolveu na época Colonial. Foi durante o colonialismo que surgiram os primeiros assentamentos periféricos para moradias dos trabalhadores, dando lugar ao longo dos anos, com o aumento das densidades demográficas, à afirmação dos bairros periféricos, ou seja nas “margens” da cintura das nossas cidades. Considerando que temos um crescimento populacional acelerado e difícil de controlar, a UN-Habitat estima que Moçambique passe de 40% de população urbana actual, para 70% em 2025, aliado à falta de atenção e aplicação dos instrumentos legais aprovados e reguladores do Ordenamento Territorial, nas várias escalas de intervenção, assim como, a não aplicação dos procedimentos metodológicos preconizados pelas Leis e Regulamentos, tais como: as de consulta pública e outros procedimentos de planeamento integrado, tem tornado os projectos de intervenção nestas áreas desajustados e por vezes insustentáveis, sem serviços e infraestruturas. Isto agrava a marginalização de uma grande parte da população urbana, não se integrando a sua capacidade de iniciativa e suas estratégias de sobrevivência, num quadro normal de um desenvolvimento inclusivo. Até recentemente, só existia a Faculdade de Arquitectura – a FAPF-UEM a formar arquitectos no país. Felizmente actualmente existem hoje 6 no total, acrescentando-se à FAPF, mais uma em Maputo - a Escola Superior de Arquitectura do ISCTEM com um curso de arquitectura e urbanismo; mais uma na província de Maputo, em Boane – a Unitiva; duas na Beira – a Universidade Católica de Moçambique (UCM) e a Unizambeze; e mais uma em Nampula – a Unilúrio, da qual fui Presidente da Comissão de Instalação da mesma. Dada a dimensão do país e da sua população, considera-se ainda uma representação muito baixa de faculdades viradas para esta área tão preponderante. Em relação à capacidade de resposta destes profissionais formados, acredito que, como já me referi anteriormente, os currículos estiveram sempre representados por uma parte prática muito forte, direcionada à realidade do país. Isto significa não só, por um lado dar a conhecer o panorama urbano e habitacional existente, com todas as suas carências e virtudes, mas também, o esforço em tentar criar uma sensibilização de intervenção sobre ele. Faltam ainda, obviamente, profissionais, uma vez que a nossa proporção de arquitecto/urbanista por habitante ser extremamente baixa, esperemos assim que o nível técnico e humano formado, apesar de pouco, seja bom. p. 97 Transversal à formação socioeconômica espacializada em Maputo, os bairros periféricos, outrora chamados “caniços”, constituem diversas intersecções culturais, sociais e espaciais. Sua trama física, imbricada e sinuosa, mescla pequenos espaços abertos com ruelas estreitas nas quais a vida cotidiana se constitui entre línguas, credos, origens étnicas e visões diferentes. São estigmatizados e ao mesmo tempo, romantizados. Como você avalia a atuação de arquitetos e planejadores urbanos nessas áreas? Nas margens das cidades (onde vive mais de 70% da população urbana) estão entre as zonas mais dinâmicas do país. No caso da cidade de Maputo, por exemplo, em menos de 35 anos a cintura informal da cidade inverteu o seu carácter tipológico: em vez de cerca de 80% de casas de caniço passou para 80% de casas de materiais duráveis como o bloco de cimento. Isto significou, em cerca de 200 mil casas (melhoradas ou novas), um investimento de mais de um bilião de dólares provenientes das poupanças pessoais destas famílias. Buscar na dinâmica da economia informal as lições que podem ajudar a, de uma forma endógena, melhorar e fazer crescer a produção urbana, o emprego, a riqueza e a gestão urbana. Esta fonte de poupança preferencial na habitação deveria ser vista pelos governos, municípios e por possíveis investidores, através de parcerias publico-privadas, como uma oportunidade de resposta aos anseios de melhoria das condições de vida da população das cidades, no quadro da luta contra a pobreza urbana e, sobretudo, como uma oportunidade de desenvolvimento da economia urbana. Em termos da actuação dos arquitectos sobre estas áreas, espero que se esteja a incentivar a criação de condições para a emergência de uma cultura urbana, ou uma nova urbanidade, que respeite os modos de viver dessas novas sociedades urbanas em formação, com a consequente emergência de novos valores específicos do contexto urbano, que possam substituir os valores da tradição rural que funcionam como verdadeiro instrumento de controlo social. A diferenciação pode então ocorrer a partir de um modo de vida mais comunitário, menos violento, mais preocupado com a preservação do meio ambiente e do património histórico, com a qualidade de seus espaços públicos, de entre outros. p. 98 As machambas são, como prática e símbolo cultural, fundamentais para a vida no país, incluindo a vida urbana. Como avançar no processo de urbanização, sem extinguir essa prática socioespacial? Tem sido realmente uma questão bastante debatida. Moçambique é 66% rural e a agricultura faz parte do sector de actividade laboral com maior percentagem. Se falarmos apenas das áreas urbanas podemos analisar que mais de 70% desta população (recentemente) urbana vive em margens autoproduzidas ou ditas “informais” em que o sistema de ocupação é através da autoprodução alimentar em tecido urbano de carácter orgânico, com habitação maioritariamente unifamiliar e de piso único em talhões (ainda) com percentagem representativa de espaço não construído. Analisando também que aqui vivem sobretudo famílias de baixa renda, enquadradas maioritariamente no sector informal, entendemos que a mentalidade lógica é a de organizar mecanismos alternativos de subsistência e de renda. Aliado às questões dos modos culturais, ainda é visível a prática das machambas de subsistência nos próprios talhões e ainda o cultivo em lugares com maior extensão, urbanos e desocupados, para acréscimo de renda. A questão da urbanização é geralmente associada à construção em densidade, o que parece também correcto pela optimização dos custos gerais de planeamento, ordenamento, construção e, sobretudo, infraestruturais. Não vou aqui defender um ponto de vista concreto, apenas dizer que acredito que, apesar desta lógica, é necessário também compreender estes modos de vida, as razões destas práticas, as suas virtudes e benefícios num contexto como o nosso. É possível conjugar o processo de urbanização, mesmo com construções em altura, aumento da densidade (controlada) com infraestruturação e qualidade de vida sem erradicar a relação com espaço exterior e estas práticas sociais, espaciais e também económicas. A nível de exemplos, existem aqui machambas partilhadas por um certo número de pessoas, podendo pensar em assegurar espaços para machambas comunitárias, existem também hortas verticais e de terraço individuais, ou compartilhadas, em condomínios de prédios, em outros países. Exemplos existem, é só uma questão de compreender, adaptar se necessário e força de vontade para implementar. p. 99 Em seu trabalho na Kaya-Clínica, uma série de atividades são realizadas em parceria com a escola de arquitetura. Quais são os principais pontos fortes e ao mesmo tempo os maiores desafios? O projecto de extensão universitária, Kaya Clínica (clínica da casa) surge primeiro com a colaboração estreita da Faculdade de Arquitectura da Corunha como o objectivo, através de processos metodológicos e programados, dar assistência às demandas dos problemas urbanos e habitacionais que os moradores dos bairros periféricos da cidade de Maputo possam ter, para melhorar as suas habitações. A resposta a estas questões de demanda das populações mais carentes é efectuada através de um exercício de extensão universitária multidisciplinar, integrando não só a Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico, mas também (resumidamente) a Faculdade de Engenharia para as acções de projectos, construção e infraestruturas, a de Medicina para as acções de saneamento e de saúde pública, a de Direito para as acções de legislação fundiária, a de Economia para acções de apoio ao microcrédito e a Faculdade de Letras e Ciências, sobretudo o departamento de Geografia, para acções mais pontuais de cadastro e georreferenciamento. Uma das questões fundamentais, que possibilitou o desenvolvimento dos trabalhos, foi a elaboração de um memorando de entendimento entre o Concelho Municipal da Cidade de Maputo e a Universidade Eduardo Mondlane. O Kaya Clínica, como infraestrutura física, localiza-se num dos bairros periféricos da cidade, o bairro George Dimitrov, onde possui estreita ligação com o poder local. A operação deste projecto é realizada através da colaboração de professores e estudantes (voluntários) e também deste poder local, onde prestamos assistência à população nas suas necessidades de melhoria do seu meio urbano e habitacional. O Kaya Clínica opera sobre dois procedimentos funcionais principais. O primeiro, através de núcleos de estudantes e docentes, criados em cada uma das faculdades que participam no projecto, e estes de forma voluntária envolvem-se rotativamente em escalas programadas, de forma a assegurar respostas às demandas colocadas pela comunidade. O segundo, é através das unidades curriculares onde se propõe e se incentiva que as faculdades e os professores criem projectos ligados à assistência técnica em actividades curriculares, quer em projectos de final de curso ou de pós-graduação, ou mesmo em módulos de formação integrando, no caso da medicina por exemplo, a saúde comunitária. p. 100 Considero que, dadas as condições actuais e reais, de um grande crescimento demográfico aliado à falta de capacidades técnicas, financeiras e de recursos que o Estado possui em fornecer infraestruturas adequadas e também de planeamento antecipado e de ordenamento territorial adequado, a academia pode ter uma acção muito importante. Uma acção de extensão, de sensibilização sobre o papel social do estudante, do docente e do profissional em arquitetura, onde se estimule que o conhecimento adquirido passe para a sociedade como um todo mas, sobretudo, para as populações mais carenciadas - não só de habitabilidade mas também de vida. Ao discutirmos arquitetura moçambicana, ou arquitetura em Moçambique, dois nomes foram centrais no século XX: Pancho Guedes e José Forjaz. Ambos acompanharam e em certa medida estiveram envolvidos com momentos fundamentais da trajetória política e socioespacial do país. A partir de seu legado, bastante diverso, seria possível discernir se a produção deles constitui uma arquitetura moçambicana, ou cada um à sua maneira realizou uma arquitetura distinta em Moçambique? A partir do século XXI, quando o olhar para o vernacular passa a ser mais valorizado e se discute sobre uma “Arquitetura Africana”, quais são os principais aspectos que você ressalta atualmente? Maputo tem uma característica específica em termos do edificado. Uma característica singular. Não é apenas o traçado mas também a arquitectura em si. Maputo tem uma arquitectura moderna e com grande expressão e interesse arquitectónico. Estes edifícios, que foram construídos em cerca de 25 anos, de 1950 a 1975. Maputo tem esta característica de ter edifícios que reflectem muitas das correntes do moderno e que atraem gente que vem de vários pontos do mundo, tais como, os de contribuição anglo-saxónica, pela proximidade com a África do Sul, os de influência Déco, fortemente representados na cidade, além dos de matriz portuguesa resultantes da filosofia formal do Estado Novo e, posteriormente, dos modernistas com contributos em novos elementos de linguagem estilística adaptados às condições geográficas da cidade. Em contraste com o que se passava em Portugal, estes territórios colonizados economicamente prósperos, dispunham de uma liberdade criativa aberta à concretização dos anseios modernos. A resistência de aceitação do moderno por parte do regime Salazarista e a crise financeira em que se encontrava Portugal, fez das colónias africanas um destino viável para o exercício da profissão de arquitecto. Trabalharam em Moçambique, jovens arquitectos da geração do congresso “terceira geração modernista em Portugal”, em Maputo, Craveiro Lopes, Marco Miranda Guedes, Amâncio Miranda Guedes, Alberto Soeiro, João José Tinoco, Maria Carlota p. 101 Quintanilha, e na cidade da Beira, João Garizo do Carmo, Francisco José de Castro, Bernardino Ramalhete, Paulo de Melo Sampaio, entre outros. Esta nova geração de arquitectos assumiu estes territórios como um laboratório promissor de exploração moderna. O seu pilar de desenvolvimento baseava-se em parte no vocabulário brasileiro: na adaptação da forma ao lugar, na integração das artes e sua plasticidade projectar com o clima, investigar os elementos que o compõem e o modo como estes podem condicionar as formas arquitectónicas, solucionando as necessidades destes países, constituía o principal objetivo destes arquitectos. Em relação aos arquitectos “Pancho” Miranda Guedes e José Forjaz, são de épocas distintas entre si, mas ambos realizaram obras relevantes com presença e de forte referência. São ambos de arquitectura moçambicana, proveniente da sua formação, vivência, adaptadas ao clima e formas de vida moçambicanas. Como você vê as possibilidades para a criação de uma arquitetura moçambicana, indo além das referências estrangeiras que marcam a paisagem de Maputo? Você poderia nos apresentar alguns exemplos? Como referi anteriormente, são inúmeras as influências que temos na arquitectura e no desenho das cidades em Moçambique. É claro que existe uma forte presença e influência de arquitectos portugueses, mas consideramos sempre, pelo menos eu sempre considerei, que a arquitectura produzida no nosso território é, portanto, nossa. Se considerarmos a produção estritamente moçambicana, podemos dizer que é ainda incipiente. Como mencionei, em 35 anos formámos cerca de 500 arquitectos e muitos deles trabalham no aparelho do Estado e são muito poucos os que estão a produzir mesmo arquitectura. Inclusive os poucos moçambicanos que produzem arquitectura como profissionais liberais, não possuem um efeito significativo sobre a sociedade. É de conhecimento que cerca de 90% da população moçambicana constrói as suas próprias habitações através da autoconstrução e ainda é esta a modalidade que marca a arquitectura moçambicana. p. 102 Respondendo também, de certa forma, à pergunta anterior, acredito que uma arquitectura africana, uma arquitectura moçambicana e uma arquitectura vernacular podem ser semelhantes, ou completamente distintas entre si. Acredito que é extremamente difícil a criação de uma arquitectura sem as influências exógenas de um mundo globalizado mas, no entanto, a maioria das pessoas continua a construir por si, de acordo com os seus modo de vida (muitas das vezes com grandes influências rurais), usando os materiais existentes – anteriormente o caniço, a madeira e zinco e actualmente o convencional e mais acessível que é o bloco de cimento. Os seus métodos de construção também vão sendo mais modernos, mas sempre de acordo com as suas necessidades, possibilidades e as aspirações de modernidade vão-se alterando e moldando. De qualquer modo, encontram-se elementos de construção e distribuição espacial específicos que podem ser identificados, tal como a habitação evolutiva, de acordo com as necessidades familiares, a relação com o espaço exterior e até com a vizinhança, a importância da varanda, da árvore, da agricultura de subsistência nas machambas, de elementos de pequeno comércio nas suas habitações, entre muitos outros. Olhando prospectivamente, quais são os maiores desafios colocados para as escolas de arquitetura e urbanismo em Moçambique? Tenho alguma dificuldade em responder a esta questão pois os desafios são imensos. Talvez dizer que, reconhecendo as nossas dificuldades e carências, estamos num bom caminho. Existem cada vez mais faculdades de arquitectura e de urbanismo pelo país. Temos cada vez mais profissionais formados e capacitados para encarar os tais desafios. Cada vez mais profissionais e técnicos em posição estratégica de melhorar as políticas urbanas e habitacionais. Temos aumentado as nossas relações interuniversitárias a nível mundial, partilhando experiências semelhantes e também com pontos de vista e contextos diferentes. Temos criado novos programas de formação nível de mestrados e até doutoramentos, criando também cada vez mais material académico e de investigação de relevância. Aproveito para mencionar também os esforços para a criação de programas e centros de extensão universitária, tal como o Kaya Clínica, modificando (esperançosamente) currículos universitários, posições e envolvimento do corpo académico (estudantes e professores), novas parcerias institucionais, melhorando as condições do país e da sua população e incutindo também a importância do papel social do arquitecto e do urbanista num contexto como o nosso. Notas 1 (Nota dos editores [N.E.]): as perguntas estão feitas conforme o português do Brasil e as respostas conforme o portugês de Moçambique . Os editores decidiram acolher neste dossiê as múltiplas grafias da língua portuguesa, conforme é escrita nos países lusófonos. p. 103 artigos A vida urbana 1 emerge em África Bill Freund Universidade de KwaZulu-Natal TRADUÇÃO: Ana Mazzolini ONU-HABITAT Céline Veríssimo ¡DALE! / UFBA, MALOCA / UNILA, PPGPPD e CAU / UNILA, DAMG / UPT A vida urbana emerge na África Resumo Este texto faz a introdução do livro The African city: a history publicado em 2007 e é, desde então, um marco sobre a história das cidades em África. Neste artigo, Bill Freund defende e mostra que a urbanização africana tem origem pré-colonial, desconstruindo o mito de que a cidade é uma invenção europeia, acrescentando, ainda, que “África é o cenário ideal para estudar os primórdios da urbanização”. O autor segue explicando a génese sagrada da cidade africana pré-colonial, cuja importância superava de longe a dimensão económica. Freund dá-nos uma ideia das cidades nas várias regiões do continente, desde antes dos faraós do antigo Império Egípcio até ao séc. XX, com base numa rica e crítica informação obtida de várias fontes e de variadas épocas, embora na sua maioria de autores europeus, inclui autores africanos importantes, aborda muitas questões e reforça que o futuro das sociedades e das culturas africanas provavelmente passará muito pelas cidades(Por não haver resumo no texto original, este foi feito pelos editores). Palavras-chave: cidades africanas, história das cidades, África pré-colonial, espaços sagrados, urbanização. Emerge la vida urbana en África Resumen Este texto presenta el libro La ciudad africana: una historia que fué publicado en 2007 y ha sido, desde entonces, un hito en la historia de las ciudades de África. En este artículo, Bill Freund defiende y demuestra que la urbanización africana tiene orígenes precoloniales, deconstruyendo el mito de que la ciudad es un invento europeo, añadiendo que “África es el escenario ideal para estudiar los inicios de la urbanización”. El autor continúa explicando la génesis sagrada de la ciudad africana precolonial, cuya importancia superó con creces la dimensión económica. Freund nos da una idea de las ciudades en las diversas regiones del continente, desde antes de los faraones del antiguo imperio egipcio hasta el siglo XIX. XX, basado en una rica y crítica información obtenida de varias fuentes y de diferentes épocas, aunque en su mayoría de autores europeos, incluye importantes autores africanos, aborda muchos temas y refuerza que el futuro de las sociedades y culturas africanas probablemente pasará mucho por las ciudades. (Al no existir un resumen en el texto original, éste fue realizado por los editores). Palabras clave: Ciudades africanas, historia de las ciudades, África precolonial, espacios sagrados, urbanización Urban life emerges in Africa Abtract This text introduces the book The African city: a history published in 2007, which has been ever since, a landmark on the history of cities in Africa. In this paper, Bill Freund defends and shows that African urbanization has pre-colonial origins, deconstructing the myth that the city is a European invention, adding that “Africa is the ideal setting to study the beginnings of urbanization”. The author expands further to explain the sacred genesis of the pre-colonial African city, whose importance far surpassed the economic dimension. Freund gives us an idea of the cities in the various regions of the continent, since before the pharaohs of the ancient Egyptian Empire until the 20th century, based on a rich and critical information obtained from several sources and from different times, although mostly from European authors, includes important African authors, addresses many issues and reinforces that the future of African societies and cultures will probably pass a lot through cities (Since there is no abstract in the original text, this was done by the editors). Keywords: African cities, history of cities, pre-colonial Africa, sacred spaces, urbanization. o prefácio de meu livro e, implicitamente, no título deste artigo, sugiro que as cidades evoluem. Na análise que se segue, adoto um modelo essencialmente evolutivo. É possível argumentar, mais precisamente, que existem, ou existiram, tipos exclusivamente africanos de cidades, antes da incorporação da África nos sistemas-mundo com amplas redes económicas e estruturas culturais urbanas predefinidas, como uma declaração cultural sobre africanidade. No entanto, aqui, o pressuposto é que existem várias razões pelas quais a vida urbana emerge em qualquer lugar: razões de carácter ambiental, ritual, político e económico, cada qual será examinada com maior detalhe. Isso seria uma verdade para qualquer grande área no mundo e, até um certo ponto, poderia compreender combinações muito diferentes e bastante únicas. Este livro [A Cidade Africana: uma história] irá enfatizar que o modelo urbano evolutivo precisa de ser substancialmente modificado, através da integração de elementos anteriores ao desenvolvimento urbano mais recente, da mesma forma que as formas de assentamento rural podem ser levadas para modos de vida urbana. As cidades antigas são inevitavelmente acumulações com camadas que sobrevivem do seu passado cultural, quando não físico. A divisão desta história urbana africana em capítulos, que observam o impacto da assimilação, nos primórdios de uma economia mundial, do colonialismo e do cenário pós-colonial, busca dar índole à mudança evolutiva, mas isto não significa sugerir que não existem continuidades de uma fase para outra. N n. 1 p. 104-147 2022 ISSN: 2965-4904 África é um cenário ideal para estudar os primórdios da urbanização. Em muitas regiões do continente africano, o surgimento de novas cidades pertence a um registo histórico relativamente recente, enquanto que um número considerável de escavações arqueológicas foi pensado para tentar identificar a natureza da vida urbana no passado, vendo como, quando, e porque se desenvolveu. Este artigo considera a informação disponível acerca dos primórdios da urbanização no continente e destaca o que podemos supor sobre cidades, nas diferentes fases do seu desenvolvimento. Isso implica dar alguns grandes saltos, em termos de distância, entre tempos e lugares. Este artigo não segue uma ordem cronológica. As suas primeiras páginas mover-se-ão espacialmente para norte e concentradas nos diferentes tipos de assentamentos urbanos anteriores, assentamentos com poucas evidências de influência externa a África. Tais tipologias estão longe de serem mutuamente exclusivas, mas os exemplos dados tencionam destacar aspectos específicos, de uma forma mais clara. Em termos de janela temporal, voltaremos até cinco mil anos para trás, para o Antigo Reino do Egito - mas, onde tais assentamentos mostram pouca evidência de influência das redes globais cada vez mais comercializadas em contacto com o Ocidente, alguns dos meus exemplos são de data relativamente recente, incluindo o primeiro que irei dar. p. 111 Mapa 1 – Antigas cidades africanas. O modo como um dos autores citados abaixo, o antropólogo John Peel (1983), escreveu sobre os grandes assentamentos urbanos Yorubá do sudoeste da Nigéria, particularmente sobre como poderiam ter sido antes do século XIX, parece frequentemente desafiar a simples categorização de continuidade rural-urbana (PEEL, 1983). A ligação entre os lugares urbanos aqui discutidos, deve ser entendida como conceitual em vez de linear, para fazer justiça à estrutura de ideias que se segue nas próximas páginas. Assim, iremos frequentemente questionar o porquê e até que ponto estes lugares eram urbanos. Iremos percorrer uma série de sequências descritivas, antes de fazer um balanço, ao examinar os tipos de estruturas urbanas como um todo. É importante reforçar que, se essas estruturas não abrangem certos critérios contemporâneos sobre como uma cidade deveria ser, tais assentamentos não devem ser descartados, mas sim acolhidos com interesse pelas suas configurações únicas e contribuição para o desenvolvimento cultural da humanidade. Na segunda metade do artigo a narrativa chegará mais perto de seguir uma ordem convencional no tempo, e as principais influências externas assimiladas em experiência africana - grega, púnica, romana e islâmica, assim como sistemas-mundo subglobais iniciais - serão trazidas. Neste ponto, o carácter urbano torna-se incontestável: a economia tornou-se mais variada e envolveu uma especialização intensificada. A vida urbana dependia de excedentes agrícolas sistemáticos, provenientes de fora, definindo parcialmente as relações urbano-rural. Uma definitiva e distinta cultura urbana emergia dentro do sistema. Fosse por incorporação, conquista ou outros meios de mudança, isto fez com que se desse uma mudança evolutiva no Norte de África nos três primeiros casos e, muito mais amplamente, no quarto. As características urbanas típicas destes sistemas serão destacadas nas descrições da segunda metade do artigo. p. 112 Na verdade, começaremos num ponto bastante tardio da janela temporal. Na África Austral - a extremidade ocidental onde os agricultores de língua bantu se estabeleceram no que hoje é o Botswana - existiam, há vários séculos, aglomerações humanas surpreendentemente grandes. Cientistas sociais contemporâneos, especializados no estudo dessa região, chamaram essas aglomerações de “agro-cidades”. Estas agro-cidades poderão ter contido entre dez a vinte mil pessoas, antes da invasão colonial, embora as evidências também sugiram que elas se tenham expandido substancialmente no âmbito das condições inseguras e instáveis do século XIX. Shoshong, a capital do estado Ngwato do século XIX, pode ter atraído trinta mil pessoas, embora raramente se concentrassem todas ao mesmo tempo na cidade. As agro-cidades de Kanye, Serowe e Molepolole, no Botswana de hoje, são exemplos remanescentes deste fenómeno. Os europeus ficaram surpreendidos com o tamanho de Dithakong, a cidade mais a sul da região. Quando a encontraram, no início do século XIX, era tão grande quanto a capital colonial da Cidade do Cabo. Apesar das agro-cidades terem sido invariavelmente o núcleo de importantes chefias tswana, é incrível notar que, mais adiante a oriente, num país bem mais húmido, falantes da língua sotho, próximos dessas chefias, deram pouco sinal de adesão a grandes assentamentos. Nem existiam, na época equivalente à Idade Média europeia, quando os falantes de tswana aparentemente se começaram a estabelecer no Botswana. Foi um pouco mais tarde, após um período de definhamento e recuo para oriente, seguido por reassentamento depois do ano de 1500, que este tipo de padrão incomum de assentamento surgiu. Não há uma explicação direta para o que aconteceu. As agro-cidades são certamente emblemáticas do poder de chefes, reunindo uma variedade de pessoas sob o seu domínio. Na verdade, a estrutura das cidades assemelhava-se a um conjunto de aldeias, com base na descendência e afiliação a um chefe ou ancião. Uma característica peculiar era o espaço para o Kgvda, um local de encontro comunitário e cerimonial que simbolicamente define o que o termo comunidade significa para os tswana. Contudo, os chefes tswana não eram incomensuravelmente poderosos, nem era esta a única maneira de um chefe em África conseguir obter submissão. Em certa medida, a necessidade de defesa pode ter sido um fator para que se reunisse um grande número de pessoas. O tamanho de uma população aglomerada num campo aberto representa um formidável impedimento para qualquer tipo de invasão. Da mesma forma, a concentração estava certamente relacionada a escolhas ecológicas. Um bom abastecimento de água e a presença de uma colina proeminente, eram as características típicas dos grandes assentamentos. De forma alguma, porém, a economia tswana poderia ser considerada tão rica ao ponto de apoiar a urbanização no sentido de um excedente que pudesse sustentar muitos produtores não-agrícolas. Os membros da família, principalmente as mulheres, tiveram de espalhar-se de maneira dispersa no território, para cultivar e colher alimentos. Os homens jovens passavam a maior parte do tempo a viver em postos de gado, mantidos a uma longa distância da cidade, muitas vezes em terras demasiado secas para suportar agricultura. A concentração criou problemas e, como resultado, até as mudanças dos séculos XIX e XX, que atribuíram propósitos comerciais e administrativos às cidades, que nunca antes tinham desfrutado, morreram todas passado algum tempo. Nas palavras p. 113 de Neal Parsons (1982), a dimensão das cidades tswana acelerou o curso de um ciclo, exatamente como aquele conhecido pelas aldeias, onde a cidade teve que ser transferida e a população deslocada muitas vezes, com considerável frequência. A urbanização tswana promoveu um “ciclo de esgotamento das pastagens locais, dos solos cultiváveis, da madeira e dos suprimentos de água” (PARSONS, 1982, p. 120). Em particular, Parsons acredita que a eflorescência e o subsequente desaparecimento da cidade tswana estejam proximamente correlacionados ao esgotamento dos recursos de madeira nas imediações. Foi assim que Shoshong morreu para ser substituída por Phalatswe - Palapye Velha - no final da década de 1880. A cidade de Dithakong já tinha desaparecido há muito tempo. A estrutura da agro-cidade não se podia prestar sem estímulos externos para o surgimento de atividades económicas que eram de caráter especificamente urbano. No entanto, precisamos respeitar como uma faceta da evolução humana, este raro, mas não único, tipo de preferência, por um povo de pastores e camponeses, em escolher viver e desenvolver o próprio sentido de comunidade, em assentamentos do tamanho de grandes cidades. Se procurarmos analogias no Sul de África, por um padrão que configure o da urbanização tswana, existe uma possibilidade que vem de trás, num tempo muito mais remoto. Durante um período de alguns séculos, a construção em pedra, de uma natureza impressionante, teve lugar em assentamentos relativamente permanentes no centro-sul de África, principalmente no moderno Zimbabué – cujo nome moderno deriva do que parece ser uma palavra shona para tais assentamentos (madzimbahwe, i.e. residências dos chefes) - mas estendendo-se até o território do Botswana. Na verdade, construções de pedra menos impressionantes, do ponto de vista arquitetónico, foram realizadas extensivamente em toda a região de planalto Highveld Sul-Africano, com continuidade até recentemente. A maioria desta construção é acompanhada por traçados de povoações e aldeias relativamente pequenas, mas nem todas. Algumas marcam claramente comunidades bastante grandes. O local mais antigo associado a este padrão construtivo situa-se em Mapungubwe, na província de Limpopo da África do Sul, perto do rio com o mesmo nome. Mapungubwe é um local de colina com alguns túmulos impressionantes e belos objetos de arte, que podem ser associados ao início do comércio de ouro com o litoral, há mais de mil anos atrás. A residência de uma família real ou clã no topo da colina é outra característica notável. Mas enquanto comunidade urbana, parecem ter sido bastante pequenas e limitadas. p. 114 Mais para norte estão as ruínas do que chamamos de Grande Zimbabué, não muito longe da moderna cidade de Masvingo, no Zimbabué. Aqui, existem ruínas estetica- mente incríveis - uma maravilhosa torre circular, muros altos, por vezes moldados para permitir a construção por etapas, padrões de parede ornamentadas, mostrando um incrível trabalho de mão-de-obra, construída acima do vale, numa colina que os primeiros arqueólogos chamaram de Acrópole, onde os bens necessários para a vida quotidiana teriam de ter sido levados, laboriosamente e diariamente, por carregadores. Há muito que nada sabemos sobre estas ruínas, mas existem alguns aspectos relativos a Zimbabué, em que os cientistas parecem concordar. Um deles, é que o vale continha uma densa comunidade de casas construídas com barro e madeira - no seu auge, muitas delas eram rebocadas - onde outrora as pessoas viviam. Até quinze mil dessas pessoas podem ter sido moradores de uma vez só, num assentamento cuja área seria de setecentos hectares (Huffman, 1996, p. 125). O autor David Beach (1984) imaginou isto como “uma grande massa de cabanas lotadas que se espalhavam pelo vale entre os pântanos e subindo as encostas em terraços... basicamente uma construção de meados do século XIII ao XIV.” (BEACH, 1984, p. 25). As ruínas de pedras, certamente não eram casas. Os muros, de pouca utilidade para defesa, poderiam, ter servido para limitar algumas atividades, talvez ofícios sagrados, da população. Nunca saberemos exatamente para que propósito serviam as diferentes estruturas. O arqueólogo Tom Huffman (1996) deu uma série de sugestões criativas, com base no seu estudo da iconografia sagrada das pessoas da língua venda, que atualmente vivem no lado sul da fronteira, na África do Sul e que podem potencialmente deter muito mais da antiga cultura do Grande Zimbabué do que as pessoas que vivem atualmente perto das ruínas (HUFFMAN, 1996). Pelo menos sugerem um elemento adicional que precisamos considerar, a importância do sagrado: os locais urbanos podem servir de posicionamentos ideais para cerimónias e atividades que ligam as pessoas aos antepassados e aos deuses, de uma forma que vai tecendo a malha que une pessoas e forma comunidade. O elemento sagrado teve, por vezes, claramente um significado real para explicar as raízes da aglomeração urbana e pode ter sido, neste caso, o principal elemento. Se Huffman estiver certo, as atividades sagradas relacionadas com uma poderosa dinastia, ou dinastias, de chefes, foram mais importantes do que qualquer impulso económico para esta grande comunidade, que era comparável, em dimensão, às grandes agro-cidades tswana. Os historiadores sentem-se confiantes que o Grande Zimbabué foi o centro de um estado que comercializava ouro com a costa do oceano Índico, e que era uma cidade efetivamente ligada por um cordão umbilical a Kilwa, que controlava esse comércio durante o seu auge, e que era a mais impressionante comunidade urbana que se p. 115 desenvolveu na costa da África Oriental, antes da chegada dos europeus. Veremos a cidade de Kilwa mais adiante neste artigo. Contudo, embora existam vestígios de comércio de longa distância nas ruínas do Grande Zimbabué (contas indianas, uma tigela persa, porcelana chinesa), detém uma qualidade estranha – fragmentos de cerâmica e moedas, em vez de provas de um verdadeiro quarteirão comercial ou de qualquer lugar indicador de uma intensa atividade comercial. O declínio desse notável assentamento pode estar relacionado com mudanças substanciais no comércio do ouro, embora não seja consensual entre os cientistas. Nem é claro como o comércio de ouro teve influência no fortalecimento do poder político na região. De forma geral, os cientistas concluíram que a grande concentração populacional no Grande Zimbábue, apesar de todo o esforço humano que foi feito para edificar as suas pedras, se tornou insustentável depois de algum tempo, tal como foi com as agro-cidades tswana. O vale onde as ruínas estão situadas parece ter-se tornado improdutivo para agricultura, devido ao cultivo intensivo e/ou a mudança climática. Foi abandonado por volta do 1450, depois de talvez duzentos anos de ocupação, e nenhuma comunidade de outro tamanho voltou a estabelecer-se naquele lugar. Qualquer que seja a causa ambiental que possa ter levado ao assentamento inicial neste lugar - se é que existiu - terá sido passageira. p. 116 Existem inúmeras outras ruínas semelhantes na região, muito mais a oeste, nas áreas mais secas de Matabeleland e no norte do Botswana, mas nesses lugares a construção em pedra não foi tão extensa ou impressionante, e a escala dos assentamentos era menor. David Beach (1984) sugere que estas eram dissidências culturais, talvez estabelecidas por ramos fragmentados de famílias de chefes, com cada vez menos riqueza ou ligação com o comércio exterior. Essa hipótese parece ainda mais válida no caso das capitais de chefia shona, descritas por visitantes portugueses do século XVI, geralmente localizadas mais a norte. A dinastia Mutapa construiu muito cidades barricadas com pouca ou nenhuma construção de pedra e com mais ênfase na defesa. Esta dinastia foi, de facto, o poder governante que lucrou com o comércio de ouro nos seus últimos séculos de existência. Talvez o Grande Zimbabué tenha sido um tipo de experiência urbana que falhou, em vez de evoluir por um caminho de maior complexidade e sofisticação. Talvez a ideia de agro-cidade tswana tenha sido de alguma maneira influenciada por este tipo mais extenso de assentamento e represente o seu único sucessor decorrente. São Salvador e Gondar Cerca de um século após o declínio do Grande Zimbabué, o contacto com os europeus foi um fator gerador na construção de grandiosos territórios urbanos no interior de África. No entanto, o carácter urbano desses territórios permaneceu incompleto. Um exemplo foi o de Mbanza Kongo, a capital de um amplo e poderoso estado, situado a sul do rio Congo, na Angola de hoje, que comercializava com os portugueses - especialmente escravos - desde o século XV. Os portugueses estavam particularmente interessados no reino do Congo como um aliado, e não mediram esforços para o assimilar no modelo europeu, particularmente em cristianizá-lo. A família real patrocinou uma cultura cristã literata ao longo de várias gerações e assumiu de boa vontade algumas formas de estado europeias, na perspectiva dos seus parceiros comerciais. A capital, sensacionalmente situada num planalto montanhoso, atraiu principalmente os membros da corte da realeza, mas também se tornou o local de um conjunto de edifícios cristãos, inicialmente construídos em pedra, sob a direção de europeus - mas durante algum tempo foi conduzida por africanos que dominavam as técnicas construtivas - e habitação de monges e padres. Provavelmente, atingiu o seu apogeu em meados do século XVII. Para os europeus, era a cidade, razoavelmente nobre, de São Salvador. Diante da praça, junto a uma catedral e um palácio, encontrava-se uma pequena cidade muralhada habitada por portugueses. Para os africanos, Mbanza Kongo permaneceu um lugar onde caminhos estreitos percorriam complexos muralhados com espaço suficiente para gado e horticultura, mas com área para a agricultura, uma vez que a cidade e o campo fundiam-se um no outro. Até o palácio não foi habitado por muito tempo. Provavelmente era inconveniente e sujo em comparação com a estrutura típica de um grande complexo. O mecenato real permaneceu como a base da atividade económica de tal forma que, a propriedade privada, em determinados locais, parece nunca ter sido desenvolvida. Havia pouco espaço até para criar uma sociedade civil urbana rudimentar, mas a aura do poder sagrado associado ao local, sobreviveu após o declínio secular do reino depois do final do século XVII, e o local físico reteve a importância cultural como resquício da sua glória urbana, muito tempo depois da relevância política de Mbanza Kongo ter desaparecido. Mbanza sempre teve, talvez mesmo antes da criação da sua cidade, uma associação com urbanidade e civilidade na língua kikongo, diferenciando-a da vida na aldeia. Contudo, ao lado das notáveis fachadas de pedra, que simbolizavam a civilização para os europeus, uma comu- p. 117 nidade africana com associações diferentes deu, realmente, vida a São Salvador, tornando-a um lugar vital partilhado pelas pessoas. Por isso, a cidade do século XVIII, que permaneceu com considerável importância sagrada, e até política, na região, com concentrações populacionais por vezes tão grandes como no passado, continuou a ser identificada com os antigos edifícios em pedra, mesmo quando estes caíam cada vez mais em ruína. A milhares de quilómetros de Mbanza Kongo, outra cidade em pedra de influência portuguesa erguia-se no planalto etíope - Gondar. O imperador Fasíladas, que reinou no segundo quartel do século XVII, apesar da expulsão dos Jesuítas e da restauração da Ortodoxia Copta como igreja da Etiópia, foi responsável por autorizar a construção de palácios e igrejas nesta cidade, a cerca de cem quilómetros a norte do lago Tana. Ao contrário de Mbanza Kongo, o processo de construção da cidade de Gondar continuou por várias gerações. Este foi um desvio aparentemente flagrante na história etíope, onde nenhuma capital construída permanentemente chegou a existir por mil anos. As terras altas da Etiópia foram, por muitos séculos, o lar de uma sociedade de classes indígenas de senhores e camponeses. No entanto, embora os assentamentos comerciais tivessem sem dúvida existido por muito tempo, a urbanização era um fraco poder. O que acontece se olhar para trás mais mil anos, a partir da época Fasíladas? Paralelo à existência do Império Romano tardio, houve um reino que se converteu ao Cristianismo e onde dominava uma língua semítica ancestral aos usos linguísticos atuais, que se concentrou na cidade de Aksum. Aksum manteve-se de grande importância por muitos séculos e ressurgiu como um centro cristão e cidade mercantil na época medieval e mais além. Todavia, o arqueólogo David Phillipson (2000) chegou recentemente à conclusão que, enquanto: Aksum era de tal tamanho e importância para merecer o termo ‘cidade’[...]não existe evidência de que Aksum era uma cidade, do modo como esse termo é por vezes compreendido. As suas estruturas, co+++mo são conhecidas atualmente, compreendiam grandes edifícios de propósito desconhecido, mas claramente associados à elite, bem como monumentos funerários e edifícios religiosos(PHILLIPSON, 2000, p. 61). p. 118 Até onde sabemos, as pessoas comuns viviam a alguma distância deste núcleo sagrado, perto de campos cultiváveis. Aksum não tinha muros defensivos. A vida comercial do estado de Aksumite deve ter sido considerável (cunhou moedas), mas talvez pouco tenha avançado nessa antiga cidade africana. O seu papel político e sagrado refletia, sem dúvida, tradições etíopes ainda mais antigas, que até agora foram apenas reconhecidas vagamente por arqueólogos. Posteriormente, os sucessivos governantes etíopes, viajavam constantemente com as suas cortes para manter o controle sobre os seus súbditos. Mas não tentaram conter subordinados insurgentes dentro dos muros da cidade. O Cristianismo Etíope focou-se, principalmente, em mosteiros, em vez de catedrais urbanas. Antes da cidade de Gondar ter sido construída, a corte costumava consistir num acampamento de centenas de tendas para os seguidores. Não só isso foi entendido como um meio para a corte fazer sentir a sua autoridade em regiões-chave, mas também tinha uma lógica ambiental. O peso deste tipo de exploração natural em bruto, de alimentos, madeira e outros produtos, só diminuía sazonalmente, em determinadas localidades, se a corte se deslocasse, na sua ausência a região era autorizada a recuperar. Edifícios menos impressionantes marcaram, de longe, a existência de centros mercantis regionais e cidades que atraíram relativamente pouca atenção por parte dos historiadores da Etiópia. A própria cidade de Gondar foi importante pela sua associação com a realeza e, através da realeza, com a igreja e não para atividades comerciais particularmente significativas. Uma iconografia do sagrado provou essa importância. O recente estudo de Donald Crummey (2000) regista nada menos que onze importantes igrejas régias nas proximidades. Crummey também sublinhou que a mudança iniciada pela construção permanente em Gondar foi menos dramática do que o que um olhar europeu pode imaginar. No séc. XVII “Gondar era acima de tudo uma residência de Inverno, um lugar onde a corte real e os seus sempre amplos círculos de lacaios e dependentes passavam a ‘estação das chuvas’” (CRUMMEY, 2000, p. 74). A génese ambulante do estado perdurou após o surgimento da construção permanente de Gondar, no século XIX, durante um período de relativa fraqueza da realeza. Em meados do século XVIII, o ritmo da vida comercial estava a aumentar e Gondar estava a adquirir maior importância económica (ao contrário de Mbanza Kongo). A documentação que sobreviveu indica a crescente frequência de vendas e compras de habitações. As pessoas ricas começaram a ter uma participação na prosperidade permanente de Gondar, independentemente do destino da enfraquecida dinastia real. Este padrão de comercialização, que começou a transformar as aglomerações populacionais mais antigas em toda a África do século XIX, se sobreviveram ou não às suas convulsões, irá aparecer mais 2 claramente no próximo capítulo. Gondar e Mbanza Kongo são, em certos aspectos, um outro tipo de cidade antiga, comparativamente com as agro-cidades do centro- p. 119 -sul africano e os vestígios muralhados do Zimbabué, embora as suas respectivas evoluções tenham divergido uma da outra. Desenvolvem-se cidades no Egito O lento aparecimento do urbanismo, da vida plena da cidade, também é, de certo modo, observável a uma distância ainda maior no tempo, no antigo Egito. Ao longo de grande parte da sua longa história, particularmente antes do Novo Reino (1540-1070 a.C.), o Vale do Nilo conheceu de alguma forma concentrações populacionais, mas no sentido pleno da palavra, as cidades foram inventadas muito devagar. De facto, por muito tempo, tais concentrações, pelo que podemos supor pelo tamanho das localidades, podem não ter sido muito maiores do que os contextos urbanos que estivemos a considerar acima, em outras partes de África. O antigo Egito não tinha moeda - as trocas comerciais faziam-se na distribuição em espécie. A arquitetura doméstica, segundo os arqueólogos, parece ter consistido, em grande medida, em instalações para armazenar grãos, para moagem e fabrico de cerveja. Existe, portanto, uma lógica evidente na domesticação egípcia do gato, como forma de lidar com o flagelo dos roedores. A arquitetura doméstica era normalmente construída em adobe e de um só piso, idealmente erguida em volta de um pátio. Dadas as dificuldades em produzir excedentes, é provável que as famílias urbanas precisassem normalmente e tivessem acesso a terras agrícolas nas proximidades. A distribuição, por sua vez, era gerida pelos templos, e em nome dos deuses. Os mercadores eram geralmente agentes económicos que operavam em nome dos funcionários e/ou sacerdotes do templo. Com o tempo, as casas ficaram maiores. As grandes vivendas tinham corredores com colunas, enquanto os pátios continham piscinas de água. Espaços distintos para cozinhar foram estabelecidos como cozinhas e formas básicas de mobiliário para armazenamento e cadeiras foram esculpidos em madeira. Para os mais abastados, as camas também eram feitas em madeira. O telhado era frequentemente usado como espaço para momentos de lazer, assim como para armazenamento, e era acessível por escadas, enquanto que a cidade de Tebas tinha casas com mais de um andar. Pequenas janelas eram esculpidas nas paredes para não deixar entrar pó. p. 120 Os grandes monumentos do Egito, que definem a sua fama, estão relacionados com culto e com um poder de estado intimamente ligado ao culto, onde o natural e o sobrenatural estavam estreitamente interligados. Muito foi produzido com o intuito de apoiar as atividades da vida após a morte. Residências seculares, mesmo as dos poderosos, parecem ter sido pequenas e os seus espaços maiores eram reservados para cerimónias públicas. Muito do que conhecemos sobre a vida de homens e mulheres comuns no antigo Egito vem de escavações arqueológicas das casas daqueles que trabalhavam em projetos funerários ou como servos nos templos. Embora a arte egípcia esteja repleta de imagens da esfera doméstica, a real separação da esfera privada da vida, independente da sagrada, foi um processo muito lento. Por isso, as aglomerações urbanas provavelmente surgiram em grande parte como, e assim permaneceram por muito tempo, o conjunto das casas das pessoas vinculadas aos rituais de culto aos deuses e às necessidades da vida após a morte. Na época do Novo Império, a cidade de Menfis, construída no local onde o Nilo se divide nos muitos canais do seu delta, tinha-se tornado um importante entreposto comercial e de construção naval, mas pelo menos um terço do espaço urbano foi ocupado por templos e construções sagradas. Não obstante, as cidades egípcias podem ter demonstrado um alto nível de planeamento urbano, refletindo o seu caráter religioso e burocrático, o que causou uma boa impressão: “As primeiras paisagens a serem vistas, ao chegar à cidade de barco pelo rio, foram as pontas douradas de centenas de mastros de bandeiras dos templos, reluzentes como cristais à distância. Depois, à medida que se aproximava, uma miríade de galhardetes de linho cintilava contra os penhascos púrpura” (ROMER, 1984, p. 4). Os chefes de estado das cidades no Egito eram, efetivamente, os sacerdotes, e o traçado do espaço urbano era cuidadosamente pensado. No único exemplo que conhecemos - uma antiga cidade egípcia que foi escavada relativamente intacta, Amarna – o elemento-chave estruturador era uma grande avenida ladeada por templos. Contudo, existem poucas evidências de interesse na estrutura das áreas residenciais. No início do Novo Império, por exemplo, Tebas foi o assentamento urbano-chave do Egito e um lugar de “espetáculo e magnificência” (KEMP, 1989, p. 206), e foi totalmente evacuado e nivelado de maneira a abrir espaço para novos templos de pedra. A nova - e ainda sem muros - Tebas, chamada pelos egípcios simplesmente de ‘A Cidade’ ou algo semelhante a Waset (Tebas foi o nome usado pelos gregos), estendia-se por talvez quinze quilómetros ao longo do Nilo. A vida comercial das cidades da Mesopotâmia (hoje, o Iraque) - e com ela espaços incomparavelmente mais privatizados - parece ter-se desenvolvido milénios antes da civilização ribeirinha do Egito. Tão pouco a cultura egípcia teve muito espaço para o “urbano” como forma de vida - o imaginário de uma vida de qualidade era associado à vida no campo. Foi muito lentamente que o mundo económico do comércio e produção de mercadorias quebrou a carapaça p. 121 da cultura religiosa egípcia e das estruturas e pessoas, ligadas ao culto religioso. Existem, portanto, paralelos importantes entre a história da urbanização no Egito e em outras partes de África, se considerarmos o período de tempo excecionalmente longo dessa história. As primeiras cidades da África Ocidental Mesmo assim, o início da história da África Ocidental também nos permite considerar muitos assentamentos urbanos ao longo de um período de até dois mil anos. A tradição oral, que contém elementos que sobreviveram à vida urbana mais recente, conjugada com as evidências fornecidas pela arqueologia, sugere algo sobre a vida nesses assentamentos. A arqueologia é o que nos permite escrever algo sobre os antigos assentamentos perto da moderna cidade de Djenné, no Mali. Os antigos assentamentos do rio Níger, são conhecidos por estarem ligados ao comércio trans-saariano de ouro. Tendemos a supor que seja melhor imaginá-los como surgidos em conexão a ligações comerciais. O lugar de Jenné-Jeno, que foi explorado pelos McIntoshes, na direção do extremo norte do cinturão de cultivo na África Ocidental e conveniente aos movimentos de caravanas à procura de oásis no Saara, parece encaixar-se perfeitamente neste modelo. Contudo, o que se descobriu em vez disso é que, há dois mil anos atrás, a concentração populacional neste local precedeu o comércio trans-saariano e a chegada do camelo. Parece ter sido principalmente uma resposta às características específicas do ambiente local, onde o deserto se encontra com a planície e o rio. Nem existem traços tangíveis de qualquer autoridade política ou sagrada para explicar esta concentração. Houve talvez vinte mil pessoas a morar em Jenné-Jeno, por volta do ano 800 d.C., com sinais evidentes de especialização económica, mas o local não deixou vestígios de construção para elites, nem de centralização política de qualquer importância - sem edifícios públicos, monumentos, nem santuários. Gao, eventualmente o centro do estado de Songhay e o lugar da mais antiga evidência epigráfica datada no Sahel, revelou uma história um tanto paralela. Lugares semelhantes, pré-islâmicos, pré-comércio internacional, por exemplo, nas proximidades de Timbuktu, são suspeitos de também terem existido. p. 122 É a partir da década de 1060 que temos uma descrição de um geógrafo árabe, al-Bakri, sobre a cidade capital de um estado da África Ocidental que fazia fronteira com as rotas do comércio de ouro, uma cidade chamada al-Ghaba, ou ‘a mata’, presumivelmente por estar associada a uma mata sagrada. A maior entidade urbana (regente ou estado) era conhecida pelos árabes como o Gana. No século XII, a cidade tinha uma componente islâmica, mas al-Ghaba era a cidade real, distante da cidade comercial muçulmana, na qual “as casas são construídas em pedra e madeira de acácia. O rei tem um palácio com cabanas cónicas (ao seu redor), cercado por uma vedação como um muro” (n.d.). Ao redor da capital existiam conjuntos que continham estruturas em cúpula, onde deuses locais e ancestrais eram venerados. Esta é uma imagem muito diferente daquela que os McIntoshes forneceram sobre a cidade de Djenné. A autoridade política no Gana estava efetivamente ligada ao poder espiritual e ambas se infundiram na capital. O local da capital do Gana foi identificado nas ruínas de Kumbi Saleh, no sul da Mauritânia - mas, infelizmente, nenhum vestígio de uma cidade pré-islâmica, ou não-islâmica, foi ali encontrado. Noutras partes da África Ocidental foram uma vez mais detetados padrões um pouco diferentes. À medida que viramos para sul e oriente, na direção do território densamente povoado da Nigéria de hoje em dia, a predileção pela concentração urbana remonta a tempos bastante mais antigos. Além disso, os elementos convencionalmente urbanos estão em vigor há vários séculos. Nas regiões de savana, os estados que existiam no séc. XVI, e posteriormente, eram todos associados, pelos seus nomes, às suas cidades capitais. Kano, a maior das cidades do Norte da Nigéria contemporânea, pode ser associada particularmente a um planalto sagrado, Dalla Hill, onde se acreditava que moravam espíritos poderosos. Dalla ergue-se sobre as imediações, uma área fértil e hoje muitíssimo densamente povoada. Nas proximidades, existem fontes particularmente ricas em minério de ferro. Muita terra agrícola foi delimitada pelos impressionantes muros externos de Kano, que defendiam um mundo económico ainda não distinto do campo. Na verdade, as cercas muralhadas definiam vastos territórios em volta de todas as cidades de língua hausa, na savana central da África Ocidental. A birni, ou ‘cidade’, tal como uma unidade social distinta, é uma antiga unidade conceitual estabelecida (mas de que antiguidade?) na língua hausa, bastante diferente do conceito de aldeia ou aldeamento. Durante séculos, atividades tipicamente urbanas marcaram o birane. Kano, por exemplo, tornou-se um importante entreposto comercial, um lugar de riqueza cujo regente era simultaneamente a fonte e o controlador de tal riqueza. Dentro da hierarquia de funcionários convencionalmente exercidos pela autoridade urbana, existiam figuras que eram essencialmente urbanas nas suas funções – relacionadas com a boa ordem da cidade ou do mercado. Inicialmente, p. 123 é provável que a supervisão do mercado fosse mulher, refletindo o poder feminino sobre o comércio. A formação dos povos, a difusão dos estados e o Islão estão intimamente ligados à influência dos birni. Para o historiador Abdullahi Smith (1987), o birni deve ter tido, por definição, muros (SMITH, 1987). A autoridade política e a defesa foram, de facto, atributos-chave na definição de cidade. A outra característica é a composição da população: qualquer birni conteria diferentes quarteirões habitados por diferentes povos. O sarki, ou regente, não podia ser um chefe tribal. Por definição, ele manteria a autoridade sobre vários povos. A arqueologia nigeriana não é avançada o suficiente para sugerir quando o birane surgiu, mas a sugestão de Smith é que eles tenham vindo a evoluir desde a época do Gana e dos primeiros assentamentos urbanos ou semiurbanos em torno de Djenné e Timbuktu, portanto na época equivalente à Idade Média europeia, ou até ligeiramente antes. Os muros de Kano e de Zaria (que envolvem Kufena, um impressionante monte elevado comparável a Dalla) remontam ao séc. XV e provavelmente tinham fundações ainda mais antigas. É impossível dizer como eram as primeiras aglomerações urbanas, mas há muito que estas já tinham desenvolvido formas urbanas convencionais, embora distintas entre si. Mais a sul na Nigéria, perto da fronteira entre a savana e a floresta e mesmo no interior da floresta, outro padrão urbano emergiu e prevaleceu durante muito tempo. Assim como na savana, trata-se de, não meramente uma questão de cidades capitais, mas de inteiras redes de cidades. O padrão mais notável de todos está relacionado com os povos de língua yorubá do sudoeste da Nigéria. Uma grande percentagem de pessoas da língua yorubá, na época da conquista britânica, vivia em aglomerações, algumas delas notáveis, como Ibadan, com mais de duzentos mil habitantes, que era deveras grande. Estas cidades eram quase certamente muito menores e provavelmente muito menos caracterizadas por atividades comerciais e artesanais na época anterior à turbulência das guerras civis yorubá, do início do século XIX, e do rápido aumento do comércio de mercadorias que se seguiram, mas certamente existiam - e foram substanciais. p. 124 Ibadan foi organizada em torno de redes de conjuntos liderados pelos chefes de linhagens que eram, realmente, os proprietários das terras. Tais conjuntos urbanos continham de quarenta a quatrocentos habitantes, a maioria dos quais no século XIX eram trabalhadores domésticos (dependentes endividados) e escravos. Mais a norte, certos quarteirões urbanos eram associados a grupos étnicos específicos, ou a certas formas de culto. De uma forma geral, a população que morava nos conjuntos muralha- dos saía para trabalhar nos campos, onde costumavam manter um abrigo temporário. Havia, portanto, limites no caráter urbano desses assentamentos. Ainda assim, eles foram o local central da produção artesanal yorubá no século XIX, e mantiveram uma intensa vida comercial. Os mercados estavam localizados no centro dessas grandes e admiráveis cidades - o comércio dentro das cidades era provavelmente muito mais importante do que o comércio regional. As cidades yorubá tornaram-se lugar de festividades e de rituais sagrados que definiram a cidade e os seus habitantes. Os autores Peter Lloyd, A. L. Mabogunje e B. Awe (1967) apontam também para outro aspecto central na cidade yoruba ou nigeriana: o poder político. O traçado da cidade – a sua iconografia - manifestava uma geografia de poder. Evidências de muros enormes e elaborados, mesmo que já não existam, podem normalmente ainda ser encontradas agora mesmo. Assim, Oyo ile, o maior centro político até ao final do século XVIII, era cercado por muros que cobriam entre vinte a trinta quilómetros quadrados. O viajante britânico Hugh Clapperton relatou nos seus diários a existência de sete mercados distintos em 1826. Para os Yoruba, Ile-Ife, com certeza o lugar do extraordinário bronze milenar descoberto na época colonial, foi a cidade que marcou as suas origens como um povo civilizado. O funcionalismo público, como nas cidades p. 125 Figura 1. Kumase, a capital de Asante: cena de rua e palácio. Fonte: Dupuis, Journal of a Residence in Ashantee (1824). Cortesia da Cambridge University Library. hausa, foi criado para organizar a administração da cidade e da própria vida urbana. Ibadan, uma criação do século XIX, é um caso notável: não tinha um governante único e obviamente representava uma federação de pessoas de diferentes origens que se reuniam voluntariamente e que se consideravam uns aos outros como iguais. Neste sentido, trata-se de uma cidade cosmopolita, como Smith analisou para a birane hausa. O sociólogo britânico John Peel (1983) forneceu-nos um olhar mais atento sobre uma cidade yorubá menos conhecida, Ilesha, que continha uma população de vinte a vinte e cinco mil pessoas no final do século XIX, um período de declínio (PEEL, 1983). Ilesha pode ser melhor definida como o centro de um estado, uma capital política e sagrada rica em túmulos e santuários reais que compreendia uma grande variedade de bairros, geralmente dominados por importantes grandes famílias e frequentemente associados a linhagens específicas. Um sistema de cargos e títulos vinculava os deveres políticos e administrativos dos membros do estado. Pela situação de tal bairro, os indivíduos podem ser descritos precisamente como pessoas pertencentes à cidade, como cidadãos. É claro que a maioria da população era composta de dependentes domésticos, certamente no século XIX, sendo os escravos muito numerosos, estes não eram cidadãos. Contudo, Peel prefere ver o paralelo com uma pólis grega de cidadãos livres, em vez de uma aristocracia, controlando “escravos... homens jovens... estrangeiros... comunidades subordinadas, para não falar das mulheres” (PEEL, 1983, p. 45) - revelava assim a mesma ambiguidade oculta no urbanismo e na cidadania grega como conceitos. Um estudo de história da cidade revela também tudo menos harmonia: conflitos violentos entre bairros - o ija igbooro - marcavam a história da cidade. As famílias dominantes tinham obrigações práticas em termos de cuidado do seu bairro da cidade, bem como funções rituais. Por vezes estavam também relacionados com ofícios especializados. Todos tinham acesso aos campos que sustentavam a vida do agregado familiar e formavam a base da economia - campos distantes até quinze quilómetros da residência urbana, e em muitos casos, habitações modestas proporcionavam abrigo temporário nesses campos. Havia também cidades-satélite que deviam lealdade a Ilesha. Algumas eram apenas aldeias, mas outras participavam numa rede urbana na qual podiam, em determinadas circunstâncias, perder ou ganhar mais importância. Embora, em alguns aspectos, Peel veja Ilesha como tendo um toque cultural e político muito característico de cidade, na sua opinião: p. 126 Na parte sul da África Ocidental, outras cidades também merecem ser mencionadas, cidades que em muitos casos refletiram a majestosidade de um estado e estabeleceram limites e espaços adequados para a residência de um governante sagrado. Isto também pode refletir um padrão muito antigo, embora até à data seja impossível fornecer uma linha do tempo ou um ponto de origem. Existem algumas diferenças, mas provavelmente muito mais semelhanças, com o modelo de cidade yorubá, embora as grandes cidades não fossem, em parte alguma, tão características da fixação humana. Dois exemplos são a cidade de Benin, no centro-sul da Nigéria, a oriente do país Yorubá e, consideravelmente mais a ocidente, a cidade de Kumase, onde hoje é a república do Gana. Benin, pouco influenciada pelos estilos europeus, foi memoravelmente descrita por um viajante holandês, Olfert Dapper, em 1668, como “grande como a cidade de Haarlem [isto na verdade refere-se apenas ao recinto real]” (DAPPER, 1668) e caracterizada por amplas estradas e um vasto recinto real com galerias lindamente trabalhadas e palácios baixos, decorados. O complexo da grande muralha do Benin, do qual alguns vestígios ainda estão de pé, apresenta puzzles espaciais para o arqueólogo. A importância do complexo do governante sugere a centralidade da vida política na organização e definição da cidade. O mesmo pode ser dito de Kumase, a sede da Asantehene e lugar central da Confederação Asante, o poder dominante durante os séculos XVIII e XIX por grande parte da república moderna do Gana. Construída nas encostas de um cume rochoso no início do século XIX, a cidade de Kumase continha uma população permanente de quinze a vinte mil pessoas, o tipo de número que observamos repetidamente em centros populacionais africanos ao longo dos séculos. No entanto, os números aumentavam exponencialmente em épocas de festivais e temporadas quando era importante que os cortesãos comparecessem perante o Asantehene, e diminuiam drasticamente quando o Asantehene estivesse ausente em qualquer altura. Alimentar, mesmo números mais pequenos de pessoas, exigia um ambiente urbano onde grande parte da população cultivasse e passasse algum tempo nas aldeias vizinhas de Kumase. Os primeiros visitantes europeus deram provas gráficas de pátios e galerias decorados, que marcaram o caráter sagrado e político da cidade, como era o caso em Benin. Como em Benin, as vias públicas eram muito bem cuidadas: “As ruas p. 127 são geralmente muito largas, limpas e ornamentadas, com muitas figueiras bonitas, oferecendo uma agradável sombra dos poderosos raios de sol” (WILKS, 1975, p. 381). Na sua massiva história de Asante, Ivor Wilks coloca, de longe, o maior peso na cultura política da região ao explicar o crescimento de Kumase. No seu apogeu, Asante foi uma cidade muito ativa comercialmente, negociando ouro e nozes de kola por longas distâncias. Mas o comércio não era principalmente feito em Kumase. E Kintampo, a grande cidade mercantil que lidava com o comércio do norte, parece ter sido uma cidade de habitações relativamente efémeras e de pouco peso político. Kumase era uma cidade, mas que dependia muito unilateralmente da imposição física e prioridades de um rei poderoso. É difícil de entender o contrário, como um espaço urbano (WILKS, 1975). De um modo geral, vários tipos de assentamentos urbanos evoluíram admiravelmente ao longo do tempo na África Ocidental com semelhanças e também diferenças significativas. p. 128 Este estudo sugeriu alguma da variedade, da sua extensão geográfica e alcance ao longo do tempo dos primórdios urbanos em África. A urbanização apoiou-se em vários pilares. O primeiro e mais difícil de definir foi claramente o ambiental: a descoberta de locais específicos onde as possibilidades económicas sugeriram a importância de concentração humana para o cultivo, como nas populações de Jenné-Jeno ou nas agro-cidades de Kalahari. O segundo pilar era o sagrado, a importância espiritual dentro de muitas culturas africanas para um espaço comum de culto e reverência, sem dúvida ligado ao surgimento de crenças que transcenderam os cultos dos ancestrais locais. Este elemento já era importante em Aksum ou no Grande Zimbábue. O terceiro pilar é a ascensão de estados poderosos, muitas vezes intimamente ligado aos rituais religiosos. Provavelmente também existe uma quarta categoria, onde, de uma forma original, a malha urbana e rural, e a cidade muralhada, se tornam inerentes à definição cultural de toda a sociedade, como encontramos no que é hoje o Gana e a Nigéria. Da época do antigo Egito, no entanto, o político e o religioso tiveram implicações económicas, mesmo que a economia não emergisse tão claramente como uma esfera separada da vida. No restante deste artigo, vamos sugerir que, em alguns momentos e lugares, a importância da atividade comercial de grande escala e a incorporação em circuitos comerciais de longa distância - por vezes marcados pela colonização de fora - cedeu um novo e crucial elemento no processo de urbanização. Claro que este aspecto será mais óbvio quando analisarmos assentamentos humanos ligados ao comércio dentro da “economia-mundial”, com a ascensão da Europa, mas antes de nos virarmos para isso no segundo capítulo, devemos considerar a urbanização ligada a influências anteriores a estes, antes da era moderna. Alexandria e Cartago A primeira região de África onde tais influências se tornaram muito importantes foi o Norte de África, e podemos entender melhor o impacto que tiveram considerando duas cidades admiráveis: Alexandria e Cartago. Estas foram cidades incrivelmente grandes, clássicas, revelando todas as características que fascinaram estudiosos sobre a vida urbana. Eram de tamanho muito grande em comparação com as cidades que estivemos a examinar anteriormente, e abastecê-las deve ter transformado amplas extensões de campo para criar um mercado viável. Eram cidades cosmopolitas, que incluíam atividades económicas complexas, muito comércio e vários ofícios, faziam pulsar vida pelas suas ruas e vielas. A arquitetura pública de Alexandria era muito famosa na sua época, muito massiva e destinada a ser permanente, embora pouco dela tenha sobrevivido. Alexandria foi o lugar do grande Farol de Faros, a construção mais alta do mundo clássico tardio, com 135 metros de altura, guiando os navios até ao seu porto, bem como da biblioteca que pode ter sido o maior repositório clássico de aprendizagem e do museu onde se juntavam estudiosos oriundos de muitas terras. A população incluía muitos intelectuais de diferentes estratos sociais e, sem dúvida, um grande número de assalariados ou proletários. Certamente, era também uma cidade de pobreza e de riqueza. Estudos sobre uma cidade muito menor, Hermópolis, cujos registos sobreviveram durante parte do período romano, revelam que das terras pertencentes a moradores urbanos, cerca de 78% pertencia a 2% dos indivíduos. Alexandria foi provavelmente caracterizada por concentrações muito maiores de riqueza. Tanto Alexandria quanto Cartago tinham uma origem essencialmente estrangeira e não poderiam ter existido sem a crescente integração do litoral norte-africano num mundo economicamente muito maior. Fenícia, Grécia, Roma - todas estas culturas eram fundamentalmente urbanas no seu âmago – e foram, aqui, as principais influências. Alexandria foi fundada após a morte de Alexandre - o Grande, no século IV a.C. e foi a capital dos ptolomeus, descendentes de um general conquistador, e mais tarde a capital da província do Egito Romano. Governada primeiramente por um senado, Alexandria cedo perdeu a sua autonomia e uma grande parte dela foi coberta por palácios e propriedades do estado, mas tinha uma administração municipal distinta. Além disso, bairros, e notavelmente bairros distintos (cada um deles era chamado de anfodonte), tinham uma liderança reconhecida pelos romanos. Este padrão seria recorrente no Egito e no mundo islâmico nos séculos seguintes até ao presente. Além do mais, os romanos continuaram a favorecer a cidade, isentando todos os cidadãos p. 129 do pagamento de impostos, pagos por todos os outros egípcios. Assim como, sob o controle dos ptolomeus, as associações de caráter grego já conferiam prestígio a Alexandria. Durante séculos, tais associações foram muito importantes para a elite. A cultura popular era provavelmente muito mais heterogênea e influenciada por correntes mais antigas do pensamento egípcio. A cidade foi organizada de acordo com um plano que dividia bairros distintos - de Alpha a Epsilon - por largas avenidas e continha excelentes exemplos de todas as instalações públicas apreciadas no mundo urbano grego, um estádio, um hipódromo (com fações de alguma forma equivalentes aos modernos adeptos de clubes desportivos), um teatro, um mercado e muitos templos. Muitos destes equipamentos eram municipais e constituíam uma fonte de receita para o estado local, que também cobrava impostos de mercado. No segundo século d.C., Alexandria foi reconstruída segundo linhas mais romanas e “a elite urbana incorporou Roma na vida ritual da cidade e transformou a paisagem urbana para [lhe] dar um aspeto mais clássico” (ALSTON, 2002, p. 247). O porto caracterizava-se por uma arquitetura grandiosa, enquanto um massivo sistema de cisternas, algumas ainda existentes, fornecia água através de um canal de água doce. Existiam assentamentos mais pequenos nos arredores, que deviam estar incumbidos de abastecer esta antiga megalópole, assim como estâncias balneares. p. 130 Escavações na pequena cidade de Oxyrhynchus, no delta, revelam que na época romana e posteriormente, existiam não menos do que noventa corporações economicamente distintas. Alexandria deve ter tido muitas mais. Este imenso mundo urbano de talvez duzentas mil pessoas continha um importante bairro de egípcios nativos, mas era uma cidade de estrangeiros, acima de todos os gregos, e também um grande número de judeus falantes do grego no bairro Delta. De facto, existem registos de expulsões de egípcios “supérfluos” para o campo. Foi em Alexandria que o Antigo Testamento foi traduzido pela primeira vez para o grego, e a cidade também foi um importante ponto de crescimento para o Cristianismo antigo, bem como para a formação do Judaísmo pós-Templo na diáspora - esta palavra grega foi aplicada pela primeira vez em Alexandria referindo-se ao exílio dos judeus. O estatuto da numerosa população judaica foi uma importante questão política. Estes foram excluídos de instituições, tais como os ginásios, ambientes que marcavam a cultura grega e dos quais emanavam clubes politicamente poderosos. O conflito violento entre judeus e gregos - que parece ter sido causado por estas reivindicações - levou à segregação dos judeus no Delta no ano 38 d.C. Foi uma característica da Alexandria romana inicial até que a grande revolta dos judeus foi reprimida em 115 d.C., depois da qual a comunidade judaica perdeu a maior parte da sua relevância política. Na verdade, Alexandria tinha um historial de violência entre fações, por vezes relacionada com questões como o preço dos alimentos, mas geralmente com uma forte tendência política. O poder grego em Alexandria acompanhou o declínio gradual e a queda da antiga cultura egípcia, que sobreviveu por mais tempo no meio rural. Durante séculos antes dos ptolomeus, o Egito tinha-se tornado cada vez mais sujeito a invasores estrangeiros oriundos da Ásia ou do Vale do Nilo no que hoje é o Sudão, localizado num nexus mediterrânico progressivamente comercializado que incorporou o vale como fonte de riqueza agrícola com trocas comerciais que se estendiam até ao interior africano. Os gregos chegaram ao Egito não apenas como comerciantes, mas também como colonos e já tinham estabelecido várias cidades no Delta do Nilo. Na verdade, eles foram-se estabelecendo em novas comunidades urbanas, ao invés daquelas que tinham sido importantes sob os faraós. Mais a leste, na Cirenaica (leste da Líbia), os gregos também se tornaram colonos em África e fundaram cidades-estado que governavam a população nativa, mas com muita tensão. A ascensão da Alexandria cosmopolita pode contrastar com um Egito rural onde uma cultura de aldeia fechada, dominada pelos sacerdotes, retinha um núcleo de práticas da civilização mais antiga. A forma que o Cristianismo Egípcio assumiria, caracterizada pelo predomínio de mosteiros e eremitas, seria construída sobre essa cultura remanescente antes do advento do Islão. O Cristianismo afetou a estrutura da vida urbana à medida que as igrejas adquiriram importância. Contudo, resultou num retorno para a forma copta do egípcio face à língua grega. Mas o apogeu de Alexandria foi a fase do cosmopolitismo cultural - a sua capacidade de difundir cultura pelo Vale do Nilo era extremamente limitada. Com a ascensão do Cairo islâmico, Alexandria entrou num declínio relativo. Embora as ligações do Mediterrâneo conservassem algum significado, o cerne da vida política e económica assentavam novamente no Vale do Nilo, e não no Mediterrâneo, e assim permaneceria até ao século XIX. Cartago tem origens que remontam um pouco mais longe. Esta grande cidade foi fundada pelos fenícios, os libaneses do mundo antigo, que articulavam comércio com assentamento e tiveram o Mediterrâneo Ocidental como o seu campo de expansão de eleição, talvez já desde 800 a.C. A cidade de Cartago, que manteve fortes laços filiais com as cidades da Fenícia - o nome era uma transliteração grega das palavras “cidade nova” - e continuou a reverenciar os seus deuses com sacrifícios humanos e de outras formas, era o centro dinâmico da sua expansão. A cidade gerou cidades- p. 131 -satélite e entrepostos comerciais desde a Tunísia moderna para oeste, em Espanha e nas ilhas do Mediterrâneo Ocidental, bem como no continente africano. A partir de Cartago, a língua púnica, bem como as formas religiosas semíticas, espalharam-se pelo ocidente do Norte de África, e ambas conservaram importância, muito depois dos romanos terem destruído Cartago em 146 a.C. Cartago também era muito grande, uma cidade que as atuais investigações estimam ter tido uma população de cem mil pessoas (talvez fosse o dobro desse número no momento da sua destruição), com uma poderosa vocação comercial e uma ampla gama de especialização económica. A génese do seu comércio consistia em produtos naturais, tais como vinho e azeite. A partir do século V a.C., começou a emitir moedas. Cartago tinha edifícios de vários andares e desenvolveu um sistema de aquedutos e tanques para abastecer água aos moradores. O seu governo era dominado por um Senado ou Conselho, mas existia uma assembleia geral muito mais representativa, assim como a contínua ameaça à governação popular pelos jogos de poder dos generais arrogantes, tal como em Roma. Da mesma forma como em Roma, a influência grega em Cartago era muito forte na decoração e na arquitetura, bem como na vida cívica. No entanto, e neste sentido comum a algumas outras culturas de língua semítica, existia um forte preconceito contra as imagens realistas na cultura cartaginesa - por isso, restaram poucos vestígios de interesse artístico. A religião de Cartago concentrava-se no poder cívico e lealdade, em contraste com o antigo contexto egípcio, segundo o qual, o culto nos templos tinha substituído qualquer outro propósito urbano. No princípio, Cartago era uma espécie de cidade-ilha, ligada a uma rede de cidades comerciais por todo o Mediterrâneo Ocidental, com uma interação relativamente pouco aprofundada com a população africana. Mas, com o passar do tempo, Cartago despertou imitações nas capitais dos governantes de língua berber mais a oeste, enquanto governava de forma direta uma população “nativa” - que falava púnico e tentava absorver elementos da sua cultura. p. 132 Após a conquista romana, uma rede tipicamente romana de cidades surgiu nesta zona de África. Por toda a parte estas cidades tinham as características de cidades imperiais - fóruns, mercados, aquedutos, templos, locais de encontro públicos, ginásios, banhos, bibliotecas, cemitérios, estádios e assim por diante, enquanto que, pelo menos as partes baixas e férteis da região, eram incorporadas num império que definia a boa ordem e a vida civilizada, como urbana. Depois do século IV, a maioria destes centros provinciais entrou em forte declínio ou desapareceu com a queda da autoridade romana. Cidades islâmicas Do ponto de vista continental, por mais impressionante que seja este novo desenvolvimento na perspectiva da construção de uma história urbana, parece-se no nosso olhar distante como uma primeira etapa, que foi seguida por uma outra, muito mais longa e abrangente, envolvendo a influência de uma nova religião - o Islão. O Islão teve amplas implicações culturais. É uma religião na qual o comércio podia florescer: fornecia uma garantia que permitia aos comerciantes chegar em segurança a zonas costeiras distantes e estabelecer vínculos de comunidade intelectual e de confiança através da fé. Também é uma religião onde a sociedade urbana é admirada e considerada como modelo de uma vida boa. Os viajantes islâmicos quase sempre enriquecem os seus relatos com uma atenta descrição de devoção e boa moral - ou de outra forma - dos moradores da cidade. Para Ibn Battuta, que visitou Kilwa no século XIV, a devoção do governante, o estado da aprendizagem, a conservação das mesquitas - foram as mais importantes características de todas a serem comentadas. Obviamente, a religião islâmica atraiu povos camponeses e nómadas, assim como moradores urbanos, mas o caminho certo para a prática Islâmica era idealmente centrado na cidade, através de um regime ordenado para o respeito dos seus preceitos. A islamização do Norte de África durante o século VII levaria ao aparecimento de tanto cidades existentes renovadas, como de cidades inteiramente novas, tais como Kairouan, na atual Tunísia, pioneira no processo de conversão da região, e, é claro, a Cidade Vitoriosa - Cairo, construída onde começa o Delta do Nilo, não muito longe do local da antiga Menfis, que agora desapareceu da história. O Cairo era um verdadeiro sucesso como cidade comercial, após a sua fundação inicial ter sido feita segundo pretextos, essencialmente, militares. Aqui, Ibn Battuta, escrevendo em 1325, só conseguia utilizar superlativos - “senhora de amplas províncias e terras férteis, ilimitada na abundância do seu povo, incomparável em lar e esplendor, ela é o cruzamento de viajantes, a permanência dos fracos e dos poderosos” (RAYMOND, 2001, p. 120). Ainda assim, André Raymond (2001) acredita que os números brutos de até 500.000 pessoas, frequentemente anunciados sobre a população do Cairo islâmico, são exagerados. Ele tem sugerido também, ao contrário da visão tradicional de declínio com o tempo, que o Cairo continuou a crescer durante o período de Mamluk e, depois, no domínio turco, atingindo um pico no final do século XVIII, de talvez 250.000 pessoas e, portanto, comparável às maiores cidades nas margens do Mediterrâneo em outros continentes (ibid, 2001). Era certamente a maior cidade africana e durante um longo p. 133 p. 134 Figura 2: Cairo: uma artéria principal na cidade antiga. Fonte: David Roberts, The Holy Land, Syria, Idumea, Arabia, Egypt and Nubia, Vol. 6 (1842). Cortesia de Biblioteca da Universidade de Cambridge. período maior do que qualquer outra na Europa da época. No entanto, com a expansão do Islão durante muitos séculos, as cidades muçulmanas desenvolveram-se também em outras partes de África, como em Harar, nos limites das montanhas da Etiópia. As cidades comerciais ao longo da costa da África Oriental eram particularmente diferentes, localizadas geralmente em ilhas por questões de segurança. A zona costeira foi incluída nas rotas de comércio internacional pela natureza favorável das monções, permitindo às embarcações à vela uma navegação relativamente fácil, durante a estação certa, entre África, Arábia, a zona costeira da Índia e mais além. Durante a época romana, senão antes, começaram a ser estabelecidas ligações com os portos do Mar Vermelho e, via Egito, com o Mediterrâneo. Todavia, as evidências arqueológicas sobre a vida urbana no litoral começam apenas na era islâmica, a partir dos séculos VIII ou IX. A inscrição mais antiga que sobreviveu, é de uma cidade desconhecida na ilha de Zanzibar, datada de 1107, embora se acredite que os vestígios islâmicos de Manda, na costa do Quénia, possam ser datados vários séculos antes. Se a vida comercial destas cidades se estabelecia inicialmente no comércio de marfim e outros produtos da vida selvagem de África, também envolveu a exportação de escravos suficientes para gerar uma revolta no século IX, no que é hoje o Iraque. Posteriormente, o comércio de ouro tornou-se mais importante. A cidade dominante nesse aspecto era Kilwa, na atual Tanzânia. A sua história escrita foi registada no século XVI. Kilwa ostentava um admirável palácio, hoje chamado de Husuni Kubwa, no qual existiu uma vida de luxo, se praticou o ensino islâmico, que conquistou viajantes, possuindo uma localização que possibilitou que a atividade artesanal (produção de tecido de algodão) se tivesse juntado economicamente ao comércio.. Foi a única cidade costeira com provas de ter cunhado a sua própria moeda, demonstrando a grande capacidade do estado em regular a atividade comercial. A Mesquita de Sexta-feira, com as suas múltiplas cúpulas, foi ampliada quatro vezes, durante os anos expansivos de Kilwa. O bom estado de conservação das suas ruínas dá-nos uma excelente oportunidade para imaginar como era nos séculos XIV e XV, a época de maior florescimento. O apogeu de Kilwa pode ser relacionado cronologicamente ao apogeu do Grande Zimbabué, que os historiadores pressupõem que controlava de alguma forma o abastecimento de ouro que chegava à costa de caravana. Neville Chittick (1977) estima a população máxima de Kilwa em mais de onze mil, pequena comparativamente com as maiores cidades no Norte da África. Kilwa tinha muitas construções em pedra com um estilo arquitetónico que Chittick descreve como único do litoral (CHITTICK, 1977). A Kilwa do século XV certamente falava suaíli, embora, sem dúvida, os seus habitantes p. 135 gostassem de mostrar a ancestralidade paterna na Arábia, na Pérsia e em outros lugares. O suaíli evoluiu como uma língua bantu influenciada pelo árabe, talvez, desde o século X, e alimentou tanto uma literatura sagrada, como secular. Foi falada ao longo da costa até Mogadíscio. Sob a superfície arabizada da cultura costeira, referências de viajantes, mais do que os achados dos arqueólogos, sugerem que as formas culturais anteriores não tinham desaparecido no século XV. Assim, em cidades muito menos ricas do que Kilwa, a construção em pau-a-pique predominava, assim como nas casas mais pobres em Kilwa. Descrições de homens com tatuagens, e outras pistas, apontam para uma heterogeneidade cultural sobre a qual as ruínas não falam. Mais a norte de Kilwa, ficam Malindi e Mombasa, e outras cidades desenvolvidas na costa do atual Quénia, onde o comércio de ouro não deve ter sido um fator de desenvolvimento. Apesar da sua riqueza, o impacto de Kilwa e outras cidades-entreposto no interior era baixo até ao surgimento de um novo tipo de comércio de caravanas de marfim, que alimentou os circuitos capitalistas internacionais no século XIX, sob a hegemonia de Zanzibar. Na África Ocidental, muito antes da época de Zanzibar, o Islão andou de mão dada com o crescimento do comércio transaariano e adquiriu raízes locais cada vez mais profundas. O resultado foi tanto a transformação, em parte por acréscimo, de cidades existentes, tais como Kano ou Djenne, que adquiriram registos gerais do modelo das cidades Islâmicas, mas sem dúvida também, características enraizadas do urbanismo pré-islâmico. p. 136 O que realmente entendemos por cidade islâmica? Temos a possibilidade de um modelo normativo implícito para um exemplo - a cidade marroquina de Fez, como ela era sob a dinastia Marinida do século XIV - na monografia clássica do académico francês, Roger le Tourneau (1961). Le Tourneau viu a medina como tendo certos traços característicos de qualquer parte do mundo muçulmano. No entanto, ele também enfatizou a distinção do particular, à “maneira de Fez” (LE TOURNEAU, 1961). Há já muitos séculos atrás, havia uma forte consciência por parte dos seus habitantes, de serem parte da cidade, nitidamente separada do campo, e da cidade ter uma cultura distinta e identificável dentro do vasto território de Marrocos. Existem, talvez, dois elementos comuns às cidades muçulmanas que têm que ser reforçados, precisamente por serem tão gerais. Em primeiro lugar, a obrigatoriedade do estado providenciar as condições adequadas para o culto, o estudo e os ritos de passagem na vida da religião muçulmana. Em Fez, isso representava a construção de mesquitas, algumas de um muito elevado padrão estético, e madraças - escolas que pudessem oferecer mais do que o ensino básico do Alcorão, para sustentarem a atividade intelectual e jurídica dentro dos confinamentos permitidos, e, também, equipamentos como cemitérios e banhos públicos. As mesquitas poderiam, certamente, ter uma relação harmoniosa com o estado, ou poderiam funcionar como voz crítica de um segmento da população urbana. Em segundo lugar, Fez teve uma vida económica complexa e importante. Embora as famílias de Fez costumassem possuir jardins fora da cidade, estes lugares não eram propriamente locais de produção agrícola. Era habitual que os alimentos fossem levados de casa para os jardins quando a família quisesse ali comer. Em vez disso, os alimentos eram comprados e parcialmente processados, coletivamente e comercialmente. A cidade de Fez teve grandes mercados e dependia de uma agricultura comercializada na zona rural circundante para se abastecer de alimentos. Como resultado da sua evolução histórica, Fez era composta por duas cidades fisicamente distintas, uma dominada pelo palácio, os militares e o estado (Fez Jdid), e a outra, a Fez antiga - a cidade do povo de Fez - ainda mais virada para a produção e o comércio. Uma infinidade de ofícios era característica em Fez, organizados em corporações que controlavam o acesso à aprendizagem, não muito diferente das práticas europeias mais antigas. Tinham um caráter tão social, quanto profissional. Ao contrário da Europa, no entanto, as corporações não se juntaram para tentar governar a cidade. Isso era considerado uma violação à boa gestão do estado, como um todo. O ofício mais comum, a tecelagem, tinha lugar em cerca de quinhentas oficinas. Parte da produção artesanal de Fez tinha grande circulação em Marrocos e, até certo ponto, mais além, e alguns dependiam de abastecimentos provenientes de outros lugares (têxteis especializados da Europa, ouro da África Ocidental). Fez não tinha um verdadeiro sistema de autogoverno, comparável aos das cidades clássicas do Mediterrâneo. No entanto, a lei da boa ordem era um dever importante do estado. Havia um governador que mantinha a ordem e controlava o policiamento, um cadi, que servia como juiz e administrador religioso, e um muhtasib, que presidia à moral da cidade - lidando com pequenas disputas, regulando pesos e medidas, e assim por diante. Num nível mais perto da base social, estavam os bairros das personalidades que mediavam as necessidades populares com os funcionários do estado. Um atributo fundamental da administração de Fez, era o excelente abastecimento de água da cidade, disponível para cozinhar, tomar banho, para fins industriais e para a eliminação de resíduos - a sua manutenção era central para o funcionamento de p. 137 toda a cidade. Pelo contrário, Le Tourneau (1961) acreditava que a remoção de outros resíduos era um problema grave que o estado não conseguia resolver. O Cairo islâmico também consistia em duas cidades distintas nos primeiros séculos: a fortaleza estabelecida pelo estado, Fustat, e a multidão comercial de al-Qahira, da qual a cidade acabou recebendo o seu nome. Fustat foi originalmente fundada em 642 como uma cidade de acampamento, após a conquista árabe do Egito, enquanto al-Qahira, fundada em 969, era a cidade comercial que surgiu nos séculos posteriores. Foi Saladino, no século XII, quem iniciou o processo de construção de uma grande muralha em volta de ambas as cidades, que cimentou a sua integração e substituiu as ideias islâmicas originais sobre a função urbana. Nessa altura, o Cairo tinha-se tornado o lugar de grandes bibliotecas, belas mesquitas, espetaculares representações cerimoniais e um repositório de artes decorativas. Além disso, embora o Egito, ao contrário de Marrocos, mantenha até hoje uma população nativa cristã, a maioria da sua população era então islamizada, o que também facilitou a integração da cidade. No Egito, os cristãos e judeus ficaram em grande medida confinados em bairros diferentes, onde os seus representantes administravam a justiça local no que dizia respeito às rixas da vida quotidiana. Grandes avenidas comerciais percorriam todo o comprimento da cidade, paralelas ao Nilo, mas isto deu lugar a travessas estreitas e ruas de bairro sinuosas, por sua vez ligadas a uma rede quase impenetrável de ruelas e becos. Estes pequenos bairros, ferozmente defendidos pelos jovens, caso se sentissem ameaçados por forasteiros, eram o coração da vida urbana. O hará, ou bairro, era frequentemente acessível apenas por um portão, que tinha um modesto local de culto e um pequeno mercado. Lojas minúsculas vendiam comida cozinhada que era frequentemente comprada, em vez de ser preparada nas habitações superlotadas. p. 138 Se as casas dos mais abastados tinham algum adorno externo nas formas de portas esculpidas, de forma geral o conforto e a riqueza concentravam-se nos pátios internos e nos corredores totalmente escondidos do público. No entanto, a densidade da vida urbana era tal que, no século XII, muitas pessoas da classe média viviam em blocos de apartamentos de até sete andares. No período de Mamluk, durante os séculos XIV e XV, existiam construções ainda mais impressionantes: enormes pousadas ou acampamentos que ocupavam quarteirões inteiros da cidade, interligados com complexos de apartamentos nos andares superiores. Cairo era impressionante pelas suas diversas e complexas instituições sociais, tais como al-Azhar, o complexo da mesquita que servia de universidade teológica internacional, ou o maristan (hospital) de Qalawun que datava a partir do século XIII. Este hospital, dividido em duas zonas diferentes por género dos pacientes, podia alimentar e manter limpos os leitos de um grande número de pessoas, e nele havia médicos cujo trabalho estava vinculado ao hospital. Diz-se que aí chegavam cerca de quatro mil pacientes por dia. A estrutura estava ligada a uma madraça e a um mausoléu que sobrevive até hoje. O Cairo não tinha bairros pobres da maneira como são considerados pelos urbanistas modernos. Era uma cidade onde a maioria dos pobres vivia de forma integrada com as famílias mais influentes, como servos e escravos. No entanto, se as evidências posteriores puderem ser extrapoladas para trás, a periferia urbana abrigava migrantes e pobres que pelo menos nos últimos tempos moravam em complexos de pátios superlotados, de propriedade privada de senhorios. Le Tourneau vê esses migrantes, também encontrados em Fez, como potenciais novos participantes da cidade, com boas possibilidades de serem integrados ao longo do tempo, nos mundos comercial e artesanal. Cidades como Fez e Cairo foram por vezes atingidas por pragas terríveis, embora nenhum desses desastres pareça ter criado devastação a ponto de impedir o crescimento das cidades por longos períodos de tempo. A água era uma questão vital para o Cairo. As fontes da cidade eram um serviço fundamental para a população. O tráfego de rodas não era permitido na cidade, onde os carregamentos de mercadorias, bem como o da água, dependiam de um suprimento intensivo que era feito por burros. Havia burros para alugar em todos os lugares, o que não é surpreendente, dado o tamanho da cidade. Talvez quinze mil burros fossem enviados, duas vezes por dia, do rio para fornecer água para a cidade. Observar o Nilómetro, que media a altura do rio mediante as oscilações sazonais, foi outra atividade importante. Tanto Fustat, quanto al-Qahira, foram construídos bem a leste do rio, que tendia a desviar os seus canais sempre mais para aquela direção, levando a grandes desafios em termos de abastecimento de água. A gestão dos resíduos sólidos foi também uma grande preocupação. Ocasionalmente eram organizadas grandes limpezas nas ruas principais, mas não havia um meio sistemático para lidar com o lixo. De noite, era suposto os donos de casa acenderem velas, para aumentar a segurança nas ruas. Na verdade, a cidade do Cairo tinha uma reputação de baixos índices de criminalidade. As ruas p. 139 dos bairros não eram frequentadas por estranhos depois de escurecer, e o hara já costumava estar fechado. O Cairo tinha a estrutura de autoridade municipal, responsável perante o estado, que se tornou progressivamente mais complexa. Ainda assim, debaixo da superfície administrativa, quem sabe porque o Islão não tinha real espaço para iniciativas municipais e autonomia, a tendência para autorregulação por parte de uma população urbana rica e diferenciada surgia em vários locais, excluindo o estado tanto quanto possível. De acordo com Stambouli e Zghal (1976), existia uma tensão generalizada nas cidades Islâmicas do Norte de África, entre o desejo de autonomia urbana e dependência no estado, que por sua vez se aproveitava da riqueza urbana o melhor que conseguia (STAMBOULI; ZGHAL, 1976). A verdadeira riqueza das cidades do Norte de África veio do comércio - o comércio transaariano de ouro antes do século XVII em alguns casos, mas de forma geral o comércio trans-mediterrânico que enriqueceu Túnis, por exemplo, e as incursões de piratas contra embarcações cristãs, em geral. Stambouli e Zghal dão mais ênfase, do que le Tourneau, no poder das corporações, bem como na importância das irmandades na união dos homens muçulmanos entre si. Os autores também reforçam a presença de pessoas pobres, geralmente de pouca importância para comerciantes, artesãos e lideranças religiosas, mas não inconsequentes (ibid, 1976). p. 140 Ao mesmo tempo, as divisões internas nas cidades eram muitas vezes profícuas. As cidades Islâmicas tinham geralmente bairros definidos segundo as etnias ou ofícios específicos, e que podem mostrar ou explorar profundas divisões culturais. Smith (1987) apontou, para as cidades do atual norte da Nigéria, que a justaposição de bairros étnicos ajudou a definir e a motivar a vida urbana (SMITH, 1987). Por volta do século XV, a sub-comunidade mais dramaticamente segregada de Fez, era a dos judeus, posteriormente removidos, aparentemente após uma história de disputas, da cidade velha para a cidade real, onde começaram a viver num gueto - mellah, e eram associados a determinados negócios, como trabalhar com metais preciosos e algumas formas de comércio. Mas os primórdios de Fez (cuja fundação foi no século IX) tinham, de facto, duas fações rivais bem distintas, uma relacionada com Kairouan, virada para leste, e a outra com Al-Andalus, em Espanha, virada para norte. As relações entre as duas fações costumavam ser tensas e podiam levar à violência. Esta divisão básica foi eliminada pela unificação no século XI; no entanto, embora largas avenidas ligassem as principais zonas de Fez, era ainda difícil progredir ao longo das estradas estreitas construídas apenas para pedestres e mulas. Os bairros permaneceram fortemente de- marcados através de subdivisões culturais importantes. Até mesmo algumas avenidas de ligação eram fechadas após o anoitecer ou em outras ocasiões. Os festivais e as lutas organizadas entre jovens eram estruturados em termos de bairros específicos, mantendo vivas as rivalidades. Essas formas sociais ecoam na cidade do Cairo, mas são igualmente as mais importantes características que o antropólogo dos EUA, Horace Miner (1953), relatou sobre Timbuktu, na região desértica do atual Mali, quando pesquisou esta cidade, na véspera da Segunda Guerra Mundial, uma época que, aparentemente, preservava muitas características antigas. Uma separação étnica tripla (mediada, obviamente, pelo domínio imperial francês) caracterizava a vida social, embora os três grupos fossem muçulmanos. O relato de Miner contém uma descrição fascinante de uma forma tradicional de futebol, onde as rivalidades entre os grupos recebiam expressão legítima, mas muitas vezes violenta. O intercasamento (ao contrário das relações sexuais com fins comerciais) entre os diferentes grupos era raro, embora um desses grupos devesse a sua formação original a uniões entre norte-africanos, soldados marroquinos e mulheres shongay da África Ocidental e assim foi definida (MINER, 1953). A evidência arqueológica da vida na cidade, no oásis saariano de Awdaghast (localizado na Mauritânia de hoje), sugere que muito cedo (por volta do século XII), o modelo madina começou a dominar no sul. No entanto, na África Ocidental, cidades como Kano, Katsina e Zaria incluíam elementos de uma vida social e urbana mais antiga, assim como influências muçulmanas anteriores, pelo menos antes da transformação posterior numa direção islâmica mais clássica, depois das guerras religiosas do início do século XIX. Estas guerras visavam exatamente eliminar os elementos pagãos da vida da comunidade, enquanto acolhia um elemento radical de oposição ao governo arbitrário, que realmente transcendia a questão da sobrevivência pagã. Um primeiro estágio de interação na África Ocidental deve ter frequentemente envolvido a construção separada de cidades muçulmanas, onde moravam especialmente muçulmanos estrangeiros, como está relatado no caso do Gana do século XI. Mais tarde, surgiram cidades mais unificadas, com alguma aderência muçulmana generalizada. Foram construídas mesquitas, como a magnífica de Djenne, feitas de terra. A aprendizagem islâmica fundou uma base e o estado aceitou muitas formas muçulmanas, mas, por dentro das muralhas da cidade (e em muito maior escala, fora delas), outras formas e estruturas de crenças mais antigas permaneceram fortes, até 1800. Quando, no final do século XVII, Kano foi ameaçada de devastação pelo poder de Kwararafa, um estado não muçulmano mais a sul, os defensores fizeram votos a p. 141 “Chibiri e Bundun”, espíritos da antiguidade (ADELEYE apud AJAYI; CROWDER, 1972, p. 511). O Dirki, um Alcorão usado como objeto relacionado ao sacrifício de animais, continuou a ser um objeto sagrado por muito tempo, para os kanawa. Katsina, uma cidade muito mais perto do Saara, era, por contraste, o centro movimentado dos bairros muçulmanos de todo o Sudão central e além - tuaregues, árabes e assim por diante. Como Timbuktu, Katsina era orgulhosamente ortodoxa. A tributação dos mercados, às vezes ao ponto de gerar amargo ressentimento, era uma importante fonte de riqueza real. Quando Hugh Clapperton visitou Kano em 1826, pôde registar a presença de um grande mercado que funcionava sete dias por semana, no qual os feirantes pagavam receitas “reguladas com a maior justiça” a um administrador (HODGKIN, 1975, p. 287). Haviam grandes quantidades de alimentos, incluindo cereais, grãos e carne, mas o costume do cultivo dentro das muralhas continuou a ser essencial. O século XIX certamente viria a testemunhar outra fase, mais ampla e profunda, do quão o Islão agregou à cultura urbana da África Ocidental. Nos lugares onde as cidades africanas foram profundamente influenciadas pelo Islão, estas características parecem ocorrer repetidamente: divisões étnicas internas e outras divisões que definiam bairros específicos que tinham a capacidade de juntar à arte estatal, uma ética cultural urbana distinta, uma economia genuinamente urbana que podia ser separada do estado (exceto nos casos em que o próprio estado se apoiava de forma tão transparente na actividade comercial, como nas cidades do litoral da África Oriental, outro elemento precisa de ser acrescentado - o Palácio de Husuni Kubwa, em Kilwa, que era ostensivamente contíguo às instalações comerciais e espaços de armazenamento), e a marca arquitectónica do Islão, embora, com muitas variações ao longo do tempo e do espaço. p. 142 Nas partes anteriores deste artigo examinámos o crescimento das aglomerações urbanas em muitas regiões, na maioria dos casos muito gradual, ou reversível, onde o surgimento de grandes assentamentos continha tanto elementos urbanos, como não-urbanos, nos quais a divisão entre cidade e campo não funcionava como é convencionalmente imaginado por sociólogos urbanos. Esta parte do texto, trouxe, assim, para primeiro plano, um novo elemento - a distinta separação da cidade e do campo, como uma esfera urbana autónoma sem precedentes, de tal forma, que representa uma evolução, ou inovação, de importância fundamental na história urbana africana. Leituras selecionadas: Muito do material neste artigo provém de relatos fragmentados em histórias mais amplas. Há, no entanto, excelentes capítulos relevantes em David Anderson & Richard Rathbone, orgs., Africa’s Urban Past (Oxford & Portsmouth, NH: James Currey & Heinemann, 2000) incluindo McIntosh sobre a Nigéria Central, Thornton sobre Mbanza Kongo, e Phillipson sobre Akum. O livro de Catherine Coquery-Vidrovitch, Histoire des villes d A ́ frique noire dès origines à la colonisation (Paris: Albin Michel, 1993) é muito rico em ideias. Um estudo anterior a consultar é o de Richard Hull, African Cities and Town Before the European Conquest (Nova Iorque: W. W. Norton, 1976). Sobre o Grande Zimbabué e o seu contexto, ver D. N. Beach, Zimbabwe Before 1900 (Gweru: Mambo Press, 1984); P. S. Garlake, Life at Great Zimbabwe (Gweru: Mambo Press, 1984); Martin Hall, The Changing Past: Farmers, Kings and Traders in Southern Africa 2001860 (Cape Town & Johannesburg: David Philip, 1987), e Thomas Huffman, Snakes and Crocodiles: Power and Symbolism in Ancient Zimbabwe (Joanesburgo: Witwatersrand University Press, 1996). Sobre as agro-cidades do Botswana, devo muito a Neil Parsons, “Settlement in East-Central Botswana c. 1820-1900” em R. Renee Hitchcock & Mary Smith, orgs., Settlement in Botswana: the historical development of a human landscape (Marshalltown: Heinemann, 1982). O urbanismo Yoruba é tratado num artigo clássico de William Bascom, “Urbanization among the Yoruba”, Africa, XL, 1955. Trabalhos posteriores incluem o rico material de Peter Lloyd, A. L. Mabogunje, & B. Awe, The City of Ibadan (Cambridge: Cambridge University Press, 1967), Robert Smith, Kingdoms of the Yoruba (Londres: Methuen, 1969); Robin Law, “Towards a History of Urbanization in Pre-Colonial Yorubaland’’ em Christopher Fyfe, org., African Historical Demography (Edimburgo: University of Edinburgh Centre for African Studies, 1971); J. D. Y. Peel, Ijeshas and Nigerians: the incorporation of a Yoruba Kingdom, 1890s-1970s (Cambridge: Cambridge University Press, 1983), e Ruth Watson, ‘Civil Disorder is the Disease of Ibadan’: chieftaincy and civic culture in a Yoruba city (London, Ibadan, & Athens, OH: James Currey, Heinemann & Ohio University Press, 2003). Compare com as incríveis descrições da vida urbana em Asante no livro de Ivor Wilks: Asante in the Nineteenth Century: the structure and evolution of a political order (Cambridge: Cambridge University Press, 1975). Sobre a Etiópia, o artigo de Ronald Horwath “The Wandering Capitals of Ethiopia,” Journal of African History, X(2), 1969, 205-20 por ser atualizado com o texto de Donald Crummey, Land and Society in the Christian Kingdom of Ethiopia from the Thirteenth to the Twentieth Centuries (Oxford: James Currey, 2000). p. 143 As minhas fontes sobre o antigo Egito incluem Guillemette Ardreu, Egypt in the Era of the Pyramids (Londres: John Murray, 1997); Barry Kemp, Ancient Egypt: Anatomy of a Civilization (Londres & Nova Iorque: Routledge: 1989), Elizabeth Riefstahl, Thebes in the Time of Amenhotep III (Norman: University of Oklahoma Press, 1964); John Romer, Ancient Lives: The Story of the Pharaoh’s Tombmakers (Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1984), e Dorothy Thompson, Memphis under the Ptolomies (Princeton: Princeton University Press, 1988). Relativamente à era de Cartago e Alexandria, recorri, para Cartago, a Gilbert e Colette Charles-Picard, Daily Life in Carthage at the time of Hannibal (Londres: George Allen & Unwin, 1961), e Serge Lancel, Carthage (Paris: Fayard, 1992) e sobre Alexandria, os esplêndidos livros de Richard Alston The City in Roman and Byzantine Egypt (Nova Iorque & Londres: Routledge, 2002), Michel Chauveau, Egypt in the Age of Cleopatra (Ithaca: Cornell University Press, 2000), Jean-Yves Empereur, Alexandria, Past, Present and Future (Londres: Thames & Hudson, 2002), P.M. Fraser, Ptolemaic Alexandria (Oxford: Clarendon Press, 1972), e Richard Todd, Popular Violence and Internal Security in Hellenistic Alexandria (Berkeley: University of California Press, 1963). Os textos de R. C. C. Law “North Africa in the Period of Phoenecian and Greek Colonization c.800 to 323 BC” e “North Africa in the Hellenistic and Roman Periods 323 BC to AD 305” (ambos em J. D. Fage, org., Cambridge History of Africa, II [Cambridge: Cambridge University Press, 1978] p. 107-47 e p. 148-209, respetivamente) abrangem ambas as cidades em discussões resumidas e são provavelmente mais acessíveis para leitores africanos e africanistas, do que as referências classicistas. p. 144 Sobre cidades islâmicas na África Mediterrânica, uma declaração clássica escrita em inglês, pode ser encontrada em F. Stambouli & A. Zgal, “Urban life in Pre-Colonial North Africa,” British Journal of Sociology, XXVIII, 1976, 1-20. O livro de Roger le Tourneau, Fez in the Age of the Marinides (Norman: University of Oklahoma Press, 1961) tem sido extensamente utilizado. Ver também Mohamed Chérif, Ceuta aux époques almodhade et mérinide (Paris: L’Harmattan, 1996) para uma cidade marroquina mais pequena. Existem alguns livros notáveis sobre o Cairo antigo, tais como: Wladyslaw Kubiak, al Fustat: its Foundation and Early Urban Development (Varsóvia: Warsaw University Press, 1982), Max Rodenbeck, Cairo: the City Victorious (Londres: Picador, 1998), Gaston Wiet, Cairo: City of Art and Commerce (Norman: University of Oklahoma Press, 1964), Janet Abu Lughod, Cairo: One Thousand Years of the City Victorious (Princeton: Princeton University Press, 1971), e, acima de tudo, André Raymond, Cairo: City of History (Cambridge, MA: Harvard University Press & Cairo: American University in Cairo Press, 2001). Sobre a costa da África Oriental, as fontes comuns devem incluir Neville Chittick, “The East Coast, Madagascar and the Indian Ocean” em Roland Oliver, org., Cambridge History of East Africa, III (Cambridge: Cambridge University Press, 1977), p. 183-231, e John Sutton, A Thousand Years of East Africa (Nairobi: British Institute in Eastern Africa, 1990). Relativamente ao Sahel, o equivalente pode ser encontrado em H. J. Fisher, “The Eastern Maghrib and the Central Sudan”, em Oliver, como acima, p. 232-330, e Nehemiah Levtzion, “The Early States of West Africa,” I (Londres & Nova Iorque: Longmans & Columbia University Press, 1972), p. 120-57. Para uma perspectiva antropológica muito mais tardia, ver Horace Miner, The Primitive City of Timbuctoo (Nova Iorque: Doubleday, 1953) porque é muito interessante. Ver também E. Ann McDougall, “The View from Awdaghast: War, Trade and Social Change in the Sahara from the Eighth to the Sixteenth Centuries” Journal of African History, XXVI, (1985). Para a Savana Central, ver H. F. C. Smith, “The Early States of the Central Sudan” em Ajayi & Crowder, como acima, p. 158-201, e [como Abdullahi Smith] “Some Considerations Relating to the Formation of States in Hausaland” em A Little New Light: Selected Historical Writings (Zaria: Abdullahi Smith Centre for Historical Research, 1987), p. 59-79. 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Notas 1 Nota dos editores: A versão original deste artigo foi publicada em 2007 com o título Urban life emerges in Africa no livro The African City: A History, da autoria de Bill Freund e publicado pela Cambridge University Press. Os diz de publicação e reprodução são propriedade da Cambridge University Press. Agradecemos a Robert Morrell, representante literário de Bill Freund, que intermediou e financiou a autorização da editora Cambridge University Press para tradução deste capítulo para Português. Este artigo foi traduzido para o português de Portugal. Os editores decidiram acolher neste dossiê as múltiplas grafias da língua portuguesa, conforme é escrita em cada um dos países lusófonos. p. 146 2 Resolução ceb nº 3, de 10 de novembro de 1999. Disponível em: http://portal.mec.gov. br/cne/arquivos/pdf/CEB0399.pdf. Acesso em 3 mar. 2022. p. 147 Cidades africanas em 6000 anos de africanos construindo cidades: rupturas conceituais e paradigmáticas Henrique Cunha Junior PPG-AU/UFBA Cidades africanas em 6000 anos de africanos construindo cidades: rupturas conceituais e paradigmáticas Resumo As disciplinas sobre cidades no ocidente determinaram um conjunto de elementos formais, temporais e conceituais que embora utilizados como parte da história universal, não são adequados para o estudo das cidades e do urbanismo africano. Partindo do pressuposto da inadequação dos referenciais ocidentais foi desenvolvida uma pesquisa para produção de uma formulação do urbanismo e da compreensão das cidades africanas num período de 6000 anos, vinculadas aos princípios societários africanos, tendo como base a filosofia e a religiosidade das sociedades africanas. O postulado de partida é a existência dos princípios societários e não o questionamento sobre a sua formulação. Do resultado da pesquisa foi produzida a proposta de disciplina sobre a formação das cidades africanas e do seu urbanismo apresentando uma exposição conceitual sobre as mesmas. Tal disciplina percorreu uma fase de consolidação e aprovação que culminou com a sua apresentação formal no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia. Neste artigo são apresentados o conjunto de elementos conceituais da supracitada disciplina e os fatos relativos à validação científica deste campo do conhecimento referente ao panafricanismo, destacando que a formulação produzida é autônoma com relação ao afrocentrismo e ao eurocentrismo. Portanto, não faz parte de nenhuma dessas duas grandes correntes do pensamento e sim propõe uma via alternativa. Palavras-chaves: cidades africanas, urbanismo africano, ensino de arquitetura e urbanismo, metodologia do estudo de cidades africanas. Ciudades africanas en 6000 años de africanos construyendo ciudades: rupturas conceptuales y paradigmáticas Resumen Las disciplinas sobre las ciudades en Occidente determinaron un conjunto de elementos formales, temporales y conceptuales que, aunque utilizados como parte de la historia universal, no son adecuados para el estudio de las ciudades africanas y el urbanismo. Suponiendo la insuficiencia de las referencias occidentales, se desarrolló una investigación para producir una formulación del urbanismo y la comprensión de las ciudades africanas durante un período de 6000 años, vinculado a los principios sociales africanos, basado en la filosofía y religiosidad de las sociedades africanas. El postulado de partida es la existencia de principios sociales y no el cuestionamiento sobre su formulación. A partir del resultado de la investigación se elaboró una propuesta de disciplina sobre la formación de las ciudades africanas y su urbanismo, presentando una exposición conceptual sobre las mismas. Esta disciplina pasó por una fase de consolidación y aprobación que culminó con su presentación formal en el Programa de Posgrado en Arquitectura y Urbanismo de la Universidad Federal de Bahía. En este artículo se presenta el conjunto de elementos conceptuales de la referida disciplina y los hechos relacionados con la validación científica de este campo del conocimiento sobre el panafricanismo, destacando que la formulación producida es autónoma en relación al afrocentrismo y eurocentrismo. Por tanto, no forma parte de ninguna de estas dos grandes corrientes de pensamiento, sino que propone un camino alternativo. Palabras clave: ciudades africanas, urbanismo africano, enseñar arquitectura y urbanismo, metodología para el estudio de ciudades africanas. African cities in 6000 years of africans building cities: conceptual and paradigmatic breaches Abtract The disciplines about cities in the West have determined a set of formal, temporal and conceptual elements that, although used as part of universal history, are not suitable for the study of African cities and urbanism. Based on the assumption of inadequacy of Western references, a research was developed to produce a formulation of urbanism and an understanding of African cities over a period of 6000 years, linked to African societal principles, based on the philosophy and religiosity of African societies. The starting postulate is the existence of corporate principles and not the questioning of their formulation. From the result of the research, the proposal for a discipline on the formation of African cities and their urbanism was produced, presenting a conceptual exposition about them. This discipline went through a phase of consolidation and approval that culminated with its formal presentation in the postgraduate program in architecture and urbanism at the Federal University of Bahia. In this article, the set of conceptual elements of the aforementioned discipline and the facts related to the scientific validation of this field of knowledge regarding pan-Africanism are presented. Highlighting that the formulation produced is autonomous with respect to Afrocentrism and Eurocentrism. Therefore, it is not part of any of these two great currents of thought, but rather, it proposes an alternative way. Keywords: African cities; African urbanism; teaching architecture and urbanism; methodology for the study of African cities. A água e fogo andam juntos, constituem duas fontes inigualáveis de transformação da vida humana. O fogo é uma poderosa fonte de transformação para a vida humana. Da energia dele produzimos a nossa alimentação. Da mesma energia dele produzimos os instrumentos que melhoram as nossas vidas cotidianas. No entanto a mesma fonte de transformação pode ser destruidora se não controlada e utilizada sem critérios. Assim também são os conhecimentos científicos. CUNHA JUNIOR, 1992. Sobre o que tratamos no artigo este artigo tratamos da consolidação de uma abordagem africana sobre as histórias das cidades africanas e do urbanismo africano. Este enfoque é pretendido como grande mudança de eixo conceitual e de metodologia com relação às abordagens tradicionais eurocêntricas dos cursos de arquitetura e urbanismo sobre a história das cidades. Trata-se de uma abordagem consolidada desde 2018 e que estamos apresentando-a em disciplinas de pós-graduação, graduação e de formação continuada sobre urbanismo africano com o enfoque de 6000 anos de contínua construção de cidades africanas. A abordagem da disciplina sobre urbanismo africano e cidades africanas é resultante de um longo percurso de pesquisa realizado entre 2005 e 2015. N n. 1 p. 148-173 2022 A primeira apresentação dos resultados do longo percurso de pesquisa foi a realização da conferência de abertura do Seminário Salvador e Suas Cores, em 2017 (CUNHA JUNIOR, 2017). Seguiu-se a apresentação como disciplina de pós-graduação no programa do Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social (NIDES) na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a produção de um capítulo do livro sobre “Tecnologias para o desenvolvimento social: Diálogos do Nides – UFRJ” (CUNHA JUNIOR, 2018). Também foram realizadas duas formações em programas de arquitetura e urbanismo, que ocorreram como disciplina isolada no curso da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), em Laguna – Santa Catarina (2019), e no curso da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos – São Paulo (2019). Em 2020 a disciplina passou a ser oferecida como disciplina regular dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA) (CUNHA JUNIOR, 2020), então não mais como disciplina isolada e sim como parte da consolidação de um campo disciplinar específico sobre cidades africanas e cidades brasileiras de populações negras e culturas de base africana. Isto ocorreu dentro de um programa de pesquisa e estudos do Grupo EtniCidades, liderado pelo professor Fábio Velame. É necessária a demarcação do percurso histórico da disciplina e dos programas de pós-graduação visto que constituem partes de uma ruptura no campo dos enfoques científicos tradicionais. No Brasil e na maioria das universidades do mundo ocidental de forma hegemônica, os programas de graduação e pós-graduação em arquitetura e urbanismo e os de geografia urbana apresentam a história do urbanismo a partir de autores como o geógrafo inglês David Harvey (1980; 1993; 2005) e do filósofo francês Henry Lefebvre (1970) e a história das cidades por Leonardo Benevolo (2009), Aldo Rossi (1985), Italo Calvino (1994), Ebenezer Howard, (1946), Kevin Lynch (1982) e Jacques Le Goff (2000), ou seja, uma visão eurocêntrica e fortemente relacionada apenas com o urbanismo de parte da Europa e América do Norte. Nem o urbanismo e as cidades do norte europeu e da Rússia são tratados nas abordagens realizadas nas universidades do ocidente. Este artigo apresenta as razões da ruptura conceitual e metodológica realizada, como o referencial conceitual elaborado e a organização empregada na disciplina. Explica que concorreram para a transformação realizada a formação panafricanista do autor, a sedimentação da filosofia africana, a edição da História Geral da África e as crises da hegemonia econômica e cultural da Europa. Portanto, “Cidades africanas em 6000 anos de africanos construindo cidades: rupturas conceituais e paradigmáticas” é a apresentação da consolidação de uma disciplina com enfoque na complexidade sistêmica, dentro da perspectiva africana do termo, abordando o continente africano como um todo em 6000 anos de continuidade histórica, tendo como eixo conceitual organizador o conceito de africanidade de p. 153 Cheikh A. Diop (1955) e os mercados africanos como fonte da produção das cidades no continente africano. O pensamento filosófico de Theophilo Obenga é pano de fundo de todo o trabalho devido ao sentimento de pertencimento a uma unidade histórica por ele desenvolvido (OBENGA, 1990, 1985). Começando pelas dificuldades conceituais do tema das cidades e do urbanismo O modelo conceitual para produção da histórica das cidades e urbanismo africano posto em prática é de certa originalidade com relação aos modelos anteriores criados a partir da história africana. Lembramos que os modelos científicos são apenas interpretações da realidade baseadas num leque coerente e integrado de conceitos e produz uma abstração da realidade. O confronto da realidade com o modelo é que diz da qualidade e da importância do modelo. Os modelos científicos são, portanto, no nosso entendimento, uma simplificação da realidade através de um modelo de racionalidade interpretativo. O modelo elaborado para o estudo das cidades e do urbanismo africano numa perspectiva de 6000 anos apresenta como eixos conceituais a africanidade e os mercados africanos. A africanidade pensada como o conceito guia para uma integralidade territorial e para uma base comum dos diversos povos e nações africanas, do passado e do presente. Os mercados são importantes em razão de que na arqueologia das diversas sociedades africanas sempre encontramos os mercados como parte da gênesis das vilas e cidades em todo o continente na antiguidade, no passado e na contemporaneidade. p. 154 O modelo científico posto em prática é o modelo de ciência empírica: parte da observação para a produção de conceitos e produz a síntese que permite a interpretação parcial da realidade. Não existe uma pretensão da explicação de toda a realidade e nem de todas as realidades africanas, é um modelo de ciência distante da universalidade científica cartesiana e da ciência como explicação da totalidade. Foi a produção de um modelo de ciência empírica em oposição à ciência teórica cartesiana, entendendo que o modelo cartesiano é fundamentado na lógica formal de apenas dois conjuntos exclusivos, sem nenhuma intersecção entre eles e especializada para uma única disciplina, isolada das demais. Pensando que a racionalidade científica ocidental não abarca todas as racionalidades, prevê um modelo de acesso ao conhecimento partindo apenas e exclusivamente da racionalidade teórica para a prática como aplicação. Estabelece o modelo de ciência iniciando o trabalho de investigação sempre da teoria para a prática. No nosso modelo de abstração, produzido para produção da história das cidades e do urbanismo africano, o conhecimento recebeu um enfoque particular empírico e pragmático, sendo que o conhecimento no modelo elaborado por nós é definido como tudo que produz explicação útil da realidade. São, assim, indiferentes as noções de conhecimentos científicos ou não científicos. Entretanto, tendo como referência que na história do ocidente grandes inovações como a máquina a vapor, a eletricidade, o eletromagnetismo e a aviação são invenções produzidas por pessoas sem formação acadêmica, portanto não se tratam de resultados de teorias científicas e das aplicações práticas deles. São resultados empíricos importantes que fugiram à lógica da ciência cartesiana. Na produção da história das cidades africanas e do urbanismo africano, tendo como ponto de partida o conceito de africanidade (DIOP, 1955), podemos remeter a um conjunto de críticas e usos do conceito (AMSELLE, 1990), (FAUVELLE, 1998), (FOUÉRÉ, 2006) dos quais não estamos alheios e procuramos evitá-los. Cheikh A. Diop (1955) em seus estudos apenas demonstrou que várias sociedades africanas possuem ligações históricas e ontológicas com as civilizações do rio Nilo. Deste fato das relações históricas existentes ocorreu a dedução que as sociedades africanas possuem um gênesis na matriz cultural da antiguidade civilizatória das sociedades do rio Nilo, aqui tomando Egito, Núbia e Etiópia como referência territorial e geográfica. A “Matriz de Gênesis”, que já implicava numa diversidade de relações comerciais com a Ásia, pensando na história arqueológica do Egito pré-dinástico, é processada ao longo dos tempos históricos e dos espaços geográficos africanos, produzindo a diversidade de culturas, povos e sociedades, isto é, a unidade na diversidade como forma explicativa das continuidades e descontinuidades históricas. Não estamos tomando a africanidade como conceito explicativo da tradição cultural e nem da identidade cultural do continente africano. Também estamos distantes das ideias do afrocentrimo (FAUVELLE, 1998). Negamos o afrocentrismo e consideramos a produção dos territórios africanos como consequência de intercâmbios comerciais com os continentes asiático e europeu (BERNAL, 1987). A proposição da formação das vilas e cidades com base nas relações de trocas comerciais implica no reconhecimento das mudanças tecnológicas endógenas e exógenas ao continente africano e o acompanhamento das rotas da tecnologia. Tecnologias tais como a das criações de gado caprino, bovino e de camelos e as utilizações destes como produtores de leite e de carne e demais derivados; do emprego da força motriz animal; ou das tecnologias dos óleos da mamona e do dendê; ou ainda das p. 155 tecnologias do ferro e do aço. Estas tecnologias produzem intercâmbios comerciais variados e impactam mesmo as construções das filosofias africanas e da cosmologia das religiões africanas (CUNHA JUNIOR, 2010; 2015). Portanto, é significativo afirmar a nossa constante oposição tanto ao afrocentrismo como ao eurocentrismo sem, contudo, produzir um estudo no caminho do Orientalismo de Edward W. Said (1980). Na empreitada de pensar e produzir uma abordagem de base africana da história das cidades e do urbanismo africano, em um continuum de 6000 anos, a História Geral da África exerce um papel fundamental de ruptura de tudo que precedeu na produção histórica. Servindo de bússola, permitiu uma navegação original e específica sobre alguns dos aspectos específicos da história do continente africano, a arquitetura, o urbanismo e as produções tecnológicas e econômicas. A produção da História Geral da África é revolucionária na perspectiva da produção da imagem consensual sobre as transformações ocorridas nos territórios africanos desde a pré-história até a história atual. A condição de bússola é inseparável do que foi produzido, visto que não importa onde estejamos pesquisando, seja no terreno tecnológico, seja na área do comércio e das economias de escala, seja na área da política e da constituição dos estados africanos, ela sempre norteia o sentido da produção do pensado. Sendo que a noção explícita é nortear, devido ao fato do polo magnético da terra ser o polo norte, toda referência geográfica de navegação implica neste conhecimento. Lembramos que não foi construído nenhum aparelho de orientação que aponte o pólo norte e que mesmo no passado da história islâmica, com o mapa mundi produzido de forma invertida aos atuais, o norte das orientações da bússola foram mantidas (DEVEAUX, 2019). No mesmo sentido da importância da História Geral da África, consideramos a filosofia africana e as religiões africanas como norteadores dos trabalhos. As sociedades africanas são de profunda religiosidade e imprimem a religiosidade na produção dos espaços urbanos, na concepção das cidades (CUNHA JUNIOR, 2020, 2020-1), considerando o cristianismo copta-etíope e o islamismo como religiões desenvolvidas no continente africano. Como síntese deste tópico sobre os conceitos temos que a proposição realizada sobre a história das cidades e do urbanismo africano é assentada no conceito de africanidade e na história dos mercados africanos, sendo subsidiada pela História Geral da África, pela história das tecnologias africanas e pelas filosofias e religiões africanas. p. 156 Superando o eurocentrismo e o brancocentrismo brasileiro Embora a construção conceitual realizada para a disciplina da história das cidades africanas não seja a produção de uma oposição ao eurocentrismo, exigiu posicionamentos epistemológicos com relação às linhas dominantes do pensamento intelectual brasileiro. Isto devido a ser persistente o exercício da hegemonia do eurocentrismo e do brancocetrismo brasileiro que reproduzem uma constante eliminação da diversidade de correntes de pensamento e as constantes oposições à difusão do conhecimento africano. Embora a solicitação pela implantação das disciplinas sobre historia africana e dos afrodescendentes seja uma demanda histórica dos movimentos negros, a efetivação desta encontrou forte oposição nas universidades brasileiras, da mesma forma que demais proposições de disciplinas relacionadas com estas temáticas. O brancocentrismo brasileiro é uma posição ideológica que tem como eixo a discussão da mestiçagem na versão do denominado clássico sobre a cultura e pensamento brasileiro que é o livro Casa Grande e Senzala (MUNANGA, 1999; CUNHA JUNIOR, 2013). A consolidação e a difusão da ideologia da mestiçagem nascem num período de culto ao racismo científico antinegro e à eugenia. Ambos são processos de pensamento que produzem a invisibilidade ou negação das culturas africanas e das contribuições africanas na produção da história do Brasil. São ainda parte de um pensamento retrógrado e racista que considera o continente africano culturalmente atrasado em relação ao europeu. Como o continente africano é a origem das culturas negras, estas também são tratadas como atrasadas e sem importância para a civilização brasileira. A manutenção dessa premissa da inferioridade cultural é um dos eixos do brancocentrismo brasileiro e, portanto, a base de formulação de negação da propriedade de uma disciplina sobre a arquitetura e o urbanismo africano. O brancocentrismo brasileiro se completa com o eurocentrismo perfazendo uma dupla oposição ideológica em relação à africanidade. São importantes na discussão do eurocentrismo e das oposições que este produziu à africanidade os livros de Martin Bernal (1987) e de Walter Rodney (1974). Martin Bernal é relevante por caracterizar a cultura ocidental como uma farsa ideológica e Walter Rodney por postular como o europeu subdesenvolveu a África e explicar o fosso tecnológico que se estabeleceu entre a produção africana e a europeia. p. 157 A especificidade da história africana foi utilizada como contraponto à história universal. Humanismo e socialismo científicos trabalham com a formulação da universalidade do pensamento. A universalidade implica em abarcar a história do mundo, mas que não é realmente uma história com essa amplitude, sendo apenas a história europeia, que, pensada como da humanidade, apenas reproduz os processos de dominação do eurocentrismo. Formam um conjunto ideológico eurocêntrico que tem como base a filosofia grega, sem uma crítica sobre a existência da filosofia grega e de como ela é apresentada, como sendo a filosofia desconsiderando as demais filosofias. A filosofia grega, na realidade, é um desenvolvimento da filosofia do Egito (BERNAL, 1987). Consideramos a universalidade da filosofia grega e a forma como ela é difundida como uma ideologia organizada para iludir os leitores incautos da atualidade. A história da suposta magna Grécia é obscura e mistura dentro dos manuais difundidos no ocidente a história da Macedônia à da Turquia (antes denominada Jônia, de filósofos Jônicos) e à da Grécia, como se tudo tivesse sido grego. Incluem parte da história do Egito, na cidade de Alexandria, como se fizesse parte da Grécia. Fazem uma confusão proposital em pensar que houve uma colonização grega no Egito, que o período ptolomaico do Egito foi de uma colônia grega. Entretanto, o Egito nunca foi colônia grega. Para verificação dos fatos históricos basta procurar quando é que os gregos invadiram o Egito e não vão encontrar. Vão encontrar que Alexandre Magno, que é da Macedônia e não Grécia, invadiu o Egito, derrotando os persas, que tinham dominado o Egito. Enfim não houve colonização grega, pode ter havido colonização dos macedônios e com eles vieram às influências gregas, pois eram povos vizinhos e os macedônios dominaram a Grécia (CLIMACO, 2013). p. 158 Pensadores e intelectuais muito preparados muitas vezes são ingênuos sobre a amplitude do fenômeno humano e pensam que uma só teoria, um só modelo teórico e as referências sociais vindas dele podem compreender e espelhar todo mundo, toda a humanidade, em todas as épocas e em todos os territórios habitados pelos seres humanos. A unificação das áreas científicas em torno de uma teoria é um dos problemas da física. A física toda conhecida não cabe em uma só teoria. O mesmo acontece para as diversas disciplinas do conhecimento humano e suponho que também para as disciplinas das denominadas ciências humanas. Penso que a unificação do pensamento humano em torno de uma ciência é impossível, pois representa a unificação das bases filosóficas, das histórias e dos valores humanos, das nossas particularidades e especificidades. Decorrente desta visão é que trabalhamos com o pressuposto da especificidade das histórias das populações em todos os continentes. Reconhecemos que a questão do tratamento das especificidades históricas incorrem em dois problemas: a eliminação do determinismo histórico e a possibilidade da construção de uma etnização da história ou da exacerbação das identidades. A produção de alguns conceitos assessores Os conceitos de ruralidade e urbanidade definem quando os assentamentos populacionais africanos tornaram-se vilas e cidades. As populações africanas, mesmo rurais, se organizavam em agrupamentos populacionais com poucas atividades de trabalhos artesanais e de processamento dos produtos. Assim, estes agrupamentos foram inicialmente de características rurais. No desenvolvimento histórico da comunidade rural passaram a existir atividades de comércio e a ruralidade concorre com a urbanidade, com atividades de trabalho desligadas da agricultura, pesca e criação de animais. Dessa forma, as origens das cidades africanas diferem em parte das origens das cidades asiáticas, americanas e europeias. Utilizamos da filosofia Bantu para a inserção dos conceitos de complexidade sistêmica na base de conhecimentos sobre as cidades (CUNHA JUNIOR, 2010). A filosofia Bantu foi explicada pela análise das línguas Bantus, faladas nas regiões centrais e do sul do continente africano. Nelas tudo que existe tem uma parcela da energia denominada como Ntu e nas suas diversas formas estão em constante interação, sendo que as línguas apresentam quatro grandes categorias de elementos e duas categorias de transformação desses (CUNHA JUNIOR, 2010). As quatro categorias podem ser explicadas a partir do NTU. NTU é a força do universo, que sempre ocorre ligada à sua manifestação em alguma coisa existente no campo material ou do simbólico ou do espiritual, nomeados nas formas de muntu, kintu, hantu e kuntu. Muntu é referente aos seres humanos e à cultura desenvolvida pela humanidade - os seres que possuem fala, sendo que os tambores também falam a fala dos ancestrais. Kintu são os seres não dotados de fala. KUNTU é uma modalidade que abriga qualidades subjetivas e modificadoras de outras qualidades. A inteligência é uma propriedade classificada como Kuntu. A inteligência é um atributo humano que compõe outro conceito complexo que é vida da inteligência. HANTU é a categoria classificatória de lugares. Temos que no pensamento africano um lugar é definido com relação a um tempo. A categoria espaço - tempo forma um binômio produzido pela classificação em Hantu. As palavras ligadas aos pontos cardeais, aos espaços geográficos ou às descrições do tipo mapas estão presentes nesta categoria como também ontem, hoje p. 159 e amanhã. Manhã, tarde, entardecer, noite e amanhecer. Hantu é a qualidade de energia da localização espacial, temporal e do movimento de mudanças.O NTU, embora não exista por si próprio, transforma tudo que existe com elementos tendo uma mesma natureza em comum. Tudo tem o seu NTU. O NTU não expressa a força da natureza em si, mas a sua existência. Importante que Deus é a única categoria à parte que não tem necessidade de se expressar pelo NTU.O Deus é único é não é um NTU, mas os ancestrais e Inquices são parte de um dado NTU. O NTU é uma expressão de energia. Tudo é composto da combinação ou de transformações da energia em qualidades diversas. Cada categoria tem um NTU em determinada qualidade ou modalidades. Produzimos para os mercados e as cidades também categorias semelhantes e procuramos entender suas interações na produção das cidades. Os sujeitos pertencentes ao sistema cidade que são colocados em análise são interpretados, nas nossas abstrações de sujeitos pesquisadores, pelas categorias: as populações presentes numa região; os produtos e sua importância temporal; as tecnologias de transformação; as distâncias das redes do mercado; e as organizações de transporte. Para a aquisição dos conhecimentos foi muito importante o estudo das tecnologias, as análises arqueológicas, as reconstruções em 3D das cidades, modos de vida e o cinema-documentário - com as séries históricas como as das BBC de Londres dirigidas pelo professor Ali Mazrui (1986). p. 160 Para abordar os sistemas dentro da teoria do caos se impôs a necessidade de elaborar modelos que romperam com a fórmula cartesiana de dois conjuntos e foram formalizados princípios da complexidade sistêmica nas ciências ocidentais (PRIGOGINE, 1996). No entanto dentro dos nossos estudos vimos que os mesmos princípios da complexidade sistêmica já estavam nas filosofias africanas e que eles aparecem nas artes, sendo que livro de Mbog Bassong, “Esthetica da L’art Africain: Symbolique et Complexité” (Estética da Arte Africana: Simbolismo e complexidade) (BASSONG, 2007), faz uma excelente introdução a essa temática. Da mesma forma a complexidade também faz parte das religiões de matriz africana na qualidade de herdeiras dos conhecimentos das civilizações do Rio Nilo, a exemplo da religião iniciática sobre os Inquices, conhecida como Candomblé Bantu ou Candomblé de Caboclo, que revela uma compreensão da dinâmica complexa dos sistemas: a vida como sistema. É iniciática devido a não ser apenas uma questão de fé, mas de entendimento, aprendizado e compromisso, compromisso com a vida, com a harmonia social, com a qualidade da vida e com a preservação da vida (BASSON, 2007). É complexa porque lida com a dinâmica das energias dos seres visíveis e invisíveis, o real e o imaginário, o presente e o ausente, o ser físico e o ser espírito, com o animal, o vegetal e o mineral contidos em todos os seres. Isto tudo considerando as interações mútuas, o que pode ser interpretado na ciência ocidental moderna da engenharia de sistema como realimentação (feedback). A religião africana explica a necessidade da compreensão da integração das diferentes ordens do universo no qual estamos inseridos e do qual cada um faz parte e tem responsabilidade com a harmonia geral. A disciplina por nós criada faz um intensivo uso dos planos urbanos das cidades em todo o continente africano e também dos mapas e informações geográficas. A geografia contribui nos seus diversos aspectos: (1) Geografia Urbana: o crescimento temporal das cidades, as aglomerações urbanas e as inter-relações hierárquicas dos espaços; (2) Geomorfologia: as formações geológicas, os relevos e suas dinâmicas; (3) Geografia Climatológica: os climas e as transformações do clima ao longo do tempo e os impactos nas sociedades; (4) Hidrogeografia: a dinâmica das bacias fluviais, os portos e as redes de navegação; (5) Geografia Agrária: as produções e as transformações do uso do solo, as relações comerciais e sociais que interferem e modificam as relações entre campo e cidade; (6) Geografia das Populações e as demográficas: as condições de vida das populações;e (7) a cartografia. A produção da história das cidades e do urbanismo africano em quatro tempos As nossas observações empíricas e os questionamentos que levaram ao estudo mais aprofundado das cidades africanas ocorreram na década de 1990 dentro do programa de doutoramento em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, mais especificamente na área de Estruturas Ambientais Urbanas, quando da tese de doutoramento de Marizilda dos Santos Menezes (MENEZES, 1998), e no seguimento deste processo de trabalho no estudo de geometrias fractais e o emprego desta no produção do urbanismo africano (MENEZES; CUNHA JUNIOR, 2003). Um primeiro passo foi a observação das casas de fazendas construídas por escravizados africanos no Brasil, que apesar de existirem há mais de 200 anos apresentavam inovações que no ocidente ficaram importantes somente com o advento da arquitetura modernista. No modernismo a grande inovação foi a separação da estrutura do edifício do seu fechamento, ou seja, das paredes. Em Minas Gerais e em Mato Grosso algumas construções em taipa das casas de fazenda de dois pavimentos tinham a estrutura em madeira dura (colunas e vigas) sendo o fechamento em taipa, fato que não foi evidenciado e p. 161 nem explorado pelos estudos sobre arquitetura colonial brasileira. O segundo passo foi o estudo das arquiteturas e formas urbanas africanas, com grande interesse nas formas com geometrias fractais que apareceram apenas na história africana. A história das construções africanas levou à necessidade de repensar conceitos e mesmo a revisão dos períodos históricos da história “universal”. O período da idade média, considerado de “pouca iluminação” ou a idade das trevas, na história ocidental, foi justamente um período de grande vigor e desenvolvimento das cidades africanas e dos impérios africanos (ABU-LUGHOD, 1989). Já o período denominado de iluminismo e de criação das ciências no ocidente é justamente o período de destruição das sociedades e culturas africanas pelas invasões do Império Otomano e depois das potências imperialistas europeias (RODNEY, 1974). Em consequência dessas observações, repensamos os períodos em quatro grandes grupos assim denominados: urbanismo da antiguidade das civilizações do vale do rio Nilo (compreendendo 4000 anos de história antes da era cristã); urbanismo da era do mercantilismo africano (séculos do 1 ao 15); a era da catástrofe africana (Séculos 16 ao 20); a era do renascimento africano (os tempos atuais). Em seguida tratamos desses quatros períodos, apresentando os conteúdos da ementa da disciplina (CUNHA JUNIOR, 2019), sendo que o detalhamento bibliográfico se encontra contido nas ementas protocoladas no sistema da Universidade Federal da Bahia. A era da antiguidade africana: urbanismo e cidades nas civilizações do rio Nilo A nossa história percorre de início pelas fontes arqueológicas que demonstram a organização de sistemas de produção agrícola e pesqueiros nas regiões do rio Nilo, a organização de estados no baixo e alto Nilo e região da Núbia e organização dos primeiros núcleos urbanos. Os fatos históricos melhor documentados abrangem o período entre 4000 a 3000 anos antes da era cristã na organização de reinos do alto e baixo Nilo, que se unificaram formando o antigo Egito. p. 162 No percurso do Egito destacamos o estudo das cidades do baixo Egito, na região do delta do Nilo, onde o rio deságua no Mediterrâneo. As principais cidades históricas foram Memphis, Alexandria, Hermopolis, Giza, Esna (Letopolis), Busiris, Avaris, Crocodilopolis, Tanis, Leontopolis, Sais, Bubastis e Heliopolis. Na região sul do Egito se encontra a parte do rio Nilo denominada como alto Nilo e suas principais cidades foram Tebas, Abydos, Thinis, Khmun (Hermopolis), Dendera, Hierakonpolis, Koptos, Edfu, Elephantine e Aswan. Tebas, conhecida pelos antigos egípcios como Waset, era uma antiga cidade egípcia localizada a leste do Nilo e a cerca de 800 quilômetros ao sul do Mediterrâneo. Na abordagem realizada, o Egito tem grande destaque pelas questões da escrita, da filosofia e da matemática (CUNHA JUNIOR, 2017). A filosofia é introduzida com referências ao conceito de Maat e ao filósofo Ptahhotep. A sociedade egípcia antiga é a sociedade do Maat que é representada por uma deusa que inspira os projetos de artes, construções e cidades. O conceito de Maat implica no equilíbrio do universo. Sendo que esse equilíbrio do universo inspira a necessidade de equilíbrio das ações humanas. Elabora uma hermenêutica do bem viver em sociedade onde figuram os conceitos de equilíbrio, verdade e justiça social (SANTOS; CUNHA JUNIOR, 2021). O filósofo Ptahhotep é, possivelmente, o mais antigo da história da humanidade. Ele escreveu um conjunto de máximas éticas baseadas no Maat, que se encontram em um dos papiros que está conservado até os dias de hoje na Biblioteca Nacional da França, em Paris. Ptahhotep foi um vizir, um conselheiro do Faraó e viveu entre os séculos 25 e 24 antes da era cristã. Na disciplina de Urbanismo Africano é apresentado o primeiro arquiteto egípcio conhecido na história: Imhotep, que viveu no terceiro milênio antes de Cristo (2655-2600 a.C.) e que foi quem arquitetou a pirâmide de Sacara, considerada a primeira pirâmide do Egito. Essa pirâmide era diferente das mais conhecidas, pois era em andares, com seis enormes degraus, com uma altura de aproximadamente 62 metros. Formada por degraus, era como mastabas empilhadas, ou seja, patamares de pedra ou de argila. O nome mastaba veio do árabe, que por sua vez veio do aramaico (misubb). As origens dos nomes em aramaico representam grande importância no estudo porque conecta o Egito à Etiópia e às origens judaicas da Etiópia (BEZERRA, 2012). A região da Núbia, atual Sudão, entrou para a história da humanidade principalmente pela produção da metalurgia e do ouro na antiguidade. A região foi produtora e exportadora de cobre, ferro e ouro. O reino Kush é o marco mais importante dessa região na história antiga. As principais cidades históricas núbias foram: (1) Chenem-Waset (Amara Oeste), que até o presente guarda o mesmo nome e que durante o predomínio Kush foi sede da administração e de um senado; (2) Iken (Mirgissa), uma das cidades mais antigas que a história conhece que existiu desde 4500 anos antes da nossa era; (3)Buhen, que guarda na atualidade o nome antigo e aparece na história em 3000 anos antes da era cristã, sendo uma cidade industrial de produção de cobre na antiguidade e era uma cidade fortificada; (4) Napata, cidade Kush, próxima à quarta catarata do Rio Nilo, foi durante muito tempo uma cidade-estado e depois incorporada p. 163 aos estados da região. A fundação da cidade é atribuída aos egípcios, considerada na história como o período de reunificação entre a Núbia e o Egito (1060-750 antes de Cristo), tornando-se depois uma cidade independente (DAFAALLA, 1992). A região da Etiópia e reino etíope é tratada principalmente pelo grande papel econômico e cultural que exerceu sobre as regiões africanas durante a transição entre o período de grande importância das civilizações do rio Nilo, a antiguidade e a era do mercantilismo africano, que trataremos a seguir. A era do mercantilismo africano A “Era do Mercantilismo Africano,” considerando um intervalo temporal de aproximadamente 500 anos antes da era cristã a 1500 desta era, transcorreu um período de 2000 anos de história de intensa expansão populacional, econômica e tecnológica das sociedades africanas. A expansão populacional foi resultado do crescimento das disponibilidades de alimentação, devido ao aperfeiçoamento da criação de animais e da agricultura, do emprego de novas técnicas de irrigação e da conquista de novas terras. As tecnologias do ferro e da metalurgia africana foram uma das bases dessa expansão, pois propiciou novos instrumentos agrícolas. O aperfeiçoamento das navegações e a utilização dos camelos importados da Ásia produziram uma grande dinâmica econômica dos mercados e portos africanos. p. 164 A era do mercantilismo africano foi também marcante pela consolidação de uma imensa rede de comércio global com fortíssima participação de africanos através da gerência de grandes reinos e de cidades-estado mercantilistas. A globalização econômica é um fenômeno antigo e fortemente desenvolvido naquele período. Um dos marcos do mercantilismo e da globalização através de grandes viagens intercontinentais foi intensamente promovido devido à náutica chinesa, pois imensos navios chineses (navios com mais de 100 metros de comprimento) cruzaram os mares das Américas até a Oceania. Inclusive, no século XV, os chineses apresentavam mapas-múndi incluindo as Américas, África, Ásia e Europa com grande grau de detalhamento. Da mesma forma que islâmicos e africanos apresentaram mapas contendo as Américas, há evidências de que os africanos nesse período cruzavam o Oceano Atlântico e estabeleciam bases de trocas comerciais nas Américas (SERTIMAN, 1977). Os mapas islâmicos que circulavam no continente africano também já apresentavam o Brasil antes das viagens de Colombo às Américas e de Cabral ao Brasil. Nesse período houve um grande desenvolvimento da náutica africana de comércio e do estabelecimento de grandes redes comerciais africanas no Oceano Índico. Para efeito do estudo do urbanismo e da produção das cidades, esse período do mercantilismo africano (500 aC. a 1500), ficou organizado em quatro grandes núcleos geográficos assim denominados: (1) África Ocidental, na região do Níger; (2) África Oriental Norte, nas regiões da Etiópia e Chifre da África; (3) África Central, na região do rio Congo; e (4) África da região “Swuarilis” do Oceano Índico. Ainda neste período surgiram grandes estados e conectou-se às redes dos grandes estados um conjunto amplo de cidades mercantis independentes, as quais podemos classificar como cidades - estado: são as cidades “Swuarilis” do litoral do Oceano Índico e as cidades das regiões da atual Nigéria. Também, certo número de cidades desempenhou importante função comercial na região da África do Norte e do Mediterrâneo. Destaca-se, neste grande sistema comercial, o comércio das caravanas através do Sahara, tendo como consequência a fixação de população e a criação de cidades pela região considerada desértica. Esses conjuntos de cidades representam também os conjuntos de técnicas construtivas e de organização do espaço urbano (CUNHA JUNIOR, 2018). A era da catástrofe africana Do século XV em diante ocorreram duas grandes invasões destruidoras, de dominação internacional, sobre o continente africano, a saber: as invasões pelo império turco e pelo império europeu. O império turco, conhecido também como império otomano, foi fundado no final do século XIII, na região noroeste da Anatólia, na cidade de Söğüt na atual Turquia. Depois de 1354, os turcos conquistaram parte da Europa, até os Bálcãs e constituíram um império transcontinental. Os otomanos derrotaram o Império Bizantino com a conquista de Constantinopla em 1453 e também ocuparam boa parte da região do rio Nilo e do norte africano. As invasões turcas duraram até a entrada do século XX. As regiões do Atlântico e do Índico sofreram as invasões da expansão européia que foi iniciada no século XV, tendo como marco a expulsão dos mouros da Península Ibérica em 1492 e provocou mais de 4 séculos de lutas pela dominação do continente africano, impondo-se definitivamente no século XIX, através do tratado europeu de Berlim, de 1885. As potências econômicas e militares europeias realizaram as invasões militares do continente africano e com o tratado de Berlim, estabelecido apenas entres essas potências, oficializaram a repartição política do continente como colônias europeias (BITTENCOURT, 2003). p. 165 As invasões foram de destruição e pilhagem do continente e de dominação sobre as rotas internacionais de comércio exploradas pelos africanos. As dominações formaram dois grandes processos, cujas implantações duraram também mais de 4 séculos, modificando sistematicamente a vida no interior do continente e resultando em várias consequências sociais, como a implantação do islamismo e do cristianismo sobre a maior parte do continente. As invasões turcas promoveram o início da exploração de comércio de seres humanos para os sistemas escravistas europeus. Antes, a Europa e a Ásia escravizavam os povos nórdicos europeus, denominados na Europa como bárbaros: os escravos eram os povos eslavos. As invasões europeias exploraram os produtos comerciais africanos e ampliaram o comércio de seres humanos para o escravismo criminoso nas Américas (MOUAK, 2004;ROTMAN, 2009). A arquitetura da era das catástrofes e da destruição africana iniciou-se com a construção de grandes fortalezas europeias e com a instalação de cidades portuárias ao longo do Oceano Atlântico. Pelo menos 47 grandes fortalezas foram construídas pelos europeus na costa africana. No interior do continente intensificou-se o fenômeno urbano da destruição de cidades importantes (pelo menos 100 cidades desapareceram) e fortaleceram-se os fenômenos das cidades protegidas por muralhas para resguardar a população contra os saques escravistas. Houve um paulatino decréscimo da população africana, além da destruição de muitas rotas de comércio ou o controle delas pelos povos invasores que controlavam as regiões de término das rotas. Entretanto, muitas regiões do interior do continente mantiveram cidades importantes, reinos com grande poder político e econômico e até mesmo importantes sistemas comerciais (WALKER, 2011; HULL, 1977). Como observamos, foram quatro séculos com duas grandes frentes de luta. Ao longo dos tempos históricos os europeus superaram belicamente os turcos e ocuparam as regiões do norte africano e da Ásia, anteriormente dominada pelo império otomano. A era da catástrofe africana tem o seu encerramento pelas lutas de libertação dos povos africanos e pela reorganização dos estados africanos na sua atual configuração dos territórios e cidades africanas. A era da renascença africana p. 166 Na atualidade o modelo de análise das cidades africanas pode ser pensando na linha de Ali Mazrui (1986), como a conciliação e os conflitos de uma herança tríplice: das sociedades tradicionais fortíssimas nas regiões agrárias, da herança islâmica e da herança das invasões e da dominação europeia, principalmente nas regiões das grandes cidades portuárias. Na produção do novo urbanismo africano e na produção das cidades africanas existe a utopia da renascença africana, isto é, uma reconstrução: construir sobre novas bases, edificar com novos modelos, considerar no planejamento o capital patrimonial envolvido e que não pode apenas ser demolido. São discursos que estão em pauta entre os países africanos com poucas definições consistentes do que significam. Os séculos XX e XXI ficarão na história africana como uma época de transição entre os governos das agressões diretas e concretas dos países europeus sobre a totalidade de África – continente – e os governos das nações africanas pelos interesses africanos. Esse período consiste em uma transição demorada de um processo difícil e doloroso de ajustes sociais, políticos, culturais e econômicos, dentro dos quais a urbanização será o traço mais preponderante e definidor das condições de vida da população. Embora as 56 nações apresentem problemas em escalas urbanas diferentes e que todas tenham histórias variadas ou traços em comum que são reais, a principal característica são os modelos de dominação e de gestão dos territórios impostos pelos europeus e norte-americanos, cuja manutenção na atualidade gera dificuldades de várias ordens, como as desigualdades sociais, as segregações espaciais e a falta dos conhecimentos africanos do passado (NJOH, 2009; AMMANN, FÖRSTER, 2018). A realidade africana impõe a necessidade de uma autonomia em relação aos países europeus e a definição das políticas internas levando em conta as histórias das populações, suas imensas diferenças sociais e culturais e suas necessidades. A história não se apaga com a modernização, com a mundialização das economias ou com as modificações e fragmentações das identidades, ela permanece de formas ocultas, fica como uma lágrima dura, que dura e corta o tempo como um estilhaço de vidro. Podemos constatar que as mudanças que os governos impõem às populações não funcionam, não alteram a realidade, resultam em fracassos, projetos que são abandonados e se caracterizam como fiascos sociais e econômicos, como investimentos e tempos perdidos e o pior: como sofrimentos desnecessários e desmedidos das populações pobres. Apenas os governos acreditam que estão mudando as sociedades superando a realidade demarcada pela história. Fazem remoções de favelas que apenas mudam problemas de lugares ou reorganizam mercados públicos com base nas teorias europeias e não nas bases da organização da população africana, mas os mercados não funcionam. São realidades que se processaram em um longo período histórico, de séculos, sendo que as análises sobre elas são feitas apenas sobre o p. 167 presente e com base num desejo de mudanças, sem levar em conta todos os atores sociais e todos os condicionantes da história. A democracia se configura como um problema mais profundo do que as eleições livres. As eleições implantam governos que mantém os mesmos acordos econômicos do passado com os bancos mundiais e as mesmas formas de investimentos nas economias, sendo que as mudanças sociais necessárias ficam inviáveis. Também o tempo e as experiências baseados em modelos de democracias ocidentais vão demonstrando que não se trata apenas de um problema de governabilidade, de opções políticas, de estar hoje com um grupo, amanhã com outro de maior interesse político e econômico. Muitos governos estiveram na esfera dos países socialistas, muitos do capitalismo europeu, do capitalismo norte-americano ou, na atualidade, dos capitalismos coreanos e chineses. Apesar dessas diferentes experiências políticas, as cidades e os modos de vida continuaram com as mesmas estruturas herdadas dos governos imperialistas das invasões europeias. Embora os períodos de governos socialistas africanos na Tanzânia, Mali e Gana, nos anos 1960, tenham produzido significativas mudanças com relação ao uso do solo urbano, à educação e à saúde pública, mesmo assim não tiveram continuidade. Os governos socialistas marxistas de Angola, Moçambique e Etiópia tiveram uma longa duração, mas não produziram grandes modificações sobre a estrutura urbana, nem conseguiram resultados que prometessem uma diferença positiva com relação os governos capitalistas. Na atualidade, um grande complicador para as estruturas urbanas de diversos países africanos é a agressividade do capitalismo chinês, que produz grande número de construções sem qualidade dos materiais e dos projetos, sem a utilização dos recursos locais e sem o emprego da mão de obra local. Os governos dos países que negociam com os chineses têm interesse nessas negociações porque pagam os investimentos com a exploração pelos chineses dos recursos naturais africanos. Atualmente, o urbanismo africano, de um modo geral, se encontra à procura de novos modelos conceituais (AMMANN; FÖRSTER, 2018) . p. 168 Os modelos africanos e os acertos internos são fundamentais para qualquer saída das nações africanas. Também tudo indica que muitas nações sofrerão ajustes territoriais, povos proclamarão independências regionais e os mapas africanos sofrerão acertos e reacertos devido à configuração territorial atual ser resultado, em muito, das configurações impostas depois do tratado de Berlim de 1890. Recentemente houve a divisão do Sudão em dois estados, as populações tuaregues reclamam um estado, o Marrocos tem contestações internas, as relações entre islâmicos e não islâmicos conturba o Quênia e desequilibra os partidos políticos na Guiné Bissau. As configurações territoriais obedecem às riquezas do subsolo, equilibram e desequilibram governos baseados em interesses internos e externos de controle das riquezas do continente africano. Conclusões No artigo enfocamos a história de um longo percurso para consolidação e apresentação oficial de dentro de um programa regular da disciplina que trata do urbanismo africano na perspectiva de 6000 anos. Não apresentamos o emaranhado de rejeições, arquivamento de propostas sem respostas, não aceitação de artigos e os muitos obstáculos que implicam a admissão das quebras de paradigmas e da aceitação das formas não hegemônicas da produção da ciência no Brasil. As hegemonias eurocêntricas e brancocêntricas estabelecem organizações formais e principalmente as informais que solapam a definição e o uso das novidades científicas em se tratando dos conhecimentos fora dos consensos estabelecidos, em particular relativos aos conhecimentos sobre história e cultura africanas. Reflexo dessa rejeição elaborada e estruturada no terreno do conhecimento científico é que a lei 10.639/2003, sobre a obrigatoriedade da História e Cultura Africana e Afro-brasileira, não é obedecida (BRASIL, 2003). As correntes do pan-africanismo são diversas e classificá-las seria uma tarefa difícil, tal como também é fazer uma classificação das correntes da filosofia africana. Esse artigo reafirma a conexão militante com o pan-africanismo e com os legados da filosofia africana na linha de Theophilo Obenga. Essas perspectivas resultaram na proposição da disciplina sobre cidades e urbanismo africano apresentada neste artigo. Essa reafirmação é refletida na utilização da complexidade africana na elaboração da pesquisa sobre as cidades africanas e na consolidação da disciplina. Em meio à cronologia histórica da elaboração e implantação da disciplina em questão também são apresentados os conceitos e as suas justificativas, terminando pela apresentação das ementas em forma de períodos históricos. p. 169 Referências ABU-LUGHOD, Janet. Before European Hegemony: The World System A.D. 1250-1350. New York: Oxford University Press, 1989. AMSELLE, Jean-Loup. Logiques métisses: Antropologia de l’identité en Afrique et ailleur. Paris: Payot, 1990. AMMANN, Carole; FÖRSTER, Till, (Eds.). African Cities and the Development Conundrum. 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A segunda fase, analisa o impacto desse urbanismo na contemporaneidade e a continuidade da narrativa nas soluções aplicadas e, a última, apresenta o essencialismo do urbanismo africano como o instrumento válido para uma mudança de paradigma. Os resultados apontam para um tecido urbano que mantém a estrutura da segregação racial colonial, e se mantém numa óptica de exclusão pela condição económica. O desempenho pleno das cidades angolanas só será possível com o desenvolvimento e consequente requalificação dos ‘territórios segregados’ em igualdade de circunstâncias, com investimentos que garantam a acreditação desses tecidos urbanos como parte legítima da cidade. Palavras-chave: urbanismo africano, colonização e segregação racial, musseques, bairros indígenas e bairros mistos. Ciudades en Angola: entre el conflicto de las urbanidades y el necesario cambio de paradigma Resumen Dado que el fenómeno urbano en Angola es anterior a la ocupación portuguesa, es interesante abrir el debate sobre el impacto que las prácticas espaciales y socioambientales implementadas a lo largo de cuatro siglos han tenido en la estructura de las ciudades angoleñas y en el legado para la contemporaneidad. El objetivo de este trabajo es presentar una visión general del proceso de formación y desarrollo de las ciudades angoleñas basado en la segregación y cómo la continuidad de esta fórmula ha sido la clave de la inviabilidad urbana en Angola. La metodología aplicada consta de tres fases. La primera se refiere a la identificación y comparación de los elementos de organización del espacio urbano, a saber, los musseques, los barrios indígenas y los barrios mixtos. La segunda fase analiza el impacto de este urbanismo en la época contemporánea y la continuidad de la narrativa en las soluciones aplicadas. La última fase presenta el esencialismo del urbanismo africano como instrumento válido para un cambio de paradigma. Los resultados apuntan a un tejido urbano que mantiene la estructura de la segregación racial colonial, y se mantiene en una perspectiva de exclusión por condición económica. El pleno rendimiento de las ciudades angoleñas sólo será posible con el desarrollo y la consiguiente recalificación de los “territorios segregados” en igualdad de condiciones, con inversiones que garanticen la acreditación de estos tejidos urbanos como parte legítima de la ciudad. Palabras clave: urbanismo africano, colonización y segregación racial, musseques, barrios indígenas, barrios mixtos. Cities in Angola: between the conflict of urbanities and the necessary paradigm shift Abtract As the urban phenomenon in Angola precedes the Portuguese occupation, it is interesting to open the discussion about the impact that spatial and socio-environmental practices implemented over four centuries have had on the structure of Angolan cities and its contemporary legacy. The purpose of this article is to present an overview of the process of formation and development of Angolan cities based on racial segregation and how the continuity of this formula has been the key to urban unfeasibility in Angola. The applied methodology has three phases. The first refers to the identification and comparison of the elements of organization of the urban space, namely the musseques, indigenous neighborhoods and mixed neighborhoods. The second phase analyzes the impact of this urbanism today and the continuity of the colonial narrative in the applied solutions and, finally, the third presents the essentialism of African urbanism as the valid instrument for a paradigm shift. The results point to an urban fabric that maintains the structure of racial segregation, but in an optics of exclusion by economic condition. The full performance of Angolan cities will only be possible with the development and consequent requalification of ‘segregated territories’ under equal circumstances regarding investments that guarantee the validation of these urban fabrics as a legitimate part of the city. Keywords: African urbanism, colonization and racial segregation, musseques, indigenous neighborhoods, mixed neighborhoods. Introdução este artigo, pretende-se descrever como as questões raciais foram determinantes para a construção do desenho das cidades angolanas. Desde o racismo institucional até a propaganda luso-tropicalista da integração racial dos tempos coloniais e como essa narrativa se mantém até hoje, como um fenómeno neo-colonial, leva à inevitável mudança de paradigma para o pleno desenvolvimento das cidades em Angola. N n. 1 p. 174-205 2022 ISSN: 2965-4904 Na primeira parte do texto é feita uma leitura das cidades angolanas na generalidade, construindo a narrativa a partir das cidades capitais das nações do território angolano, que expõe como a invasão e conquista portuguesa utilizou as suas referências espaciais para contruir a rede do tráfico de escravos. Na sequência, abordamos a construção das cidades na perspectiva portuguesa e caracterizamos as tipologias dos bairros negros até à independência nacional. Na segunda parte, fazemos uma incursão à herança da colonialidade no caso particular de Luanda, cidade capital do país que se torna na matriz urbanística a nível nacional, bem como uma leitura de como os ex-bairros negros são atualmente tratados à luz das políticas públicas. Esta incursão é feita na perspectiva da cidade contemporânea e da herança colonial como narrativa de continuidade segregadora. Na terceira parte, uma brevíssima introdução ao estado da arte do urbanismo africano leva-nos a entender como as teorizações sobre esta matéria constituem a chave para uma intervenção crítica no território urbano angolano. Finalmente, a quarta parte traz algumas considerações, com proposta de conclusões, mas sem recomendações específicas, reforçando a necessidade de repensar a prática urbanística através do recurso a outros referenciais conceptuais e instrumentais, para que haja uma efetiva melhoria na estrutura, leitura e nas intervenções nas cidades em Angola. Angola e as cidades angolanas As cidades bantu, a invasão portuguesa e as redes urbanas do tráfico de escravos É muito remota a origem das cidades no território africano. Entre os finais do primeiro milénio até meados do segundo milénio AD, cidades como Benin (capital do Reino Edo), Tombuctu (Império do Mali) ou Zimbabwe (Reino do Zimbabwe) foram algumas das mais significativas. Ao nível dessas grandes cidades africanas, no território Angolano, a cidade de Mbanza Kongo foi a única com dimensão física, política e cultural 2 equivalente. No entanto, todas as demais Nações Bantu e estados integrados, que faziam parte do território angolano, tinham as suas mbanza, ombala ou mussuma, que nas línguas kimbundo, umbundo e tchokwe, respectivamente, significavam o lugar onde vive o rei e a sua corte. Temos então um cenário urbanístico composto por cidades como Ekovongo (Ombala do Reino do Bié), Lépi (Ombala do Reino do Wambo), Ombaca (Ombala do Reino de Benguela), Kabasa (Mbanza do Ndongo), entre outras, cuja dimensão não é possível aferir, visto restarem apenas as referências de localização e, em alguns casos, existem vestígios arqueológicos da sua existência. A invasão portuguesa e posterior colonização das nove nações do território angolano (séc. XV – XX), serviu-se desses territórios para assentar e comerciar. O método de ocupação numa primeira instância, caracterizou-se pela vizinhança com os aglomerados locais, para além dos aspectos geográficos essenciais à sua localização. Essa relação de proximidade não era necessariamente permeável. Os assentamentos eram protegidos por circunvalações, devido à natureza das suas vocações, e a relação predominante com as cidades locais era de natureza comercial, particularmente, o tráfico de escravos. O impacto social desta atividade era negativo e estes assentamentos eram vistos como uma intrusão, tal como relata a longa e secular história de conflitos. Com o evoluir do processo de ocupação, a conquista dos portugueses sobre os estados locais resultou na destruição ou marginalização das suas cidades capitais, e na maioria dos casos, pela fundação de vilas, sobre os territórios conquistados. Num universo de dezenas de exemplos, os mais expressivos seriam as cidades Ekovongo, Lépi e Ombaca cuja destruição serviria de referência espacial para a fundação colonial das vilas Silva Porto, Huambo e Benguela. A cidade de Mbanza Kongo seria um caso especial devido às relações diplomáticas entre o Império do Kongo e o Reino de Portugal, que garantiram, mesmo depois da conquista portuguesa, uma relação de p. 179 vassalagem do Kongo para Portugal, mantendo então a continuidade de uma estrutura social e urbana, sem impacto administrativo. A cidade de Luanda é também um caso particular visto que a sua fundação não decorre da sobreposição como nos casos de Ekovongo, Lépi, Mossungo e Ombaca. No entanto, a cidade foi fundada no território circunvizinho da Ilha de Luanda, onde se localizava a população dos Axilwanda e centro urbano da região de Mbamba, pertencente ao Reino do Kongo. A ocupação do território foi um fenómeno gradual com a criação de vilas maioritariamente circunvizinhas às Mbanzas e Ombalas, de escalas diferenciadas. Esta associação de realidades urbanas representou o estágio fundacional dos territórios urbanos que, mais tarde, dariam origem às cidades angolanas. 3 Esta ocupação gerou uma rede urbana no território angolano , conforme o conhecemos atualmente. Tem início no último quartel do séc. XVI, com a fundação da cidade de Luanda, vai-se estendendo durante o séc. XVII ao longo da costa, no sentido norte-sul, com especial relevância para as cidades de Benguela e Angra dos Negros, posteriormente chamada Mossâmedes. Estes novos aglomerados urbanos eram estratégicos, pois a função essencial era proteger o tráfico negreiro da concorrência que existia à época. Este eixo litorâneo estendeu-se para o interior com maior incidência para o editores [N.E.]): A versão original deste artigo foi publicada em 2007 com o título Urban life emerges in Africa no livro The African s eixos transversais que partiam de Luanda e Benguela para o interior. Os rios serviram como elemento referencial desse processo, sendo que os mais importantes núcleos urbanos evidenciavam essa relação, reproduzindo a mesma lógica ocupacional das urbes litorâneas. Temos, então, uma 4 rede urbana que se estrutura à volta do tráfico de escravos, composta por 12 pólos , tendo a cidade de Luanda no topo da hierarquia urbana do território. p. 180 Com o início do período colonial e até ao fim do primeiro quartel do séc. XX, o território definido pela Conferência de Berlim é ocupado definitivamente pelos portugueses. Aspectos centrais como o aumento do aglomerado urbano europeu, aumento de edifícios públicos, aumento das populações urbanas nativas e o seu afastamento, eram regidos pela legislação, instituições e profissionais da égide colonial. Com a chegada dos caminhos de ferro e desenvolvimento rodoviário a Angola, o interior do país é ocupado com outro ritmo. A partir do eixo litorâneo criam-se novas cidades, vilas e colonatos. A rede urbana espalha-se pelo interior do território, e amplia quinze vezes mais a sua dimensão, comparativamente ao anterior período da escravatura. 5 Este momento histórico é fundamentado no pensamento Nortoniano de criar “um caminho de ferro de penetração que, partindo dos nossos portos estabelecesse li- gação com o coração de África, representaria o primeiro passo para o progressivo lançamento de uma malha administrativa em territórios ainda à margem do poder sediado em Luanda (...) Depois, ‘à medida que a linha avance’, haveria que construir ‘estradas perpendiculares’, num traçado hipodâmico ou ortogonal, a fim de ligar os centros populacionais entretanto criados ou refundados” (NETO, 2013, p. 184). Da exclusão escravocrata à integração colonial Ao longo do processo da invasão, conquista e colonização, Portugal estabeleceu dois tipos de relação com a população local. O negro era visto como escravo, ou como mão-de-obra em regime de servidão, sendo que, a evangelização e educação 6 serviam também os propósitos comerciais e domésticos, assim como, numa fase tardia da colonização, para fins administrativos. A ocupação populacional portuguesa foi sofrendo alterações. De uma ocupação militar, característica do período da escravatura, posteriormente o foco foi o de garantir que a mesma fosse feita por famílias portuguesas, para promover a implementação do ‘método educativo’ em relação aos negros, em substituição do ‘método repressivo’ utilizado durante a escravatura. Insistindo no combate à proliferação de armas de fogo, por estas propiciarem o multiplicar de rebeliões indígenas, indicava que não há maneira de civilizar uma civilização, se não for com o recurso a famílias sadias que das nossas aldeias emigrem para Angola, pois o habitual expediente de enviar degradados continuava a resultar em maus exemplos para os naturais. Neste sentido, o aumento da população branca na província, estabelecida nas suas regiões mais salubres, ajudaria a criar centros de vida rural onde o preto aprenda a trabalhar e produzir, numa base de ‘confiança mútua’ e ‘estima recíproca’ [...] Além do mais, as restrições impostas à circulação de armas e o aumento de colonos metropolitanos abririam caminho a uma ‘administração [não] excessivamente militar’, como depois procurou realizar. (NETO,2013, p .193) É importante também referir que o espaço social tinha categorias jurídicas associadas a raça. A constituição portuguesa de 1911 definia que “São cidadãos portugueses, para o efeito do exercício dos direitos políticos, todos aqueles que a lei civil considere como tais”, sendo que o Código Civil Português de 1867, vigente na época, p. 181 enquadrava essa condição na naturalidade, filiação e matrimónio. Logo, a noção de cidadania portuguesa não era uma categoria abstracta. Pelo contrário, rotulava uma característica moral e socialmente concreta que se aplicava aos homens e mulheres brancos, nascidos em Portugal, educados e com bens, que Maria Paula Meneses ironicamente intitulou de “alma gentil da colonização” (MENESES, 2010). Na mesma medida, o ser-se indígena configurava serem “os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses” (ESTATUTO DOS INDÍGENAS PORTUGUESES DA GUINÉ, ANGOLA E MOÇAMBIQUE, 1954). Esta definição foi inalterada, desde a primeira edição do “Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique”, aprovado através do Decreto nº 12.533, de 23 de Outubro de 1926 (Boletim Oficial nº 48). No que tocava ao negro, as categorias estabeleciam sempre diferenças, ora escravo-liberto, ora indígena-assimilado. Enquanto que no binómio escravo-liberto, poucas diferenças sociais existiam, entre indígena-assimilado, a diferença social era consideravelmente expressiva. Os indígenas – denominação colonial de classe social predominantemente composta por serviçais/contratados que trabalhavam nos sectores agrícola, mineiro, construção civil e, uma pouco expressiva, classe de “operários”. Eram estes que asseguravam os ofícios artesanais e a indústria, tendo em comum salários insignificantes e condições de vida insalubres. Homens e mulheres com condições semelhantes à dos escravos como conta Adelino Torres, descrito por Neto, que ao investigar os acórdãos do Tribunal da Relação de Luanda, encontrou, registos entre 1904 e 1913, de muitas dezenas de crimes de cárcere privado, ou cativeiro com ofensas corporais graves, e mais de 40 crimes de compra e venda de pessoas negras escravizadas (NETO, 2017). p. 182 Os assimilados - era o termo colonial para se referir a antigos indígenas que haviam adquirido a cidadania portuguesa, ou esta teria sido atribuída por conveniência política a descendentes da elite monárquica das nações locais. Os assimilados, estavam integrados na administração pública, no comércio ou na prestação de serviços, o que lhes conferia estatuto, bem como ascensão económica e social. A população branca, portuguesa ou de outra ascendência europeia, encabeçava a sociedade como a burguesia, e elite política e religiosa com ínfimas excepções. Importa frisar que, até à extinção jurídica da segregação racial em 1961, os Censos 7 Populacionais apontava para uma população de assimilados (negros e mestiços) entre 1% até perto de 2% em 1960. Efectivamente, os censos de 1960 mostram a chegada de mais de 172 mil brancos vindos de Portugal e mais de 50 mil nascidos em Angola. Relativamente aos mestiços e os negros assimilados totalizavam apenas 53,000 pessoas. A população considerada “civilizada” pelo regime de Salazar era inferior a 280 mil pessoas, num total de 4,8 milhões (ROCHA, 2019). Integrado n’As Reformas de 1961, Adriano Moreira revoga o Estatuto dos Indígenas Portugueses da Guiné, Angola e Moçambique com o Decreto-Lei n.º 3.893, motivado pelas independências dos países africanos em 1960, bem como com a eclosão dos movimentos independentistas nacionais, conferindo uma maior facilidade de acesso à cidadania. Segundo Duarte Silva (2017) este acto foi tão importante na história da evolução legislativa portuguesa como as leis que aboliram a escravidão e o tráfego humano (DUARTE SILVA, 2017). Isto significa que o impacto das políticas habitacionais para a população negra era ínfima no desenho urbano consolidado. Pouco antes da independência nacional, em 1970, a população urbana africana era de pouco mais de 600.000 habitantes em toda a Angola (MARQUES DA SILVA, 2003) o que representaria cerca de 10% da população negra que estivesse recenseada. As políticas segregacionistas de índole racial da colonização portuguesa, traduziram-se no contexto urbano, quer promovessem a exclusão e a segregação durante o período da escravatura e colonial, ou a integração durante o período colonial tardio que antecedeu a independência. Num recorte temporal a partir de meados do séc. XIX até ao final do período colonial (1850–1975), é possível identificar as tipologias que traduzem os três fenómenos sociais: a exclusão, a segregação e a integração. (...) num primeiro espaço temos a cidade dos brancos, (objecto de processo de urbanização), num segundo espaço a cidade mista (espaço de integração racial), e em último lugar a cidade dos negros, com bairros indígenas, (também estes, por vezes, objecto de processo de urbanização), juntamente com os musseques, deixados em maior liberdade ou ao acaso (...) (FONTE. 2012, p.101) Esta racialização da paisagem do espaço urbano, deixa claro duas atitudes no plano da gestão pública face aos territórios negros nas cidades angolanas. A primeira, declara que urbanização era um processo essencialmente para a ‘cidade dos brancos’ e seus espaços mistos e os territórios negros eram, ‘naturalmente’ excluídos das políticas p. 183 públicas de requalificação urbana. Na segunda, as categorias do espaço urbano negro, foram sempre pensadas para servirem a ‘cidade dos brancos’, quer como mão-de-obra doméstica ou administrativa (ínfimos casos), quer como mão-de-obra agrícola ou operária, dependendo da ‘categoria social’ do indivíduo negro. Assim sendo, a cidade branca funciona como um território de ocupação pendular, por parte dos negros, que a utilizam para fins laborais e sem interferir no modus vivendi da urbanidade europeia e, os musseques, bairros indígenas que funcionariam como territórios de permanência. Os bairros mistos, embora possam ser considerados como territórios de permanência, não poderiam ser considerados territórios negros nas cidades angolanas coloniais, visto que a sua ocupação demográfica era na proporção de um negro para cada três brancos. Tratava-se, portanto, de uma minoria simbólica e sem representatividade num contexto predominantemente europeu/branco. Os musseques O musseque é a categoria urbana mais antiga, e surge na cidade de Luanda com a sua fundação. Segundo Ilídio do Amaral (1983), a denominação de musseque na época colonial, tinha propósitos predatoriamente racializados: p. 184 Quase podemos afirmar que os musseques, como bairros de miséria e transição, nasceram logo após a criação da cidade, primeiro sob a forma de quintais onde os traficantes de escravos acumulavam as suas “peças” para exportação, depois como aglomerados de cubatas, nos coqueiros, no Bungo, nas ingombotas, nas Maiangas, habitadas por africanos escravos e libertos. Em finais do século passado, por volta de 1898, de uma população urbana de 28.170 habitantes, 6.676 estavam naquelas condições. À medida que a cidade foi progredindo, que ultrapassou o perímetro atrofiado e se expandiu, os musseques passaram a ser excluídos da área central, empurrados para o planalto sem obstáculos e sobre ele, deslocados por força de cada avanço da frente urbanizante. Assim, situam-se cada vez mais longe do centro urbano e são constantemente ampliados pela chegada de novos imigrantes; coalescem e formam a auréola que marca a passagem da área urbana para o hinterland pobre, onde rareiam as formas de povoamento com alguma importância. Os musseques continuam a ser e serão sempre um dos problemas mais importantes de Luanda; constituem um bom exercício de reflexão sobre os “bairros de miséria” que rodeiam as cidades dos países subdesenvolvidos (e não só, pois também os há em países desenvolvidos) (AMARAL, 1983, p.298-299). No entanto, esta tipologia urbana é polissémica e transtemporal no sentido em que não se restringe a um único período. Na fase tardia do período da escravatura, no séc. XIX, existiam 5 musseques nos arrabaldes da cidade ‘Mosseque de Massi’, ‘Mosseque de Flores’, ‘Mosseque de Torres’, ‘Mosseque de Vandúnen’ e ‘Mosseque 8 de Magalhães Silva’ . Assim, os musseques passam a ser “(...) aglomerados vedados, autênticos depósitos dos escravos a serem transportados para as Américas. Existiam para além da linha de circunvalação (fronteira da cidade) e eram referenciados pelos nomes dos seus donos” (MINGAS, 2011, p.38). O período colonial imprime uma maior dinâmica ao desenvolvimento das cidades que vai cada vez mais afirmar o musseque como um território marginal à cidade sendo que sua dimensão populacional vai aumentando com a chegada de novos imigrantes (AMARAL, 1983). A exclusão dos musseques do foral urbano definiu, desde os primórdios, a localização periférica que esses espaços passariam a ter na cidade. Embora a sua função na cidade fosse alterada, passando de depósito de homens e mulheres escravizados, para quintas de produção agro-pecuária que abastecia a cidade de alimentos, a partir de meados do século XX, mais especificamente com o Plano de Urbanização de Luanda de 1962, do Gabinete de Urbanização de Luanda. Este plano ampliou exponencialmente o foral urbano, e os musseques passaram a ser bairros populares enclavados na cidade e, na sua maioria, passaram a ser território privilegiado da transformação urbana para integrar bairros mistos na cidade de Luanda. Recriou, assim, a deslocalização da população aí residente. À data da independência, os musseques representavam núcleos que estavam espalhados pela cidade de Luanda, constituindo uma superfície com cerca de 1500 hectares, divididos entre 20 zonas bem definidas, que compunham uma população de cerca de 300.000 pessoas (TROUFA REAL, 2010). p. 185 Os bairros indígenas Os bairros indígenas, à semelhança dos musseques, remetem para o período da escravatura, embora para um período mais recente, o século XIX. À época, os bairros indígenas estavam localizados no foral da cidade de Luanda (SGL, 1861) e eram habitados por escravos qualificados e libertos. Já em pleno séc. XX, os bairros indígenas passam a ser integrados nas políticas públicas. Norton de Matos, com o seu pensamento de que o mestiçamento comprometia a obra colonizadora e civilizadora dos portugueses em África, determinou medidas que impediam o convívio intersocial e o asseguramento do afastamento entre negros e brancos (AGOSTINHO, 2017, p. 418). Assim, o General Norton de Matos decreta a construção de bairros indígenas pelo país e determina os termos gerais para a sua construção, categorizadamente: (1) periféricos à cidade, (2) separados fisicamente, (3) malha urbana ordenada e alinhada, (4) desenho da estrutura viária amplo, (5) tipologia habitacional pré-definida, (6) população entre 5000 a 15000 e (7) obrigatoriedade de residência. Estes termos, associados às regras de permanência dos indígenas no centro da cidade, tinha como propósito reduzir o contacto entre raças, reduzindo o negro à prestação de serviços, qualquer que fosse a sua índole. A partir dessa data, o impacto do pensamento segregacionista Nortoniano influenciou sobremaneira o desenho das cidades angolanas e em algumas delas, os Planos Urbanísticos foram desenhados integrando o dualismo centro-satélite, caso de Luanda e de Huambo, ambos da década de 1940. No caso de Luanda, o Plano de Urbanização da autoria de Etienne de Groër e D. Moreira da Silva (CML, 1942) propôs um esquema de organização do território constituído em cidades-centro e cidades-satélite, sendo as cidades-satélite destinadas para os bairros indígenas. Um dos projectos mais conhecidos para as cidades-satélite que propostas, foi desenhado pelo arquitecto Vasco Vieira da Costa, que, apresentado em 1948, traduzia as suas considerações acerca dos bairros indígenas, nos seguintes termos: p. 186 Compete, pois, ao europeu, criar no indígena necessidades de conforto e de uma vida mais elevada, impelindo-o assim ao trabalho que o levará a fixar-se, e o que facilitará a mão-de-obra mais estável. A orienta- ção das habitações e a localização dos bairros indígenas são os dois grandes elementos que devem reger a composição do plano da cidade colonial. […] Assim, preferimos situar os bairros indígenas envolvendo o núcleo central, tendo todo o cuidado de localizá-los sempre a sotavento das zonas das habitações europeias, que mesmo assim serão sempre isoladas por um ecrã de verdura, suficientemente largo para que o mosquito possa transpô-lo. Como parece ser indispensável do ponto de vista higiénico e social, as populações indígenas formarão vários grupos dispersos, que como pequenos satélites abraçarão o núcleo europeu, ficando assim cada sector deste núcleo servido por um grupo indígena. Deste modo, encurtaremos a distância a percorrer entre o local de trabalho e a residência (VIEIRA DA COSTA, 1984, p. 49-50). No caso do Huambo, o Plano Geral de Urbanização (CMNL, 1946), elaborado entre 1947-1948, esteve a cargo do então Gabinete de Urbanização Colonial, tendo como responsável o arquitecto João António Aguiar. Este plano reflecte o modelo de cidade-jardim, muito formal no seu desenho, e vem na sequência do primeiro plano, apontar de forma inequívoca a relação (ou falta dela) entre a cidade branca e a cidade negra. Baseia-se nos princípios do urbanismo colonial preconizados por João Aguiar, assente na premissa da separação: a população negra serve a população branca logo, deve estar perto mas nunca no mesmo espaço urbano; daí resultaram os bairros indígenas nos arredores da cidade, constituindo-se como unidades autónomas denominadas Unidades Residenciais Indígenas (FONTE. 2012: 176). A promoção dos bairros indígenas motivou, nos anos 1950, a criação de um sistema 9 que integrava o Fundo de Bairros Indígenas, o Regulamento dos Bairros Indígenas e as Comissões Administrativas dos Bairros Indígenas (integradas na administração local), entre outros entes de cariz público e privado. Este sistema, criado para resolver o problema de habitação da população negra menos favorecida, esteve longe de ser eficaz, visto que o crescimento demográfico ultrapassava a capacidade de resposta pública e levava, consequentemente, ao engrossamento dos musseques. A década de 1960, trouxe imensas alterações à política colonial portuguesa com impacto no urbanismo. O início da guerra colonial ultramarina levantou a questão da segurança e controlo da população, interferindo no desenho dos projectos dos p. 187 bairros, que “Caracterizado pelo seu traçado, ruas rectilíneas que compreendiam num rectângulo imaginário, desta forma configurava-se numa área de segurança, isto é, uma área onde os moradores podiam ser facilmente controlados pelas autoridades” (AGOSTINHO, 2017, p. 424). O sistema de promoção pública de bairros indígenas, com o fim de garantir a relativa proximidade da população negra da cidade ‘branca’, serviu tanto o propósito social da promoção habitacional, bem como o propósito político de controle da população negra urbana. Os bairros mistos Motivada pelas reformas de 1961 promovidas por Adriano Moreira, mais do que revogar o Indigenato, a promoção da integração teve impacto em todos os sectores da sociedade colonial e o urbanismo não constitui excepção. Nesse contexto, os bairros mistos são os últimos a surgir na arquitectura das cidades angolanas e, segundo Maria Manuela da Fonte (2012), seriam um “espaço de integração racial” (FONTE, 2012, p. 101). Segundo relata Fortuna (2016), as orientações vindas do então Governador Venâncio Augusto Deslandes, eram de que a ocupação deste bairros deveria ser na proporção de 1/3 de população indígena, para 2/3 de população europeia, com o intuito de promover a miscigenação necessária para ‘elevar’ a cultura e os costumes da população indígena (FORTUNA, 2016). p. 188 A implementação dos bairros mistos teve particular relevância nas cidades de Luanda e Lobito. Segundo Fonte (2012), os casos mais emblemáticos no país foram: o bairro do Prenda (projectado para 5.500 habitantes) e o bairro do Alto Liro (projectado para 7.500 fogos/residências) em Luanda e Lobito, respectivamente (FONTE, 2012). Estes projectos seriam liderados por dois dos arquitectos mais emblemáticos dos serviços municipais de urbanização em Angola: Fernão Lopes Simões de Carvalho 10 do Gabinete de Urbanização de Luanda (GUL) e, Francisco Castro Rodrigues, então Director dos Serviços de Urbanização e Arquitetura na Câmara Municipal do Lobito. O primeiro foi responsável pela criação das unidades de vizinhança em Luanda, em particular do bairro Prenda (1963-1965) que tratou da miscigenação entre brancos e negros assimilados, através de edifícios separados e de lotes para auto-construção (que nunca se concretizou). O segundo, foi responsável pela criação do bairro municipal de auto-construção do Alto do Liro (1970-1973) dirigido para população de baixa renda, sem distinção rácica. Um aspecto interessante ocorreu no bairro do Alto Liro, cuja reforma integrou negros e brancos, mas com a ressalva de que estes últimos teriam que ser os mais pobres da sociedade branca. Os bairros mistos, em particular as unidades de vizinhança previstas no Plano Urbanístico do GUL, não foram concluídos. A situação da guerra anti-colonial e anti-fascista (1961 a 1975) não permitiu levar adiante os planos de alteração do sistema sócio-político, por representar mais uma adaptação a novas circunstâncias, do que, propriamente, a uma mudança de atitude perante um sistema obsoleto e que se limitava a incluir somente 1% da população negra, que era extremamente carente de melhoria das suas condições de vida. A cidade contemporânea e a herança como narrativa de continuidade O legado urbanístico da colonialidade: o caso de Luanda A cidade de Luanda é o modelo matricial da construção de uma cidade segregada racialmente. A evolução urbanística é feita ao longo do recorte temporal de 1576 - 1975, período da fundação colonial da cidade até à independência nacional. O processo ocorre de forma díspar entre o território dos brancos, denominado ‘centro’ e os territórios dos negros, denominado ‘periferia’, sendo o primeiro representante do centro do investimentos públicos e desenvolvimento tecnológico e, o outro excluído e fisicamente marginalizado. O centro da cidade passou por três transformações urbanísticas essenciais: a criação do próprio centro da cidade à luz das premissas do urbanismo tardo-medieval, com a consolidação da cidade alta, como lugar eclesiástico e governamental e, da cidade baixa, como lugar burguês e comercial. A segunda fase ocorreu com a Reforma Pombalina, implementada pelo Governador Sousa Coutinho, em que a influência iluminista e barroca se traduziram num forte investimento no zoneamento e regularização fundiária, associada ao saneamento básico que melhorou substancialmente a qualidade de vida dos cidadãos. Por último, ocorreram dois processos de transformação, já com a constituição da colónia: o primeiro, no final do séc. XIX. O urbanismo de cariz colonial começa ainda neste período de afirmação territorial, p. 189 já que, pela primeira vez, a cidade de Luanda precisou conectar-se com o mundo. O ponto de partida desse movimento foi dado com várias acções que visavam a ligação da cidade com o exterior, tais como: a construção do 1º Caminho de Ferro de Angola, através da linha Luanda-Malanje (1886/1909); o lançamento do Cabo Submarino para instalação de telefone e telégrafos (1886); e a inauguração do primeiro troço do Caminho de Ferro de Luanda até a Funda (1888). A cidade melhorou bastante, particularmente em duas questões fundamentais: o fornecimento de água à cidade, com o sistema de captação de águas superficiais do Rio Bengo em 1889 e, a projecção da iluminação eléctrica para a cidade em 1890. No entanto, a cidade manteve a mesma estrutura tradicional herdada da época iluminista, até à virada do século, com palácios e sobrados, musseques com as suas casas tradicionais, praças ajardinadas e praias em torno da baía. Este foi o momento da consolidação territorial, que se fez com a 11 extinção do tráfico de escravos, a “limpeza da cidade” na erradicação de bairros e urbanização. Em 1864, ocorreu o primeiro processo de higiénização conhecido na história da cidade de Luanda. Quando uma epidemia de varíola e a necessidade de urbanizar uma parte da cidade baixa marcaram o fim do bairro indígena dos Coqueiros, o mais populoso, com as suas 227 kubatas espalhadas em volta de sobrados e palácios (...). A maior parte dessa gente foi transferida para o Maculusso, a outra foi engrossar o bairro das Ingombotas, na vertente suave do planalto (AMARAL, 1962, p. 59). O segundo processo, que decorre a partir do 1º quartel do século XX, seria o da expansão territorial com o objectivo de construir uma capital colonial que fosse capaz de interagir com a metrópole, Lisboa, de forma solidária. p. 190 As transformações na periferia da cidade, foram a degradação e a insalubridade. Na fase de criação da cidade, a periferia era onde estavam localizados os musseques que serviam como depósitos dos homens, mulheres e crianças que seriam vendidos como escravos no Pelourinho da Cidade. No período da Reforma Pombalina, acontece a cisão entre brancos e negros no espaço urbano da cidade baixa. O zoneamento é desenhado somente para a população branca. Por sua vez, os bairros indígenas surgem, neste período, como os lugares marginais do zoneamento onde residiam predominantemente os negros e mestiços que fossem libertos, cuja configuração e dimensionamento contrastava com plano reticulado. Os libertos eram antigos homens escravizados a quem o dono concedia a liberdade, por emancipação ou por manu- missão. Na Constituição Política da Monarquia Portuguesa de 1838, o terceiro texto constitucional português, se introduz o termo “liberto” atribuindo ao indivíduo alguns 12 direitos civis. No entanto, estavam vetados quaisquer direitos políticos. . Relativamente ao estatuto jurídico dos libertos, segundo Seixas (2015) apesar de Portugal ter abolido a escravidão em 1869, só em 1875 foi extinta essa condição nos territórios sobre a administração portuguesa (SEIXAS. 2015). A colonização, a partir do final do séc. XIX, e a explosão demográfica europeia que a acompanha, acentua a cisão entre centro e periferia, na primeira fase. O urbanismo colonial, influenciado pela teoria da Cidade Jardim de Ebenezer Howard, empurra os bairros indígenas para além da cintura-verde. Por sua vez, os musseques, que com a ampliação do foral da cidade ficaram como enclaves dentro da cidade, passaram a ser territórios para requalificação e promoção imobiliária ou transformação em espaços verdes, seguindo a recomendação da Carta de Atenas de Corbusier. Essa situação conduziu a demolições e à deslocalização dos moradores para os bairros indígenas ou para os arrabaldes da cidade, engrossando os musseques nelas existentes. Numa segunda fase, já tardia, o Gabinete de Urbanização de Luanda – GUL joga um papel fundamental com introdução das Unidades de Vizinhança desenhados com o propósito de integrar a população negra no centro da cidade considerando o facto do seu fundador e diretor, o arquitecto Fernão Lopes Simões de Carvalho ter implementado a sua visão modernista que, entre outros aspectos, propunha eliminar do desenho da cidade o princípio segregacionista das cidades-satélite. Ainda na óptica de contrariar a composição racista da cidade, propõe também criar “equipamentos colectivos partilhados” e “unidades de vizinhança para 5.000 a 10.000 habitantes, consoante as características sociais e étnicas da população a acomodar” (VIEGAS, 2015, p.64) em oposição aos princípios dos bairros indígenas. Assim, o Plano Director de Luanda de 1962 (CML, 1962), desenvolvido pelo GUL entre 1962 e 1966, demonstra essa intenção traduzida na proposta da criação de onze unidades de vizinhança integradas no foral da cidade. Inspiradas no modelo modernista da Carta de Atenas, essas Unidades de Vizinhança pretendiam apresentar ao mundo um novo modelo de integração entre negros e brancos. Com estas transformações, a cidade de Luanda sedimenta as suas características até ao final do período colonial. Um tecido desenhado na relação centro-periferia deixando como herança no traçado da cidade uma estrutura de intenção metropolitana claramente marcada pela ideia de cidade-jardim, tendo como pólo centralizador a Cidade Histórica e a expansão em estrutura anelar até a transição com novas urbani- p. 191 dades, tais como a Vila de Cacuaco (pólo industrial) e a Vila de Viana (pólo agrícola). Para lá da cintura verde da cidade, estariam concentrados os musseques, proposta decorrente da interpretação colonial da Carta de Atenas. Os bairros negros como problema e não como desafio Com o início do período republicano, marcado pela Independência Nacional e pela Guerra Civil, Luanda passa a ser a capital de um país independente e sede do governo. Logo após a independência um período de estagnação ao crescimento da cidade contrário à explosão da área suburbana da capital que cresceu para mais do triplo da dimensão da cidade desde 1975 (ano da independência) até aos dias de hoje fazendo passar a população da cidade de Luanda de 880.000 habitantes (último censo de 1974, Estudos para o Plano Director da Cidade) para aproximadamente 2.000.000 habitantes no ano de 1990 (MINGAS, 2011, p. 47). A cidade densifica-se, a partir dos musseques, num fenómeno de urbanização sem precedentes. Não obstante a falta de investimento em políticas públicas que alterassem a leitura da cidade, a estrutura da república não só herda um território consolidado, como também utiliza as abordagens ao território anteriores, perpetuando a segregação centro-periferia (com forte pendor racial, centro branco – periferia negra), para uma versão ricos-pobres. Devido a estrutura colonizadora, emergiu um sistema dicotomizador, e com ele se desenvolveram um grande número de oposições paradigmáticas atuais: tradicional versus moderno; oral versus escrito e impresso; comunidades agrárias e costumeiras versus civilização urbana e industrializada; economias de subsistência versus economias altamente produtivas. Na África é geralmente dada muita atenção à evolução implícita e prometida pela passagem dos paradigmas anteriores para os recentes (MUDIMBE, 1980, p.17, tradução dos editores). p. 192 O musseque, enquanto paisagem, é predominante na cidade de Luanda representando os seus 42.786,83 hectares, cerca de 65% do território do espaço urbano. Esta dimensão, é também populacional visto que compreende 5.043.438 cidadãos residentes, cerca de 77% da população urbana total de 6.517.858 habitantes no total. A realidade dos musseques é vista, a nível político-económico, como um “cancro social”, tendo sido, inclusivamente, anunciada a sua eliminação a partir de órgãos 13 governamentais. Esta abordagem política em relação aos musseques vem também expressa no 14 Plano Director Geral de Luanda – PDGL a partir dos Termos de Referência para a sua elaboração. Por outro lado, o PDGL identifica os musseques estruturados como os que correspondem, na sua maioria, aos antigos bairros construídos para indígenas e assimilados das políticas coloniais portuguesas. Aqueles que são classificados como “não-regeneráveis” - os musseques identificados no Plano de Urbanização de Luanda de 1974, bem como, os novos aglomerados urbanos de igual matriz que surgiram no período pós independência. A classificação “não-regeneráveis” refere-se hoje a territórios a serem reconvertidos e a integrar no tecido da cidade a partir de investimentos privados. Os mais expressivos exemplos desse tipo de abordagem são o Plano Director do Município do Cazenga e dos Distritos Urbanos do Sambizanga e Rangel - PDGCSR. No âmbito das Políticas Públicas Habitacionais, a questão dos musseques foi um dos aspectos mais debatidos e questionáveis no processo. Em 2009, o Programa Nacional de Urbanismo e Habitação (PNUH), socialmente conhecido como o programa “Um Milhão de Casas”. Foi o maior marco social da história recente do país com o objectivo principal de assegurar o acesso à habitação segura, adequada e a preço acessível. Embora um dos desafios do programa fosse melhorar as condições de habitabilidade nos bairros ilegais, onde cerca de 80% da população urbana vive (GAMEIRO, 2015), o facto é que os fundamentos da regeneração urbana mantêm-se inalterados. Segundo Gameiro, os maiores desafios a ser resolvidos são (a) regularizar a migração e o desenvolvimento do sistema urbano nacional; (b) melhorar as condições de habitabilidade nos bairros ilegais; (c) dinamizar a participação concorrencial das empresas nacionais nos sectores da construção civil; (d) dinamizar a participação do sector bancário e instituições financeiras nacionais na promoção da habitação social; e (e) institucionalizar o Sistema Financeiro e Fiscal Nacional (IBIDEM, 2015). Concluímos, portanto, que estas políticas públicas, só podem ter como premissa o afastamento da população dos bairros insalubres onde moram e até mesmo sem casa própria, para lá dos limites da cidade. O PNUH começa por lidar com os musseques como áreas de reconversão, equivalentes a uma enfermidade urbana que tinha que ser erradicada, politicamente associada a uma condição sine qua non para aquisição de habitação condigna. A ideia de p. 193 erradicação dos musseques surgido na sequência da criação do PNUH fundamentou um processo de “higienização da cidade” com a demolição de territórios urbanos e deslocalização de cidadãos para a periferia da cidade. Essas periferias, constituiriam os territórios das reservas fundiárias onde seriam construídos os projectos habitacionais promovidos pelo sector público. É impossível não identificar a semelhança, nos procedimentos, entre as políticas públicas coloniais e as angolanas republicanas. Persiste a continuidade do pensamento centro-periferia, bem como a incapacidade para resolver o desafio musseque não se alterou, e a urbanidade eurocêntrica, como referencial de qualidade único e universal, é continuada na narrativa política e social de Angola. A mudança de paradigma com o urbanismo africano A ideia da eliminação dos musseques e consequentemente o impacto que tal acção terá na identidade da cidade de Luanda, motivou o início de estudos específicos sobre estes territórios, de forma a encontrar uma solução alternativa para a sua continuidade no tecido urbano. O Centro de Estudos e Investigação Científica de Arquitectura (CEICA) da Universidade Lusíada de Angola lançou o projecto de investigação denominado Musseques, com os seguintes objectivos: (a) estudo do Espaço-Musseque na História da Cidade de Luanda; (b) criação de uma base de dados de actualização permanente que permita a sua utilização como ferramenta de análise e diagnóstico do desenvolvimento sustentável da cidade de Luanda no contexto geral das Cidades em Angola; (c) compreender o musseque de forma multidimensional, de maneira a que a intervenção no seu espaço não signifique anular a sua identidade; (d) respeitar a diferença morfológica do musseque como um factor de diversidade urbana, e não como um elemento estranho a alienar ou abolir; (e) identificar características arquitectónicas e urbanísticas imprescindíveis à identidade do musseque; e (f) contribuir para a reversão do preconceito associado ao termo musseque (CEICA, 2012). p. 194 O processo de construção dessa solução lançou-nos, no CEICA, numa busca pelo pensamento sobre a cidade, a partir dos seus elementos constituintes, com funda15 mentos africanos, em síntese, o urbanismo africano . Diversas teorizações sobre as cidades africanas indicam que o seu essencialismo reside em quatro aspectos: a crise, o colonialismo, a informalidade e a negritude (ERNSTSON, LAWHON DUMINY, 2014). Segundo Ernston et al. (2013), a crise instala-se através da violência, da informalidade, da pobreza, da mobilidade, da infra-estrutura, entre outros que não garantam a segurança. Um segundo aspecto, está directamente relacionado com o primeiro: é que esse caos é consequência do colonialismo. Em terceiro lugar, o impacto que a “informalidade” tem na formação da cidade africana e no desenvolvimento espacial urbano. Por último, os autores apontam a questão de raça, etnia e cultura continuarem a ser uma influência sub-teorizada, mas extremamente importante, visto que, a construção das cidades africanas é um processo colonial que assentava na exclusão dos negros e mestiços da cidade. Interessa-nos abordar o aspecto da informalidade por ser o que está relacionado com os musseques embora não existam fronteiras rígidas entre eles. Dois olhares sobre a informalidade em África, sintetizam a importância do urbanismo africano. Edgar Pieterse (2011) no seu ensaio intitulado “Rethinking African urbanism from the slum”, considera os bairros pobres irregulares num dos principais dinamizadores do urbanismo africano, corroborando a nossa teoria relativamente aos musseques. A minha tese central é que o futuro do urbanismo africano será moldado pelas lógicas de perspectivas e recursos oficiais que impulsionam investimentos económicos em infra-estrutura em larga escala e geralmente reproduzem as desigualdades predominantes que marcam nossas cidades. Nossas cidades também serão moldadas pelas acções rotineiras das maiorias urbanas que continuam a ser excluídas e ignoradas nos registros analíticos e de risco de actores poderosos. No entanto, à medida que o século se desenrola, e novos tipos de movimentos sociais refinam suas tecnologias sociais, combinados com os benefícios das tecnologias digitais baratas mediadas pela telefonia móvel, promulgam e articulam suas visões espaciais para seus assentamentos - a cidade real - veremos emergir urbanismos incrivelmente dinâmicos, contestados e surpreendentes. Não tenho dúvidas de que a rua, a favela, o depósito de lixo, a praça de táxis, a mesquita e a igreja se tornarão os catalisadores de um urbanismo africano imprevisto. Portanto, vamos prestar atenção em nossa busca para entender melhor os determinantes e factores de bem-estar no coração da cidade - a favela. (PIETERSE, 2011, p. 5, tradução livre da autora) p. 195 Já Pierre Vennetier (1991), num olhar sobre a população que habita os musseques, escreve no seu livro “Les villes d’Afrique tropicale”, o seu relato: […] os novos urbanizados não rompem inteiramente nem com as suas aldeias nem com o seu modo de vida e chegam mesmo a conservar esse modo de vida no novo quadro da sua existência; situação transitória para alguns mas para outros é uma resposta adaptada às suas dificuldades de inserção ou de existência, uma espécie de protecção mínima contra a incerteza do amanhã (VENNETIER, 1991, p. 228, tradução livre da autora). Esta interpretação ajuda-nos a compreender o porquê das cidades africanas terem uma paisagem urbana tão díspar das cidades europeias. Os aspectos sociais jogam um papel fundamental na construção do espaço vivido. Os hábitos e costumes dos cidadãos africanos, na sua grande maioria, contrasta com a urbanidade ocidental. Mas estas significações não são exclusivas das cidades africanas. Paul Goodwin (2007), no seu trabalho “A Manifesto for Black Urbanism” é bastante claro na leitura que faz sobre a importância da realidade negra nas cidades contemporâneas do mundo ocidental, introduzindo o problema da negritude no centro da teorização (GOODWIN, 2011). Embora seja um olhar da diáspora, o importante é o foco na ideia da negritude, conceito esse que vem evoluindo para além da raça, no contexto do mundo ocidental. Profundamente influenciado pela diáspora africana em Londres, Goodwin, fundou o Office for Metropolitan Alternatives (Office/MA) que nasce para investigar como a estética da cultura da diáspora negra inspira e influencia a forma de se criar arquitectura, argumenta que o urbanismo negro é uma ferramenta de diagnóstico para a compreensão do urbanismo no séc. XXI (GOODWIN, 2011). p. 196 O urbanismo negro, historicamente, surge de espaços de luta política, de lugares de luta ou resistência conectados a questões socio-económicas. A visibilidade da negritude nas cidades europeias é uma das invocações de Goodwin, sendo que a referência mais expressiva dessa visibilidade seria a criação da Associação Droit au 16 Logement – DAL em França, que leva à rua o problema da pobreza das comunidades negras, quando famílias de desalojados se sitiaram durante quatro meses no parque da Praça da Reunião em Paris, até garantirem os seus direitos sociais, com o apoio de moradores, associações, sindicatos e partidos políticos. Esta exclusão social que afecta as comunidades negras nas cidades ocidentais tem o seu paralelo nas cidades africanas, mas como herança. Não são os negros que são excluídos, mas sim os mais vulneráveis economicamente, o que se mistura com imigração, periferização, entre outros fenómenos urbanos recorrentes nos processos de modernização das cidades africanas, como exemplo, Luanda. Num olhar aparentemente descontextualizado do essencialismo do urbanismo africano, o factor operacional entre a teoria e a prática remete para a formação e a práxis do arquitecto e urbanista como actores do território. No contexto académico, temos a questão curricular da formação dos arquitectos nas escolas de arquitectura e urbanismo africanas. Segundo Vanessa Watson e Babatunde Agbola (2014) , é necessária uma mudança de paradigma pois, por exemplo num universo de 49 Escolas de Urbanismo na Nigéria, supostamente suficiente para produzir mudanças no espaço urbano nigeriano, os seus produtos não afectaram de forma efectiva ou positiva a morfologia das cidades nigerianas e tal facto pode ser atribuído a três factores: ou os currículos das escolas de urbanismo são falhos; ou os produtos dessas escolas não conseguem colocar em prática o que aprendem; ou ambos. Na visão de Watson e Agbola (2014), é um currículo pedagógico problemático que alimenta a prática profissional equivocada que busca produzir cidades euro-americanas no continente africano (AGBOLA; WATSON, 2014). Assim, assumir com seriedade o processo de transformação das cidades africanas, implica não só repensar a urbanização e o seu essencialismo mas sobretudo criticar o modo como as cidades africanas foram produzidas e atuar com ferramentas capazes de desenvolver o território enquanto preservam as suas narrativas socio-culturais e reverter o discurso da cidade africana como ‘falhada’, ‘sem esperança’, ‘precisando de ajuda’ ou como cidades que simplesmente ‘não funcionam’ (ERNSTSON; LAWHON; DUMINY, 2014). Os musseques na perspectiva do urbanismo africano Dada a complexidade dos musseques e a dificuldade em se encontrar tipos formais e conceitos para sua análises, recorremos a diferentes referências nacionais e internacionais para compreender os seus elementos fundamentais. Enquanto que o autor José Manuel Ressano Garcia Lamas (2011) é pragmático na sua análise referindo que a forma urbana consiste no modo de organização dos elementos morfológicos que definem o espaço urbano (LAMAS, 2011), C. A. Marques (s/d) vai buscar fundamentos ao urbanismo africano pré-colonial para afirmar que recuperar os conceitos urbanos pré-coloniais é p. 197 vital para superar a visão de cidade ocidental, fundada no pensamento da acumulação de capital e especialização de funçõ-es, onde a dimensão cultural do espaço urbano é desconsiderada como instrumento do planeamento urbano (MARQUES, s/d). Considerações finais Este tema, o das cidades africanas, está no topo da tendência dos debates em torno da urbanização do continente e tem acontecido em múltiplos campos disciplinares. O urbanismo africano surge da constatação de que as abordagens urbanísticas aos territórios das cidades africanas têm falhado porque assentam em princípios eurocêntricos, cuja acção redunda na repetição de princípios coloniais de marginalização, exclusão e eliminação. No caso angolano, similar à maioria da realidade urbana africana, o fenómeno de urbanização, anterior à urbanização de génese europeia, é marginalizado e periferizado em função do crescimento da cultura dominante, a portuguesa. A essência das cidades angolanas, desvaneceu-se restando como lugares de memória, plenos de significados. Assim, restam como formas de ocupação e apropriação do espaço urbano, que remetem para uma representação cosmológica do mundo que se transfere de geração em geração com maior representatividade para os musseques. O crescimento racialmente segregado das cidades angolanas, afetou cerca de 98% da população negra, analfabeta e pobre enquanto a minoria branca usufruía dos benefícios que a urbanização garantia. A urbanização de génese europeia assume o centro urbano como um elemento polarizador, criando dois campos de gravitação sobre ele. Um interno, de acesso aos cidadãos brancos, e um externo, de concentração dos negros, permitindo alguma permeabilidade entre estes dois campos, mas com fronteiras visíveis ou invisíveis, tensas e controladas ao máximo. Entretanto, este modelo comprovou ser incapaz de reagir ao crescimento urbano acelerado. Dessa forma, o sistema da segregação agigantou-se e as tentativas de o tentar subverter foram infrutíferas, uma vez que não conseguiram afectar sequer 2% da população negra até ao final do período colonial em 1975. p. 198 A mudança social trazida pela independência nacional não alterou a paisagem urbana. A fronteira nunca se desvaneceu. O advento da liberdade, transferiu a responsabilidade de resolver a crise urbana nacional sem nenhum modelo de intervenção. A consequência foi a reprodução de métodos e pensamentos segregacionistas que acentuaram mais ainda o problema e, ao longo do tempo, a cidade perde sua capacidade de funcionar na plenitude. As circunstâncias de hoje levam-nos a considerar que o desafio da desigualdade social urbana, que se agiganta sem fim previsível, passa por uma mudança de paradigma assente na realidade africana - o urbanismo africano. O essencialismo do urbanismo africano, assente na crise, no colonialismo, na informalidade e na negritude, abriu caminho para múltiplas teorizações e metodologias, capazes de alterar a intervenção dos actores na cidade. No entanto, é de considerar como incontornável a formação desses actores e a superação do preconceito em relação aos territórios negros da cidade. A periferização dos negros para áreas insalubres ou perigosas dominou desde então as operações urbanísticas e ficou de tal maneira enraizado que até aos dias de hoje, ainda não se conseguiu encontrar um formato de inclusão destas duas realidades. A única resposta que se professa sempre com algum temor é o progressivo afastamento destes núcleos ao invés da sua inclusão através de processos de requalificação urbana. A construção de uma cidade africana passa por resolver os contrastes, não eliminá-los. Como a história do continente, no que toca aos seus processos de urbanização não começou com a escravatura e nem terminou com o fim do colonialismo, acreditamos que a solução passe por assumir essa herança de contrastes como um definidor da identidade espacial do espaço, que afinal é vivenciado quotidianamente pelos africanos. Os bairros negros funcionam na cidade como parte da sua cultura plenos de sentido simbólico inscrito na paisagem. São espaços onde se fixou e cristalizou a memória de uma sociedade, de uma nação, locais onde grupos ou povos se identificam ou se reconhecem, possibilitando existir um sentimento de formação da identidade e de pertencimento. p. 199 Referências AGBOLA, B.; WATSON, V. Por que as cidades africanas precisam de um planejamento específico? Archdaily, 23 abr. 2014. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/601255/ por-que-as-cidades-africanas-precisam-de-um-planejamento-especifico. Arquivo consultado em 4 mai. 2022. CML. Plano de Urbanização de Luanda de 1962. Autores: Fernão Lopes Simões de Carvalho. Gabinete de Urbanização de Luanda. Urbanismos de Influência Portuguesa e União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa. Disponível em: https://issuu.com/uccla/docs/urbanismos_catalogo_online/s/11149997. Arquivo consultado em 4 mai. 2022. AGOSTINHO, Y. Luanda cidade colonial: A construção de bairros indígenas, 1922 – 1962. “Fomento ou Controlo”? 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Notas 1 (Nota dos editores [N.E.]): este artigo foi escrito no português de Angola. Os editores decidiram acolher neste dossiê as múltiplas grafias da língua portuguesa, conforme é escrita em cada um dos lusófonos. 2 Angola é um país africano, da região austral, com um território de 1 246 700 km², uma costa marítima de 1.650 km de norte a sul, quatro regiões climáticas entre o tropical e o desértico. Integram a sua população originária nove nações bantu nomeadamente; Ovambo, Gangela, Bakongo, Ambundo, Ovimbundo, Chokwe, Nyaneca-Humbe, Xindonga e Herero e núcleos isolados do povo Khoisan. 3 “Embora no séc. XVII o surto urbano colonial, tivesse maior incidência numa estreita faixa costeira, pode constatar-se pelos exemplos citados, que não se limitaram apenas à criação de novos núcleos. Verificou-se que com o avanço em direção às feiras do interior, ao longo de vias de penetração militar e comerciais que desde então se foram estruturando em resultado de uma parceria entre portugueses e africanos. O campo de ação do tráfico foi atingindo gradualmente regiões cada vez mais distantes do litoral, ao mesmo tempo que tornou necessária a criação de núcleos urbanos que apoiassem o controlo direto das rotas e o abastecimento das caravanas africanas que desciam até ao litoral” (FREUDENTHAL et al., 2013, p. 19). 4 A rede urbana gerada com o tráfico de escravos era constituída por Massangano (1583), Cambambe (1602), Ambaca (1614), Dondo (1625), Cassanje (1625), Golungo (1658) e Pungo Andongo (1671), a norte do Kwanza, e os de Muxima (1589), Benguela Velha (1587), Benguela (1617) e Caconda Velha (1680). Estava inscrita entre Luanda, Benguela, Caconda e Pungo Andongo, com um impacto territorial de aproximadamente 100.000Km2, superior ao território português. 5 Doutrina sobre a colonização das colónias portuguesas, particularmente em Angola, atribuída ao General José Maria Mendes Ribeiro Norton de Matos (1867 – 1955) que foi Governador da Colónia de Angola entre 1912 – 1915 e, posteriormente, Alto Comissário entre 1921 – 1923. 6 A cotação no mercado de escravos dependia das qualificações dos mesmos, a título de exemplo, “no ano de 1862, Maria, uma escrava altamente qualificada que pertencia a Joaquim Luiz Pinto de Andrade, foi resgatada pela Junta Protetora de Escravos e Libertos pelo valor de 100.000 réis. O alto preço pago por Maria indica como a aprendizagem de um ofício podia agregar valor ao escravo” (OLIVEIRA, 2018). p. 203 7 No século XX, a administração colonial executou quatro censos: 1940 (3.738.010 hab.), 1950 (4.145.266 hab.), 1960 (4.840.719 hab.) e 1970 (5.673.064 hab.) (ANTUNES, 2014). 8 Terminologia constante na Carta de Luanda, 1861. Registo B/18 cat. 726, Sociedade de Geografia de Lisboa. 9 Primeira edição ao abrigo do Diploma n.º 2799, de 9 de Maio de 1956 e a segunda edição no ano de 1957. 10 O Gabinete de Urbanização de Luanda, integrado na estrutura da Câmara Municipal de Luanda, foi criado em 1959 após a extinção do Gabinete de Urbanização do Ultramar (19511957), sendo que este substituiu o Gabinete de Urbanização Colonial (1945-1951). 11 O processo de “limpeza urbana’’ é notório quando se comparam a planta de 1862 com a de 1900 percebendo-se todas as alterações feitas sendo notória os vazios, espaços obsoletos e outros que descaracterizam o espaço urbano. 12 Vide Artigo 6º, Capítulo Único, Título II ‘Dos cidadãos Portugueses’, Constituição Política da Monarquia Portuguesa, Diário do Governo, de 24 de Abril de 1838, n.° 98 13 A perspectiva de eliminação, numa visão estatal, pode ser analisada em: “Como garantir habitação digna a toda a população? R- O programa do Governo prevê a entrega e venda à população de habitação condigna, com água, luz e saneamento básico. A primeira fase para retirar pessoas dos musseques onde vivem sem essas condições, acaba em 2012, mas não podemos ter esse ano como término, porque estamos sempre a crescer, porque cada vez mais precisamos de habitação. O nosso objectivo é acabar com os musseques. Até 2012, queremos ter um milhão de habitações, mas o nosso défice habitacional ronda os dois milhões. Estes são os dados de hoje. Mas amanhã a população aumenta e temos de continuar o programa. Estamos a trabalhar nos planos directores que vão dar-nos a orientação do crescimento das várias cidades. Estamos trabalhar para que até o final do ano todas as províncias, principalmente as capitais, tenham os seus planos directores realizados” (FERREIRA,2010). 14 p. 204 Plano Director Geral de Luanda (PDGL) ou Plano Director Geral Metropolitano de Luanda (PDGML), nome comercial, é um Plano Urbanístico aprovado pelo Despacho Presidencial n.º 37/18, de 2 de Abril (DR.2018), cuja coordenação e implementação são da responsabilidade do titular da pasta do Ministério do Ordenamento do Território e Habitação (MINOTH) coadjuvado pelo titular do Governo da Província de Luanda (GPL) e assistido tecnicamente pela URBINVEST. 15 É importante reconhecer que, embora este artigo procure abordar o urbanismo africano, a literatura de apoio é restrita a alguns autores africanos e também da diáspora mas com um foco africano no seu trabalho. Este aspecto condiciona o facto de até que ponto é possível falar ou não, de forma abrangente, de um urbanismo africano embora as cidades africanas partilhem elementos comuns entre si. 16 Droit Au Logement é uma associação de luta colectiva em defesa dos moradores em situação precária e dos moradores em situação de rua, criada em maio de 1990, em consequência da expulsão de 48 famílias, a maioria crianças, que moravam em dois prédios ocupados no vigésimo distrito de Paris. Disponível em: http://base.d-p-h.info/fr/fiches/dph/ fiche-dph-6915.html. Acesso em: 30 maio 2022. p. 205 O desenvolvimento urbano do apartheid Malindi Neluheni South African College of Aeronautics and Technology (SACAT), Centurion, África do Sul TRADUÇÃO: Hugo Manuel Abreu Tomás HSBC, Londres Céline Veríssimo ¡DALE! / UFBA, MALOCA / UNILA, PPGPPD e CAU / UNILA, DAMG / UPT O desenvolvimento urbano do apartheid Resumo Dedicado aos efeitos do regime do apartheid em espaços urbanos racialmente segregados, este texto faz parte do memorável livro “White papers black marks: architecture, race, culture” de 2000, organizado pela arquiteta Ganesa-Escocesa Lesley Lokko. O artigo parte de uma análise crítica sobre a segregação racial e espacial do apartheid, com a duplicação de serviços e equipamentos: correios, escolas, mercados, etc. com sinais sobre quem podia utilizar o espaço e onde. Publicado poucos anos depois da abolição do apartheid, com a eleição de Nelson Mandela em 10 de maio de 1994, Malindi Neluheni mostra-nos que o espaço foi a ferramenta mais eficaz do regime do apartheid e indica o “espaço do descontentamento” como seu legado no longo caminho por fazer, para uma efectiva reconciliação entre brancos e negros na África do Sul. Para tal, o texto analisa dois estudos de caso, um na África do Sul e outro nos EUA, a partir dos quais se elabora uma proposta para um novo urbanismo na “nova” África do Sul, dando particular enfoque na educação em geral e na educação em arquitetura e urbanismo em particular. (Por não haver resumo no texto original, este foi feito pelos editores). Palavras-chave: desenvolvimento urbano, apartheid, segregação racial espacial, urbanismo africano, África do Sul, EUA. El desarollo urbano del apartheid Resumen Dedicado a los efectos del régimen del apartheid en los espacios urbanos racialmente segregados, este texto forma parte del memorable libro de 2000 “White papers black marks: architecture, race, culture”, organizado por la arquitecta escocés-ghanesa Lesley Lokko. El artículo parte de un análisis crítico de la segregación racial y espacial del apartheid, con la duplicación de servicios y equipamientos: correos, escuelas, mercados, etc. con letreros sobre quién podría usar el espacio y dónde. Publicado pocos años después de la abolición del apartheid, con la elección de Nelson Mandela el 10 de mayo de 1994, Malindi Neluheni nos muestra que el espacio fue la herramienta más eficaz del régimen del apartheid e indica el “espacio del descontento” como su legado a largo plazo. por recorrer, hacia una reconciliación efectiva entre blancos y negros en Sudáfrica. Para ello, el texto analiza dos estudios de caso, uno en Africa del Sur y otro en EUA., a partir de los cuales se elabora una propuesta de nuevo urbanismo en la “nueva” Sudáfrica, con especial atención a la educación en general y a la formación en arquitectura y urbanismo en particular.(Al no existir un resumen en el texto original, éste fue realizado por los editores). Palabras clave: desarrollo urbano, apartheid, segregación racial espacial, urbanismo africano, África del Sur, EUA. Apartheid Urban Development Abtract Dedicated to the effects of the apartheid regime on racially segregated urban spaces, this text is part of the memorable 2000 book “White papers black marks: architecture, race, culture”, organized by the ScottishGhanaian architect Lesley Lokko. The paper starts from a critical analysis of the racial and spatial segregation of apartheid, with the duplication of services and equipment: post offices, schools, markets, etc. with signs about who could use the space and where. Published a few years after the abolition of apartheid, with the election of Nelson Mandela on May 10, 1994, Malindi Neluheni shows us that space was the most effective tool of the apartheid regime and indicates the “space of discontent” as its legacy long way to go, towards an effective reconciliation between whites and blacks in South Africa. To this end, the text analyzes two case studies, one in South Africa and the other in the USA, from which a proposal for a new urbanism in the “new” South Africa is elaborated, with a particular focus on education in general and on education in architecture and urbanism in particular. (Since there is no abstract in the original text, this was done by the editors). Keywords: urban development, apartheid, spatial racial segregation, African urbanism, South Africa, USA. a África do Sul pós-apartheid, escrever tem-se tornado uma questão cada vez mais problemática, particularmente na escrita académica, onde uma certa abertura e liberdade de expressão, crucial para a reconstrução de certos campos de investigação, têm sido (erradamente) assumidos. Historicamente, muito se tem escrito sobre a vida no apartheid, embora isto tenha sido feito predominantemente de fora da África do Sul, em vez de a partir de dentro, em grande medida devido à verdadeiramente real ameaça de acusação e perseguição patrocinadas pelo Estado. Contudo, o aspeto mais controverso da questão da escrita é (mais uma vez) racial: é “melhor” para não-negros investigar e escrever sobre a situação dos negros, do que os negros escreverem para e sobre si mesmos. Ironicamente, aqueles que não levantaram um dedo, durante as várias décadas de opressão, tornaram-se subitamente disponíveis para oferecer soluções para os numerosos problemas da África do Sul, particularmente, os que afetam o ambiente urbano. Aqueles que são os sujeitos das novas iniciativas de planeamento urbano na África do Sul não têm, eles próprios, acesso algum à informação que é, em última análise, a “coisa” das suas vidas quotidianas. Como disse Sartre, “os explorados experienciam a exploração como a sua realidade” (SARTRE, 1988, p. 137). N n. 1 p. 206-231 2022 ISSN: 2965-4904 Na prática de planeamento na África do Sul, é mais fácil ganhar acesso à bem guardada disciplina, através da consultadoria (devido a legislação governamental que especifica oportunidades para pessoas anteriormente em desvantagem, através da subcontratação e tutoria), mas na arena académica a situação é bastante diferente. Pode ser mais fácil entrar em instituições (especialmente as universidades brancas segregadas, com as melhores instalações e qualidade de ensino de topo) do que foi, por exemplo, há cinco anos atrás, mas proporcionalmente é mais difícil produzir trabalho académico “consistente”. Mas mais importante do que estas preocupações, às quais voltarei, é uma muito maior e mais fundamental dificuldade. Um dos mais urgentes problemas dentro da profissão de planeamento urbano na África do Sul é o desejo que certos segmentos da sociedade se “conforme’’. À medida que a profissão se abre para os negros (o segmento em causa), estes são atraídos direta e imediatamente a um turbilhão de teorias, filosofias e princípios que estão simultaneamente fora do alcance e dessincronizados das suas próprias experiências pessoais. Conforme se aplica pressão aos “não-brancos”, para se conformarem a esse estilo de vida, o maior desafio que a profissão de planeamento urbano enfrenta na África do Sul são os padrões - especificamente, “os padrões de quem”? Currículo e conteúdo Na África do Sul, o ensino de planeamento urbano é pensado com ligações próximas às leis operacionais que foram sendo implementadas ao longo de décadas. Os currículos e conteúdos dos cursos que se vão fazendo, são definitivamente determinados por raça, classe e género. Nos anos 1980, quem fosse não-branco só seria permitido acesso a uma instituição de ensino superior se estivesse dentro da cota definida pelo governo. Existiam apenas alguns lugares reservados para estudantes não-brancos nas instituições “liberais” que ofereciam um currículo em planeamento, mais concretamente, as universidades de Witwatersrand, Natal e Cidade do Cabo. Se uma pessoa negra conseguisse de alguma forma obter acesso a uma instituição, ainda precisaria de uma autorização especial do Ministério da Educação do governo Nacionalista. Frequentemente, isto implicava sucessivas respostas negativas e a recomendação 1 que “estaria melhor colocado num Technikon , do que numa universidade”. As instituições que ofereciam cursos em planeamento urbano e arquitetura, para além das notas, normalmente queriam ver portfólios de trabalho anterior, competências demonstradas e, no caso de pós-graduados, um projeto formal ou uma proposta de investigação, antes da admissão para um programa de pós-graduação. Escusado será dizer que, mais de metade dos candidatos negros tinham frequentado escolas 2 3 locais nas suas township ou nas “pátrias” , nas quais nunca tinham ouvido falar ou sequer visto um portfólio ou uma mesa de desenho. Na maioria das situações, para os estudantes negros com aspirações de entrada em instituições terciárias, é difícil receber correio normal devido às fracas instalações de correio nas áreas periféricas e completamente impossível aceder ao material de estudo para produzir uma proposta. p. 211 p. 212 Deste modo, a profissão de planeamento urbano nas instituições de ensino superior continua totalmente fora do alcance da maioria dos estudantes negros - é impossível produzir trabalho academicamente desafiante nestas condições. Como mulher negra que, de alguma forma, conseguiu lidar com estes entraves, penso sobre algumas conversas que tive em criança com amigos. Recordo-me que alguns deles tinham uma enorme vontade de ser uma “pessoa branca’’ quando lhes perguntavam o que queriam ser quando crescessem. Hoje, contudo, o maior entrave não só é conseguir acesso a estas instituições, como também o financiamento, uma vez que frequentemente as bolsas de estudo desconsideram o contexto de cada estudante. Muitas vezes, a educação de pouca qualidade que os estudantes negros receberam, significa que ser um estudante de topo numa escola ou universidade negra (onde mais de metade dos professores é branca), é-se considerado “bom” se obtiver 50% na sua primeira tentativa de entrada em qualquer curso, e “muito bom” se obtiver uma nota acima dos 60%. Nas instituições brancas são aplicadas regras diferentes. Um 60% não é certamente a melhor nota disponível. Esta situação também significa que, quando financiamento e bolsas de estudo são atribuídas, é exigido aos candidatos “notas de topo” - isto sempre significou que negros raramente se qualificam para fundos administrados por universidades. Existe uma zona “cinzenta” decepcionantemente difícil que ainda persiste na profissão. A maioria das pessoas que sempre conheceram e escreveram amplamente sobre o tipo de planeamento que seria indicado para pessoas negras na África do Sul, na sua maior parte, viveram toda a sua vida em subúrbios brancos, tiveram acesso à melhor educação, escolheram onde viver e, crucialmente, tinham “controlo” político sobre as suas vidas através das urnas de voto. O seu curioso relacionamento unilateral com a vida, particularmente a vida urbana na África do Sul, também os tristemente qualificava (e somente eles) a escrever sobre as vidas dos negros nas suas “pátrias” e township do seu próprio país. Os conceitos e teorias utilizados nessas instâncias foram obviamente simuladas e imaginadas - erradamente enunciadas, pois não é de todo possível que pudessem ter “conhecido” a vida urbana em casas tipo caixa de fósforos no Soweto, caminhar em ruas escuras e poeirentas às 3 da manhã para apanhar um autocarro ou comboio para ir trabalhar na vila mais próxima, a 60 quilómetros de distância. Para milhões dos seus “compatriotas” Sul-Africanos, isto muitas vezes implicava deixar a família na aldeia remota para batalhar o sustento nas minas de Joanesburgo, passando um ano inteiro (e por vezes mais) longe das suas famílias em quartos individuais de albergues esquálidos, regressando a casa ao que Govan Mbeki descreveu como “campos de reprodução, onde homens procriam, nestas cabanas redondas, a próxima geração de trabalhadores baratos para os brancos” (SARTRE. In GORDIMER, 1988, p. 224). É um fato comum que estudantes negros, ou não-brancos, experienciem mais problemas nas escolas de planeamento do que as suas contrapartes brancas: são muitas vezes retratados como os piores executantes, e parecem frequentemente apenas arranhar as matérias para finalizar a qualificação. Os estudantes negros, que são “muito inteligentes, mas mal preparados” na maioria das tarefas vivem uma estranha deslocalização - escrevendo e aprendendo sobre Newlands, Houghton e Sandton Square (o “arquétipo” das condições urbanas Sul-Africanas, aceitáveis para um discurso Europeu) em vez de reconhecer o outro lado do debate sobre planeamento - os cenários Africanos tradicionais que fazem parte do seu ambiente quotidiano e do seu apego sentimental. Avanço e transição profissional Um dos maiores problemas na profissão de planeamento na África do Sul pode ser descrito como o desejo de um certo grupo (negros) em se conformar, decorrente de ambos os lados da profissão - os promissores urbanistas negros e os seus bem-estabelecidos homólogos. À medida que a profissão se abre lentamente aos negros, estes são atraídos diretamente aos princípios e pontos de vista bem estabelecidos e profundamente enraizados, normalmente fora de alcance nas suas experiências pessoais. Mas os negros têm sempre de se conformar aos brancos. Nunca foi considerado como crítico, que a profissão, predominantemente branca, tenha de começar a adaptar-se às percepções, história e valores da maioria da população. Como é de esperar, há dois anos atrás, anúncios de emprego de empresas de planeamento (brancas) ainda aplicavam a ressalva de que “é um requisito para a vaga, ter afiliação ao South African Institute of Town and Regional Planners”. Este instituto é uma entidade profissional, presidida e operada por homens brancos que, historicamente, não viam nenhuma razão em abrir a profissão para incluir os poucos urbanistas negros emergentes, respondendo às necessidades mutáveis do país, mas ainda utilizam esta ressalva como uma barreira ao emprego de não-brancos. Em grande parte, o maior desafio da profissão de planeamento Sul-Africana remete-se aos padrões, mais especificamente, os padrões de quem? As empresas estão-se rapidamente a reverter para uma p. 213 cultura ‘Africana’ para retratar uma melhor imagem de negócio. Os quadros pintados pelas mulheres Ndebele neste avião a jato da British Airways podem também ser utilizados em edifícios, que é onde realmente são feitos na cultura Ndebele (THE STAR, 11 junho, 1997). Se as coloridas casas Ndebele podem ser exibidas em Paris e nos Países Baixos, porque será “racista” sugerir que a África do Sul afasta-se da concepção de passeios de alta densidade e testa conceitos dos célebres aspectos lapa e kgoro, tão inerentes ao estilo de vida Africano? É irónico que o muito comum desenvolvimento de conjuntos de muros fechados e espaços de encontro comuns são liberalmente aplicados no contexto urbano Ocidental, sem que se reconheça as suas origens, que se encontram nas propriedades e domicílios Africanos, com base em fortes relações de parentesco e subsistência comunitária. Outras formas de olhar para os padrões de planeamento e design No mundo Ocidental, a percepção de umas férias em África é normalmente um safari, explorando o mundo selvagem da África Austral, um resort exótico nas margens de um lago no Malawi - ou até uma visita ao território Masai do Quénia. A vida e artefactos locais são importantes para o turista ocasional que compra dos locais, bens que eles trabalham para produzir com escassos recursos. Num sentido económico, o ecoturismo traz receita às pessoas locais, mas é triste ver como as práticas locais são frequentemente consideradas primitivas, ou nativas, e desvalorizadas como sem qualquer valor. p. 214 No caso da África do Sul, o muito necessário planeamento para prover habitação, está a ser feito num vácuo semelhante, sem levantamentos ou valorizações básicas das demandas locais, com as pessoas locais, como participantes ativos. Aqueles para quem o planeamento está a ser feito, são consultados apenas em termos de contratos, mão de obra e subcontratação. Tudo isto está muito bem, dado que as pessoas estão geralmente desesperadas por habitação, e há uma assumida necessidade de consulta, mas aí reside o perigo de que dentro de dez anos, a sociedade olhará para trás e perceberá que, em muitos aspetos, os erros do passado foram simplesmente repetidos. O governo Nacionalista fez o design, planeou e forneceu as casas de quatro quartos nas township (muitas vezes referidas como “caixas de fósforos” pelos moradores) e albergues para alojar trabalhadores migrantes. O Soweto, que é uma township com mais de 4 milhões de pessoas, caracteriza-se apenas pela proliferação de “caixas de fósforo”, ausência de árvores e o fumo baixo que permanece sobre a township, dia e noite, dos milhões de fogões a lenha. Fila após fila de cabines de tijolo, intermutáveis, idênticas em formação militar sem quaisquer pontos de referência arquitetónica para a comunidade - adicione-se ou subtraia-se uma fila aqui ou ali, nada seria notado. Reconheço o modelo imediatamente: Soweto, o paradigma sombrio das township negras segregadas na África do Sul. Com toda a experiência do mundo em humanização da habitação de interesse social à disposição dos seus urbanistas, (Sul-Africanos) estão a passar das suas cabanas de colmo redondas para isto (SARTRE. In. GORDIMER, 1988, p. 238). Mas longe de ser uma massa homogénea, indiferenciável, aqueles que vivem nas township deste tipo, têm necessidades e aspirações extremamente diferentes. Por exemplo, as características dos utilizadores de transportes públicos incluem baixa propriedade de automóveis, baixa renda, casas em áreas residenciais de baixa densidade - frequentemente arrendatários, em vez de proprietários, vivendo longe dos centros das cidades e com baixo estatuto profissional. Na África do Sul, este segmento da população é sempre e apenas, negro. Para complicar mais ainda, seguindo o princípio colonial “dividir para reinar”, durante a era do apartheid, certos grupos étnicos foram incentivados a menosprezar outros. Escusado será dizer, que o seu perfil de grupo ainda mostra certos traços culturais que são bastante diferentes dos Sul-Africanos brancos (Europeus), mas que não fazem deles menos “Africanos” apesar de serem predominantemente residentes urbanos, e não pobres camponeses. As características da outra secção (branca) da população são, a propriedade dos automóveis, os rendimentos de classe média-alta, a residência em áreas de alta densidade, áreas residenciais suburbanas, serem proprietários e terem alto estatuto profissional. Num ambiente dinâmico “normal’’, o tradicional persistente, assim como elementos novos e emergentes, têm de ser identificados. O comportamento histórico e ambiental torna-se importante na investigação para definir uma base de generalização. Na África do Sul, pelas razões acima delineadas, isto é altamente problemático. Da mesma forma, identificar os conflitos por detrás do planeamento e do design, ajudaria a lançar uma luz no que está a acontecer, quais são os problemas e como melhoramentos podem vir a ser feitos. p. 215 Textos de investigação urbana na África do Sul No que respeita o planeamento e o design de cidades na África do Sul, a maioria das publicações tem pairado entre as políticas do apartheid (nas quais as township foram estabelecidas na periferia das cidades brancas) e textos de autores brancos, liberais (ver abaixo) que idealizam cidades “como deve ser” para acomodar negros. Dentro do escopo e quadro de referência desta proposta, autores liberais são vistos como aqueles que reconhecem as injustiças impostas aos negros pelo governo do apartheid, particularmente sobre os pontos de vista abaixo delineados. A escrita de investigação urbana na África do Sul é claramente explicada por Hendler (1991). Este é o período entre 1922 e 1970. A ideologia por detrás do planeamento urbano e rural acompanhou mais ou menos as linhas ideológicas do Partido Nacionalista: os negros eram menos desenvolvidos e os brancos decidiam por eles. Os negros eram vistos como sendo intelectual, espiritual e fisicamente responsáveis pelos seus próprios problemas, particularmente em termos de crescimento populacional. Os currículos dos cursos ministrados nas universidades suportavam esta filosofia. Contudo, o período entre 1970 e 1990, trouxe uma alternativa à teoria dominante. Este foi o período no qual o argumento era apologista das forças de mercado na economia urbana e da remoção de barreiras à urbanização. Durante o período de instabilidade no país, 1976-1990, uma serie de académicos escreveu sobre a economia política da África do Sul, sugerindo como, face à revolta dos negros ter chegado a um ponto sem retorno, o governo poderia, e deveria, implementar certas estratégias de reforma. Durante este período, dezenas de negros estavam preparados para morrer em detenções, capturas, tiroteios e sucessivos estados de emergência, do que viverem sufocados pelas terríveis condições do apartheid. p. 216 Hendler (1991) afirma que académicos liberais escreveram a postura controversa do Partido Nacional enquanto outros, tais como Dewar (1991) e a Urban Foundation, expuseram a política social sem analisar a razão pela qual os negros eram (são) pobres. Por outro lado, Maasdorp (1983), defendia fatores para reprodução económica positiva através do trabalho nas áreas urbanas. Estes autores também expuseram a possibilidade de desafiar os processos, as leis e os regulamentos existentes, como por exemplo, Nattrass e Ardington (1990) e Tomlinson (1990). Este grupo de escritores tentou compreender o problema da violência nas township e criticaram a própria ideologia que levou à criação das township. Esta categoria de autores defendiam a democracia e o não-racialismo como soluções para os problemas urbanos. Este é o período no qual os ambientes urbanos são estudados fora do realpolitik - o lugar do humano no seu ambiente, pela quase primeira vez no discurso do planeamento na África do Sul, é visto como importante para a sociedade. Os argumentos de Hendler mostram que a habitação e a economia têm tido o seu lugar na economia espacial Sul-Africana, mas o design e a implementação de ideias das comunidades nas cidades, como entidades culturais, não tinham sido exploradas. Até agora, a história cultural e espacial da urbanização na África do Sul eram vistas como insatisfatórias: tendências de planeamento tinham sido determinadas pela política e por políticas do governo de então. Durante este mesmo período, alguns autores (e.g. Muller, 1991) apelaram à consciência ao exporem a necessidade de não apenas envolver a população negra não representada, como também por questionarem os direitos morais e éticos dos decisores durante a era do apartheid. No seu trabalho, o autor sublinha a necessidade de ver essa participação no planeamento de ambientes urbanos, a ser estendida à maioria negra que eram (são) desfavorecidos, para permitir e incluir o auto-interesse, a auto-expressão, a manifestação de preferências e a tomada de decisões. Olivier (1991) observa a situação não como um político, mas como um urbanista. Ele revive o sofrimento da maioria urbana, pobre e negra, demonstrando como a disputa por serviços e acesso ao emprego trouxe descontentamento e frustração. Ele expõe ainda mais os contrastes na urbanização “branca’’, oposta à “negra”, que resultou em tensões raciais e ressentimento dos poucos privilegiados pela maioria destituída. Um ponto de partida na consideração dos desejos e aspirações dos negros (ainda que como observadores e não participantes na implementação) no planeamento e no design dos seus ambientes urbanos, pode ser visto nas obras de Welch (1977). Um outro estudo pioneiro, que explora a forma como os residentes percepcionam o seu ambiente construído, foi feito por Moller e Schlemmer (1980), num levantamento sobre as necessidades e aspirações dos negros, no que respeita a habitação. A partir desse estudo ficou evidente que a qualidade de vida pode ser melhorada através de outros aspetos, tais como: medidas sociais, ambientais e de segurança pública. Noutro levantamento semelhante, pelos mesmos autores, observaram a performance dos distritos financeiros do centro da cidade de Durban e até que ponto os negros utilizavam esses serviços. Este levantamento estabelece uma base para a percepção dos residentes sobre o seu ambiente, mas também aqui, tal como no caso das obras previamente citadas, o aspeto cultural da população negra não é levado em conta. Até um certo grau, este estudo explora a interação social que ocorre nas áreas residenciais e a necessidade do design dos ambientes urbanos em atender a esta questão. p. 217 Tendo estado envolvidos num projeto para a provisão de habitação à população de Mangaung, Hardie e Hart, (1986) chegou a uma conclusão óbvia sobre a necessidade das comunidades contribuírem para o design das casas e ruas, e a necessidade de incluir as suas preferências no que respeita à futura expansão da sua cidade. Num estudo muito mais alargado de investigação em design ambiental e comportamental que lida com cidades do Terceiro Mundo, Chokor (1991) afirma que a disponibilidade de trabalho se tinha sempre concentrado nos ambientes urbanos Europeus e Norte Americanos e, como resultado, os métodos e técnicas de investigação para fornecer informação sobre os ambientes urbanos no Terceiro Mundo não estão disponíveis. Lang (1989), no seu estudo sobre as implicações do design de habitação na Índia, demonstra como o design não foi capaz de satisfazer as necessidades culturais. Ele critica a falta de uma explicação significativa na forma das casas e de como aspetos importantes das vidas das pessoas são desconsiderados quando se faz o design das habitações. No seu ponto de vista, algumas das características indispensáveis de uma comunidade que têm de ser atendidas através do design são: “espaços privados abertos, sistemas de transporte, instalações comunitárias, necessidades das mulheres, abluções, fachadas e traseiras, clima, uso cultural de materiais de construção, estética, modelos de reprodução económica, integração e segregação de atividades e necessidades de estilo de vida” (LANG, 1989, p. 387). Apesar deste estudo se focar especificamente na Índia, as conclusões obtidas por Lang são úteis para qualquer pessoa que estude um ambiente construído pós-colonial (definição à qual a África do Sul, em parte, pertence). Tendo investigado largamente em Estudos sobre Homem-Ambiente, Amos Rapoport (1969, 1976, 1990) afirma que não existe um campo literário especificamente pensado para a avaliação de cidades do Terceiro Mundo, dadas as específicas culturas e estilos de vida diferentes da sua população. p. 218 Muitas das diferenças fundamentais das sociedades tradicionais e modernas são conhecidas. Ligada a estas características sociais, argumenta-se, estão as respectivas arquiteturas. Na África do Sul, a arquitetura “tradicional” é geralmente associada com Africanos e é consequentemente encarada como tendo origem num mundo exótico, “outro” mundo de “tribos’’ e grupos étnicos. Mais especificamente, é muitas vezes entendida como assente num conjunto fixo de tradições “primitivas”, cujas raízes estão imbuídas nas profundezas do tempo histórico. Ao longo dos anos, a subjugação sistemática e contínua de perspectivas e percepções locais e “tradicionais”, levou à passividade e impotência vista na ideologia resultante e, em particular, no espaço físico. A arquitetura “vernacular’’ é obtida através da aculturação: nada deve ao design consciente, mas é um comando instintivo do conhecimento sobre materiais específicos, que o arquiteto ou designer formado, devido à sua sofisticação, é incapaz de igualar. Existem vários casos de áreas de parco design nas township da África do Sul, que, devido à inadequação inerente ou a falta de um oponente eloquente (dada a situação política que dura há anos), não passaram despercebidos - mas têm sido considerados como um compromisso doloroso, mas necessário. As township foram vistas como a única maneira de “permitir” uma vida e oportunidades de emprego aos negros, mais perto das então segregadas cidades. Os albergues, sem espaço exterior privado, muitas vezes em arranha-céus, cujo design foi feito para alojar imigrantes rurais, acostumados aos vastos espaços exteriores como modo de vida, casas de cidade e prédios habitacionais foram projetados por homens brancos de classe média, como quartos ou alojamento para solteiros, estão agora a ser arrendadas a famílias negras de seis ou mais pessoas. Recentemente, foi introduzido um esquema de subsídios de 15,000 rands que fornece casa de dois quartos a pobres na África do Sul. Os muitos problemas sociais - crime, em particular - podem muito bem ser direcionados aos arquitetos, designers e urbanistas das cidades sul-africanas, especialmente pela sua falha em responder aos muitos problemas sociais vivenciados pela maioria dos usuários destes espaços (pobreza, analfabetismo, desemprego, e mais importante, a falta de respeito pelos seus próprios valores culturais). No entanto, isto não desconsidera que existiram algumas intervenções positivas no design de espaços para servir as necessidades dos usuários. Estas iniciativas serão discutidas noutro local, mas as falhas acima expostas são importantes para guiar futuros urbanistas e arquitetos a considerar os bairros e espaços da nova África do Sul. O Group Areas Act (embora agora dissolvido) serve de lembrete permanente daquilo que os nossos espaços urbanos continuarão a ser por um considerável período de tempo. Este fato é a base mais concreta para se perceber o passado urbano da África do Sul. Espaços públicos como correios, delegacia da Polícia e estações de comboios, foram construídos de uma forma, em que a completa duplicação de serviços era necessária para servir o apartheid, com sinais e marcações indicando quem podia utilizar o espaço, e onde. Mesmo com a aparente inclusão política que se pode encontrar hoje em dia na África do Sul, os centros das cidades, outrora domínio quase exclusivo dos negros, particularmente depois do horário de expediente, estão agora a esvaziar-se, assim como as township onde os negros que se podem dar ao luxo de pagar, fazem-no. Por outro lado, em nenhum dos casos, os brancos, ou aqueles das áreas “de côr’’ e “Indianas”, se alguma vez se mudaram para as township. Isto aumenta p. 219 ainda mais a brecha na reconciliação, porque “outras” populações ainda consideram as township como insalubres, degradadas, ocupadas por vagabundos, cheias de assaltos e a necessidade de ter cuidado e desconfiar, a todo o momento. Isto perpetua o abismo criado durante os anos do apartheid. Para os milhões de negros que sobreviveram o pesadelo urbano com força, determinação e ubuntu - a bondade que só pode ser percebida dentro do contexto de comunidades culturais fortes e parentesco - esta deserção e a recente indiferença pelas autoridades ao seu compromisso, é praticamente a última gota de água. O espaço como uma entidade para o descontentamento Num esforço em fazer o design de ambientes construídos de uma forma integrada e que supra as necessidades da nova população “mista” da África do Sul, para que possa legitimamente ser referida como ambientes “híbridos”, parece ser a solução mais aceitável. É evidente que, partindo do passado histórico da África do Sul em que os padrões que foram utilizados para o design da cidade eram políticos e excludentes por natureza. A maior preocupação de momento, como as diferenças políticas estão a ser resolvidas na mesa de negociação, é qual a melhor maneira de modificar esses mesmos espaços urbanos e incutir-lhes o espírito de reconciliação. Com a última e urgente necessidade de desenvolvimento de habitação, está a ser considerada a alternativa de alta densidade/passeios de baixa altura. Como não houve um levantamento nacional para este efeito, esta é ainda uma área de grande incerteza. As questões relacionadas com restrições culturais e de aceitação, em particular, são uma maior preocupação. p. 220 A teoria e os argumentos de suporte inclinam-se fortemente para aquilo que se tornou a retórica diária em termos de urbanização para negros - desde o melhoramento dos assentamentos informais, a provisão de infraestruturas básicas à reestruturação total de albergues para “comunidades”. Contudo, o planeamento de ambientes construídos deve estender-se além da provisão básica de abrigo, escolas e instalações de serviços básicos de saúde. O espaço urbano Sul-Africano, tal como existe hoje, é resultante de diferentes e conflituosas ideias e momentos, dos vários processos de tomada de decisões. Os processos históricos, com as suas principais influências políticas de um determinado período, cada um deles deixou marcas nas formas e nos processos de urbanização. Do colonialismo ao apartheid, até o corrente período de transição, foram tomadas decisões determinantes sobre o aspeto e comportamento das cidades Sul-Africanas. É importante compreender que os argumentos apresentados neste texto, e de fato, na sociedade Sul-Africana como um todo, não são sobre “raça”, classe, cultura ou políticas predominantes. Atualmente, as pessoas “olham” para a cultura e identificam-se com ela de acordo com o “estado de espírito’’ mais recente - a África do Sul é um mundo em perpétua mutação. A forma imposta pelo ambiente construído passou a ser identificada com as circunstâncias do nosso país. Neste contexto, é importante ver cultura, identidade e problemas sociais contemporâneos como um “sistema”, um conjunto holístico destas diversas influências (raça, classe, género, etc.). Um problema importante a ser considerado para se perceber a urbanização, o uso da terra e a sua aquisição, é o sistema de propriedade da terra. Tradicionalmente, a terra era (e em alguns sítios ainda é) pertencente a um chefe, que depois a distribuía aos membros da comunidade. Com a vinda do colonialismo, este cenário foi radicalmente alterado pela desapropriação da terra dos povos indígenas e todo o sistema de título de propriedade foi formalizado segundo as tradições Ocidentais. Neste processo, áreas urbanas foram sujeitas a restrições de uso do solo, diretamente decorrentes desta história e como resultado, ocorreu uma densa compactação nas township, com as pessoas a serem literalmente espremidas em casas minúsculas e em lotes de terreno cada vez mais pequenos. Tradicionalmente, as pessoas teriam um lote de terra, propriedade de um clã com fortes e amplas ligações familiares. O sistema de posse da terra, nos ambientes construídos, está assim diametralmente oposta ao estilo de vida tradicional de coexistência comunal. Esta é uma história que tem de ser considerada. Do mesmo modo, é fundamental que, por muito que se idealize cenários tradicionais e se tente forçar os assentamentos urbanos a acomodarem-se em conformidade, existem restrições espaciais que devem ser consideradas. Como os negros foram excluídos em termos sociológicos e culturais do processo de urbanização na África do Sul, surge agora um problema de “identidade” com o atual ambiente construído. Para que se possa fazer o design de paisagens urbanas apropriadas, que sejam representativas dos seus habitantes, estes aspectos até agora ignorados, precisam ser integrados nos designs dos novos ambientes urbanos da África do Sul. Em certa medida, estas questões têm sido articuladas pelo Reconstruction and Development Programme (RDP) do atual governo. O quadro político fornecido pelo documento do RDP tem como objetivo a reconstrução de todos os aspectos de vida para os anteriormente desfavorecidos, através de um leque muito mais amplo de p. 221 consultoria e participação. Novas formas de incluir toda a gente nos projetos para cidades e ambientes urbanos, estão agora a ser considerados, levando em conta a diversidade cultural da população da África do Sul. Muitas vezes, a necessidade de mudança na África do Sul está a ser implementada através de ação afirmativa. Neste sentido, é importante mencionar que de forma alguma os ambientes podem ser expressos, senão através da integração. A identidade do lugar é vista como importante, do ponto de vista comunitário e psicológico. A falta de identidade do lugar, quer muitas vezes dizer que os espaços e instalações públicos são vivenciados como estranhos e adversos, o que normalmente leva à quebra das regras sociais. Os argumentos prosseguidos neste texto postulam identidade como a experiência vivenciada a vários níveis, não apenas à volta de edifícios. Edifícios, grupos de edifícios e espaços livres inseridos numa sociedade são projetados a partir de um sentido estético, mas é importante que estes sejam adaptados, e não apenas em termos da sua funcionalidade, mas também do significado social e estilo de vida dos usuários. Características socialmente importantes e relevantes devem ser os aspectos determinantes no design - e não a satisfação do ego do designer. Isto apela para elementos de apoio de características crucialmente importantes de um grupo, tal como unidades e instituições sociais. Rapoport (1990) identifica especificamente quatro conjuntos de características necessárias para ambientes de suporte: • Unidades sociais centrais ou nucleares fundamentais do grupo e o seu papel na cultura. • Unidades físicas respectivas a diferentes escalas - fixas e não-fixas. • Unidades facilitadoras de integração social para o grupo em causa relativamente a outros grupos. • Atividades institucionais, economia, recreação, rituais, governo e outras atividades - como estas são facilitadas na configuração específica da comunidade (RAPOPORT, 1990, p. 145). • Depois destas serem claramente definidas, o design deve entender e claramente estabelecer o que é que procura fazer e porquê. p. 222 Tendências de mudança na teoria da urbanização Na África do Sul de hoje, a investigação está a ser conduzida em torno do conceito de densificação por instituições de investigação, tais como a Urban Foundation, a Industrial Research Bank of Southern Africa (DBSA), o Council for Scientific and Industrial Research (CSIR) e a Urban Problems Research Unit (UPRU) da Universidade da Cidade do Cabo. A norma-padrão para o que constitui alta e baixa densidade difere de país para país, por vezes até de uma autoridade urbana para outra. Essencialmente, a densidade urbana é utilizada num plano de uso do solo que favorece espaços urbanos espacialmente ligados entre si e oportunidades de desenvolvimento. No contexto da África do Sul, este conceito pode ser positivamente ou negativamente utilizado. A situação, como ocorre nas township - no Soweto, por exemplo, que tem uma densidade sete vezes maior que a de Joanesburgo (CSIR, 1995) - é meramente o estreitamento do movimento, característico das township com as suas construções de baixa densidade de construção mas um alto nível de sobrepopulação. Isto foi um resultado direto da provisão de habitação, sem as necessárias infraestruturas de apoio. De forma positiva, a densificação deveria ser um processo de aumento da densidade populacional residencial e, simultaneamente, fornecimento proporcional de instalações para servir a população. Os sistemas de atividade tornam-se então relevantes, uma vez que se relacionam com a forma como as pessoas e as instituições, tais como agregados familiares, indústrias, governos e outras instituições, organizam as suas interações para produzir uma dimensão comunicativa. Isto é por vezes facilitado através dos média, mas muitas vezes no contato cara-a-cara que se faz possível pelos meios de transporte e de comunicação. A promoção de desenvolvimentos de alta densidade e uso misto ao longo de corredores é um foco central de muitos dos projetos de reestruturação urbana que estão a ser iniciados pelo governo da África do Sul. No entanto, existem uma série de potenciais fatores inibidores que precisam ser avaliados. As características socialmente importantes de uma zona urbanizada são tão importantes como a estrutura em si, aspecto esse que tem sido historicamente ignorado. No contexto da África do Sul, a classificação de pessoas por grupos étnicos e linguísticos apenas alcançou os objetivos de “desenvolvimento segregado” do apartheid, mas não permitiu, à população urbana, o espaço, o lugar ou a oportunidade de desenvolver uma cultura urbana apropriada. No processo de melhorar assentamentos informais existentes (isto é, os bairros pobres) p. 223 não são apenas as necessidades residenciais e de abrigo que precisam ser prestadas, mas sim o desenvolvimento holístico das comunidades. A extensão dos laços susceptíveis de se desenvolverem numa comunidade de um assentamento informal é, em grande parte, definida pelo período de permanência: quanto mais tempo as pessoas viverem juntas e se habituarem a partilhar recursos, mais fortes serão os laços. Nos casos em que as comunidades são relocalizadas para dar lugar ao desenvolvimento, seja através de renovação urbana ou de parques verdes, esses laços são cortados, com implicações perturbadoramente negativas. Outros métodos de desenvolvimento, estreitamente associados à modernização (incluindo produção agrícola, ainda que numa escala muito pequena, dado os recursos limitados do solo) podem e devem ocorrer para aliviar a escassez de comida e diminuir a dependência. Os resíduos e o escoamento de águas pluviais podem ser aproveitados para a produção agrícola, especialmente dos vegetais. Através de melhoramentos, outros recursos, tais como os esforços para espaços recreativos e criação do sentido de lugar, tornam-se muito mais estabelecidos nas comunidades e são capazes de prosseguir a partir dos laços comunitários já existentes. Economicamente falando, as township dependem das cidades. Enquanto que no passado, os moradores das township estavam em situação melhor do que os que viviam nas suas “pátrias”, porque ainda podiam ter acesso às cidades durante o dia (desde que tivessem passes válidos para tal), torna-se agora mais oneroso possuir uma casa nas township. É geralmente aceite que as pessoas não viviam nas township porque queriam, mas porque assim tinha de ser. Estruturas fixas e permanentes, não são flexíveis: as pessoas podem encaixotar e levar os seus pertences com elas na sua busca de trabalho, mas a “caixa” da township, não. Enquanto existem poucas oportunidades de emprego nas “pátrias’’, o mesmo se passa nas township - mas o morador da township tem restrições em se mover na busca de emprego, pelos fatores acima mencionados. Casos de estudo p. 224 A parte que se segue é dedicada a dois casos de estudo que são utilizados num esquema comparativo. O caso de Thohoyandou na Província do Norte, é utilizado como uma típica cidade “pátrias” que foi estabelecida pelo governo do apartheid. No contexto do desenvolvimento segregacionista, as cidades “pátrias” eram elegíveis para a “independência’’ da África do Sul - só então recebiam financiamento do estado central para gerir uma economia. Thohoyandou foi fundada em 1979, como a capital da “pátrias” de Venda. É um típico exemplo de uma cidade que herdou práticas de planeamento urbano, especialmente em termos de design, dos padrões do Primeiro Mundo e está atualmente a passar por graves problemas. Neste estudo, todos os aspetos do interface rural/urbano (contribuindo para a estrutura existente), assim como as aspirações da profissão dos urbanistas da África do Sul, em formar esta cidade como um modelo de cidade “em desenvolvimento’’ (segundo padrões ocidentais) falharam. O segundo caso de estudo é Ithaca, Nova Iorque, EUA. Os problemas aqui analisados são muito diferentes do caso da África do Sul. Esta cidade, tal como a de Thohoyando, é pequena e localizada num ambiente semi rural - a maior diferença é que já percorreu todo o seu ciclo de desenvolvimento. Os problemas que assolam Ithaca são como trazer de volta à vida urbana e revitalizar um ambiente de “pessoas por todo o lado” e criar uma “nova antiga cidade” que retém o seu interesse como uma alternativa suburbana. Mas, tal como a de Thohoyandou, a cidade de Ithaca tem os seus problemas no que toca à organização física, social, cultural e económica. Thohoyandou Enquanto houver explicações para a presente localização de Thohoyandou, essencialmente, ela foi fundada como a capital administrativa da então “pátrias” independente de Venda. Thohoyandou, assim como outras cidades capitais das “pátrias”, era suposta se desenvolver e conter as pessoas, para que estas não se mudassem para a África do Sul branca. Estrutura física Os argumentos de Martin (1995) sobre o plano e disposição de uma área como reflexo das determinantes sociais, políticas, económicas e tecnológicas em funcionamento, são reais no contexto desta pequena cidade. Os planos e políticas para o desenvolvimento urbano, assim como a génese das instalações a serem fornecidas, foram todos ditados pelo governo Sul-Africano. As principais funções de uso do solo na área também cresceram em resposta à tendência urbanística das “pátrias”, nas quais as pessoas viviam na orla rural-urbana, mas desfrutavam dos serviços e funções oferecidos pelos centros urbanos. Atualmente, a expansão colide com as áreas rurais adjacentes e interfere com a autoridade tribal, especialmente na oferta e pagamento de serviços e funções. p. 225 Tomada de decisão para políticas de urbanização e uso do solo O planeamento urbano tem, como objetivo final, a criação de comunidades com instituições para perpetuar e relacionar com as suas culturas, através da localização adequada de casas, comércio, equipamentos, lazer e outros elementos ambientais dentro de uma comunidade. O resultado final destes é visto numa paisagem tridimensional: os elementos espaciais da arquitetura, organização civil e paisagem urbana. As eleições todas as raças de 1994 na África do Sul, foram um marco na história Sul-Africana, a alvorada de uma nova era para os negros Sul-Africanos. No contexto das leis de segregação neste país, os limites funcionais foram, por muito tempo, ultrapassados por fronteiras raciais. Escusado será dizer, que o zoneamento do uso do solo em Thohoyandou foi reduzido a esta forma de gestão económica, política, financeira e administrativa. O resultado das artificiais cidades “pátrias’’ criou um ambiente exterior de anti-espaços desconectados. A situação resultante é a limitação de contacto social e a falta de qualidade das estruturas na configuração urbana. O ambiente exterior adjacente deve ser visto e entendido além de edifícios, sítios, espaços pobremente definidos e objetos aleatoriamente dispersos na paisagem. A colaboração profissional entre urbanistas, arquitetos, paisagistas e designers urbanos deve guiar o ambiente equitativo da cidade no contexto das necessidades das comunidades. Tudo isto poderia facilmente acontecer se conseguirmos responder à vital questão “de que maneira se realiza tudo isto”? p. 226 A política de zonamento excludente utilizada ao longo dos anos resultou em duas economias paralelas a funcionar dentro da sociedade Sul-Africana. O apartheid, como uma estratégia de planeamento distinta, pensada para preservar o poder branco, a dominação e a exploração de mão-de-obra negra pelo sistema capitalista. Na sua própria justificação, é um plano urbano para uma coexistência racial pacífica. Dentro destas políticas e contexto histórico, Thohyandou não recebeu linhas orientadoras formais para os procedimentos de planeamento. Recorrendo ao planeamento de preenchimento, foram desenvolvidos bolsas de terra que se encontravam dentro dos limites não tão distantes da cidade, à medida que a necessidade surgia. Isto criou sérios problemas à medida que as pessoas que ocupavam - e continuam a ocupar - a terra que tinha sido anunciada como parte da área metropolitana, ainda deviam lealdade aos chefes e governantes tradicionais locais, tornando a administração extremamente difícil. A situação atual é tal que a terra disponível para a expansão urbana de Thohoyandou está esgotada, a não ser que a incorporação total de terras tribais aconteça. No que diz respeito ao design urbano e à localização de edifícios, os princípios por detrás da arquitetura de Thohoyandou impedem um funcionamento adequado às pessoas a quem deveriam servir. A arquitetura é uma arte transparente que revela insinceridade e comprometimento. Em Thohoyandou, a imagem transmitida pela sua arquitetura revela a sua história degradante, assim como o efeito devastador do poder político centralizado. Ithaca Os problemas das cidades do Primeiro Mundo são diferentes daqueles nos países em desenvolvimento. Nos Estados Unidos, os problemas urbanos são sobre segurança, limpeza, beleza e recriar a riqueza cultural das cidades. Renovação urbana, ao invés do planeamento urbano, é a maior força motriz. Para cidades como Ithaca, Nova Iorque, a revitalização da zona da baixa é a prioridade. É certo que, esta cidade tem a sua parte de problemas físicos, sociais e culturais. Quando, em 1974, três blocos da baixa de Ithaca foram encerrados ao trânsito viário para criar um centro comercial pedestre, o objetivo era estimular o comércio e uma “sala de estar’’ animada e um local de encontro para a comunidade alienada. Seguindo a lógica dessa altura, foi decidido que áreas na baixa deveriam ser revitalizadas e transformadas em ambientes animados e densos, cheios de “pessoas por todo o lado”, jantares ao ar livre, edifícios de escritórios e instituições públicas relacionadas com a comunidade, e criar uma “nova cidade velha” que mantém o seu interesse como uma alternativa suburbana. Em Ithaca, contudo, o antecipado boom comercial e financeiro não se materializou, embora os problemas que a cidade agora enfrenta não são únicos. Estrutura física A expansão suburbana de baixa densidade, tal como existe no lado noroeste do município em Lansing, é um exemplo do movimento funcionalista do século XX na criação de cidades-jardim. Aspetos físicos, tais como ruas, espaços abertos, parques, praças e edifícios precisam de se relacionar com o tecido social do município para o p. 227 ajudar a ultrapassar os tempos económicos difíceis que está a atravessar. A paisagem das ruas de Ithaca é um exemplo da austeridade económica que a cidade enfrenta. As ruas têm um ar “cansado, aborrecido e pouco convidativo’’ com uma clara necessidade de animação e detalhe. Os edifícios de escritórios são baixos, com um ou dois andares, assim como as lojas. O maior centro de comércio da área da baixa inclui bancos, escritórios de advogados, uma estação de correios e lojas. O “diapasão”, uma junção de estradas em forma de Y, serve de entrada da Estrada 79 de Nova Iorque no lado oriental através da State Street, mas não serve para ligar a rua à cidade. Em suma, apesar da convidativa paisagem natural, a baixa de Ithaca não compensa, devido às pobres relações com a comunidade circundante que a alimenta. Melhorias no núcleo comercial A cidade de Ithaca, apesar de diferente do caso anterior de Thohoyandou, tem dificuldade em revitalizar a sua baixa moribunda. Apesar de se basear numa fundação firme de um entusiasmo destemido, nobres intenções e um plano deliberadamente concebido, uma combinação de outros fatores, tais como o uso do solo, problemas sociais, habitação, circulação, preservação histórica, espaços livres e acesso pedestre têm de ser ainda melhor articulados, particularmente entre si. Devido ao seu lugar no desenvolvimento urbano e a avançada natureza dos problemas, Ithaca mostra os problemas de cidades ocidentais que não requerem reestruturação geral, mas têm de rever os seus regulamentos de propriedade e mecanismos de zoneamento para sobreviver. Esta estratégia só pode alcançar o equilíbrio das necessidades de todos as partes: empresas industriais e comerciais, agricultores, proprietários de casas, áreas urbanas e suburbanas e residentes rurais para que a baixa se mantenha economicamente viável. Dois conceitos continuam vitais neste exemplo: a necessidade e a possibilidade, no final de contas, não tão diferente dos conceitos que são necessários para a melhoria e o desenvolvimento em Thohoyandou. p. 228 Conclusão – síntese e o novo urbanismo na nova África do Sul Os efeitos a longo prazo de uma educação pobre, têm pesadas consequências no tipo de graduados que a África do Sul produziu, especialmente nas instituições negras. Apesar de alguns terem adquirido a educação necessária, continuam sem poder tomar decisões críticas numa escala suficientemente abrangente. A educação tem sido sempre uma questão central em conduzir a perspetiva de mudança na África do Sul, particularmente quando se considera que foi a revolta dos estudantes em 1976 que trouxe a mudança política. Ainda não existe uma política que possa efetivamente alterar o que continua a ser ensinado, relativamente ao conteúdo e à metodologia nas instituições terciárias. Até hoje, muito continua inalterado. A arquitetura tem uma forma de restringir o espaço sem limites, enquanto que o espaço nem sempre é demarcado por fronteiras físicas. As convenções culturais, sistemas codificados, comportamentos aceitáveis e não aceitáveis, assim como a utilização da cor para representar um estado de espírito nos edifícios, são frequentemente sutis, nas formas de habitar os espaços carinhosamente valorizados e são contemplados pela cultura negra. Nas atividades do dia-a-dia de um grupo, as formas como o tempo e o espaço são utilizados, dão significado e abrem canais de comunicação para as atividades da vida. As pessoas negras que estão habituadas a espaços abertos, devido aos seus fortes vínculos com as áreas rurais, possuem certas crenças que não são prováveis de desaparecer simplesmente porque moram em edifícios de dois andares. As estruturas para negros, cujo design foi feito por homens brancos de classe média, são apenas panelas que cozinham em lume brando futuros problemas. Em relação a este aspeto, deve-se ter em mente que por muito estressante esta mudança seja, é pior ainda em situações nas quais o ambiente não é de todo relacionado às necessidades e expectativas dos usuários. Os Sul-Africanos negros são, justamente, orgulhosos da sua herança e cultura. As atuais estruturas indefinidas que são fornecidas pelo governo, como a habitação, carecem do caráter que torna os negros quem eles são. O pressuposto que os negros aspiram a padrões ocidentais de vida em geral, e para os tipo de habitação em particular, só pode ser verdade na medida em que as alternativas viáveis e apropriadas, particularmente no contexto urbano, estão ainda por desenvolver. Em certos casos, existe uma preocupação crescente das pessoas para quem os serviços estão a ser prestados de que, à medida que o desenvolvimento progride, aquilo que os residentes p. 229 consideram ser os aspectos mais importantes está a ser negligenciado. Isto não quer dizer que não existam boas intenções, quando as iniciativas de desenvolvimento são tomadas, mas, como em qualquer relação especialista-leigo, frequentemente os dois lados não sabem o que se passa no mundo um do outro. Neste sentido, há a necessidade urgente para que os decisores descubram os fatores que são necessários para contribuir socialmente na provisão das infra-estruturas, perante o sistema de atividades das comunidades. Isto deveria ser enfatizado em todos os projetos desta natureza. A forma como as pessoas sentem e interagem num espaço é justamente tão importante quanto aquilo que fazem nesse espaço. Os problemas aqui apresentados encontram-se perto dos corações de muitos Sul-Africanos negros, particularmente porque pertencem a várias práticas culturais arte, literatura, música, arquitetura e design urbano. Alguns dos esforços do governo na provisão de infraestruturas nas áreas anteriormente desfavorecidas, através do National Public Works Programme, produziu, até certo ponto, a lenta, mas certa percepção de que os negros são ávidos, capazes - e em alguns casos, literalmente a morrer por fazerem parte no design e controlo do seu ambiente construído. Referências CHOKOR, B. A. The Perception of Spatial Inequalities in a Traditional Third World City. Urban Studies, v. 28, n. 2, p. 233-253, 1991. DEWAR, D. Political changes and the urban poor in South Africa. Urban Forum. n. 2, p. 93–98, 1991. GORDIMER, N. The Essential Gesture: Writing, Politics, Places. Londres: Jonathan Cape, 1988. HARDIE, G.; HART, T. Physical planning and community involvement: An experiment in the use of participation techniques in Mangaung, Bloemfontein. Town and Regional Planning, n. 21, 1986, p. 9-13. p. 230 HENDLER, P. The housing crisis. In: SWILLING, M.; HUMPHRIERS, R.; SHUBANE, K. (Orgs). 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Notas 1 (Nota dos tradutores [N.T.]) O termo Teknikon refere-se a ensino profissional pós-ensino médio destinado a negros, durante o regime do apartheid e tinha conotação depreciativa de base racista. 2 (N.T.)Township, é o termo que usado na África do Sul durante o regime de segregação racial do Apartheid, referia-se a áreas urbanas desfavorecidas, localizadas nas periferias urbanas das cidades dos brancos, que eram reservadas para residencia de negros, mestiços e Indianos. 3 (N.T.) Pátria ou terra de origem, cujo termo original em inglês é Homeland, fez parte de uma política territorial de desenvolvimento separado durante o regime do apartheid para atribuir cada Africano negro uma “pátria”, de acordo com a sua identidade étnica. Foram criadas dez pátrias para livrar a África do Sul dos seus cidadãos negros, abrindo o caminho para violentas remoções forçadas em massa. Na década de 1970, o governo do apartheid concedeu uma falsa independência às pátrias negras da África do Sul. Isto serviu de argumento para negar a todos os Africanos os direitos políticos na África do Sul (Apartheid Museum, 2022). p. 231 Ler a arquitetura das 1 classes desprivilegiadas Nnamdi Elleh Universidade de Witwatersrand (WITS), Joanesburgo, África do Sul. TRADUÇÃO: Céline Veríssimo ¡DALE! / UFBA, MALOCA / UNILA, PPGPPD e CAU / UNILA, DAMG / UPT Ler a arquitetura das classes desprivilegiadas Resumo Ao procurar ”ler” a arquitetura das classes desprivilegiadas o texto procura dar um outro olhar para a arquitetura global que não consta nem é discutida nos livros de história, sendo, portanto, considerada desconhecida e indefinível pelos profissionais e teóricos da área. As palavras “classes desprivilegiadas”, no título do livro e do texto, foram cuidadosamente escolhidas para demonstrar como a ausência, ou a presença, dos arquitetos no design do ambiente construído reforça certos estereótipos sociais quando não-arquitetos com poucos meios económicos, constroem as suas próprias casas nos centros urbanos emergentes por todo o mundo, com significações relevantes para o discurso e a consciência social na arquitetura contemporânea. Os textos são reunidos sob os temas: cidades pré-modernas sem o registo dos tipos de "favelas" no nosso discurso; confrontando o vernacular com as produções arquitetónicas urbanas "modernas" das classes desprivilegiadas; teorização das arquiteturas das classes desprivilegiadas; a teoria da transição: os elos entre as arquiteturas vernaculares e modernas. Cada um desses quatro conjuntos evoca reflexões que subsidiam a discussão central empreendida, assim os ensaios deste livro, de forma crítica, baseada e consistente, discutem um tipo de arquitetura global, altamente difundido nos centros urbanos, construídos por pessoas que não têm acesso aos serviços de arquitetura, muito embora principalmente nas partes do mundo em desenvolvimento (Por não haver resumo no texto original, este foi feito pelos editores). Palavras-chave: arquitetura vernacular, produções arquitetónicas emergentes, consciência social na arquitetura contemporânea. Leer la arquitectura de las clases desprivilegiadas Resumen Al tratar de "leer" la arquitectura de las clases desprivilegiadas, el texto pretende dar otra mirada a la arquitectura global que no se menciona ni se discute en los libros de historia, siendo por tanto considerada desconocida e indefinible por los profesionales y teóricos del área. Las palabras “clases desfavorecidas” que aparecen en el título del libro y en el texto han sido cuidadosamente elegidas para demostrar cómo la ausencia, o la presencia, de los arquitectos en el diseño del entorno construido refuerza ciertos estereotipos sociales cuando los no arquitectos con medios económicos limitados, construyen sus propias casas en los centros urbanos emergentes de todo el mundo, con significados relevantes para el discurso y la conciencia social en la arquitectura contemporánea. Los textos se reúnen bajo los temas: las ciudades premodernas sin la inscripción de los tipos de “chabolas” en nuestro discurso; la confrontación de lo vernáculo con las producciones arquitectónicas urbanas "modernas" de las clases desfavorecidas; la teorización de las producciones arquitectónicas de las clases desfavorecidas; la teoría de la transición: los vínculos entre las producciones arquitectónicas vernáculas y modernas. Cada uno de estos cuatro conjuntos, evoca reflexiones que subsidian la discusión central emprendida, así los ensayos de este libro, de manera crítica, fundamentada y consistente, discuten un tipo de arquitectura global, altamente difundida en los centros urbanos, construida por personas que no tienen acceso a servicios de arquitectura, aunque principalmente en partes del mundo en desarrollo (Al no existir un resumen en el texto original, éste fue realizado por los editores). Palabras clave: arquitectura vernácula, producciones arquitectónicas emergentes, conciencia social en la arquitectura contemporánea. Reading the architecture of the underprivileged classes Abtract Seeking to “read” the architecture of the underprivileged classes, the text intends to take another look at the global architecture that is neither mentioned nor discussed in history books, and therefore considered unknown and undefinable by professionals and theoreticians in the field. The words “underprivileged classes” in the title of the book and the text have been carefully chosen to demonstrate how the absence, or presence, of architects in the design of the built environment reinforces certain social stereotypes when non-architects with limited economic means build their own homes in emerging urban centers around the world, with relevant meanings for discourse and social awareness in contemporary architecture. The texts are gathered under the themes: pre-modern cities without the registration of “slum” types in our discourse; confronting the vernacular with the “modern” urban architectural productions of the underprivileged classes; theorizing the architectural productions of the underprivileged classes; the theory of transition: the links between vernacular and modern architectural productions. Each of these four sets, evokes reflections that subsidize the central discussion undertaken, thus the essays in this book, critically, grounded and consistent, discuss a global type of architecture, highly pervasive in urban centers, built by people who do not have access to architectural services, although mainly in parts of the developing world(Since there is no abstract in the original text, this was done by the editors). Keywords: vernacular architecture, emerging architectural productions, social consciousness in contemporary architecture. objetivo deste livro está articulado no seu próprio título: Leitura da Arquitetura das Classes Desprivilegiadas. Uma definição básica da palavra «ler» no Oxford Advanced Learner‘s Dictionary é “olhar para e entender o significado de +palavras ou símbolos escritos ou impressos”. A partir da definição da palavra “leitura”, pode-se entender que os ensaios deste livro dão um outro olhar àquele tipo de arquitetura global, altamente difundido nos centros urbanos, construído por pessoas que não têm acesso aos serviços de arquitetura, muito embora principalmente nas partes do mundo em desenvolvimento. Além disso, partindo da palavra “leitura”, podemos verificar que os ensaios do livro baseiam-se no posicionamento de que as formas arquitetónicas podem ser lidas como símbolos imbuídos de significados. Segue-se que o tipo peculiar de compreensão, no seu conjunto, é o modo como a motivação para estatuto social foi o que deu ímpeto, aos arquitetos profissionais e teóricos, para manobrar as terminologias utilizadas na descrição de edifícios que surgiram no início do século XX até à atualidade, com o intuito de determinar os edifícios que poderiam ser discutidos nos livros de história, enquanto modernos, e aqueles que deveriam ser classificados como desconhecidos e indefiníveis. Infelizmente, acontece que os edifícios descritos como desconhecidos e indefiníveis são quase todas as variedades produzidas pelas classes desprivilegiadas nas cidades do mundo em desenvolvimento. 0 n. 1 p. 262-289 2022 ISSN: 2965-4904 Há muito mais no título: a ideia de “classes desprivilegiadas” implica que uma das intenções do livro é chamar a atenção para os problemas de habitação das pessoas que têm poucos recursos económicos e, subsequentemente, para os edifícios projetados por arquitetos, porque não podem pagar serviços de arquitetura, nem o terreno para construir. Se conseguissem encontrar um lote para construir, nas etapas iniciais de assentamento a qualidade da habitação era tão baixa que se pode dizer que não houve nenhuma melhoria significativa na qualidade de vida dos moradores dessas casas nesses bairros. Outra característica que os assentamentos têm em comum, independentemente da sua localização, é que muitas vezes os construtores foram novos imigrantes que se deslocaram para os centros urbanos, em busca de oportunidades de trabalho. Podem estar desempregados, subempregados ou plenamente empregados, mas nas fases iniciais de assentamento no seu novo ambiente, estes não ganham o suficiente para pagar casas em lugares projetados e já estabelecidos. Portanto, neste contexto a palavra “classe” é usada minimalmente para descrever um grupo de pessoas e residências que partilham características e interesses económicos comuns na sociedade. Estamos cientes de que a era pós-Guerra Fria e pós-11 de Setembro, quando edifícios e infraestrutura pública, bem como o design urbano, são repensados a partir de múltiplas perspectivas relativas à segurança, o termo “classe” pode parecer polémico, e alguns podem ir ao ponto de dizer que é obsoleto nos discursos em arquitetura. Existe uma pressão para engrandecer e substituí-lo, nos textos críticos, por palavras politicamente corretas, como se não contribuísse mais com significações relevantes para o discurso e a consciência social na arquitetura contemporânea. Existe outra perspectiva a partir da qual as palavras “classe desprivilegiada” são usadas para ler as produções arquitetónicas do povo. O surgimento de terminolo2 gias como gueto, favela, ocupações e townships não pode ser traçado a uma única trajetória ideológica conspiratória, organizada entre os diversos grupos de interesse. Engenheiros, urbanistas, políticos, filantropos, líderes religiosos, empresários industriais, escritores, teóricos, autoridades governamentais, revolucionários, sociólogos, operários nas fábricas e moradores urbanos em geral, usam essas palavras para descrever os ambientes residenciais onde moram. Se os diversos grupos tiveram algo em comum, independentemente dos seus caminhos se cruzarem, ou não, ou de concordarem e discordarem, uns com os outros, por vezes violentamente, nas revoluções, seria o facto de estarem a viver num mundo que estava a ser rapidamente transformado pela indústria. As palavras que usavam para descrever esses ambientes, eram a sua forma de expressar os benefícios sociais e físicos, bem como as desvantagens do ambiente industrial que assistiam. Neste sentido, como vimos nos escritos de Friedrich Engels ([1845]1987), Ebenezer Howard ([1902]2008), Frank Lloyd Wright, Le Corbusier (1986; 1987) e Fishman (1999), os objetos arquitetónicos são análogos às tabelas com o relevo dos contextos sociais e das condições de vida dos moradores urbanos indigentes, e como a reforma urbana era imaginada. p. 237 Por essa razão, as palavras “classes desprivilegiadas”, no título do livro, foram cuidadosamente escolhidas para demonstrar como a ausência, ou a presença, dos arquitetos no design do ambiente construído reforça certos estereótipos sociais quando não-arquitetos com poucos meios económicos constroem as suas próprias casas nos centros urbanos emergentes por todo o mundo. Mais importante ainda, mostra ironicamente como, apesar da ausência ou presença dos serviços dos arquitetos na construção dos ambientes onde moram, as pessoas das classes economicamente desprivilegiadas, essa profissão sempre se beneficiou de refazer bairros que são considerados económica e socialmente desafiantes. Esta observação é mais urgente do que nunca devido ao crescimento urbano no século XXI, e à expectativa de que muitos empregos de arquitetos sejam criados nas partes subdesenvolvidas das nossas cidades. A literatura existente sobre a arquitetura das classes desprivilegiadas é uma oportunidade para adotar uma estratégia de leitura centrada nas fontes das práticas arquitetónicas que estavam disponíveis nas diferentes localidades antes do surgimento dos tipos de edifícios arquitetónicos que estamos a analisar neste livro. Esta cuidadosa leitura histórica apresenta a perspectiva de que o surgimento da arquitetura das classes economicamente desprivilegiadas provavelmente começou com o advento da era industrial no século XVIII, quando as grandes cidades costeiras globais, nas partes do mundo em desenvolvimento, começaram a expandir-se e gradualmente passaram a estar ligadas umas às outras por relações comerciais. Felizmente, muitos relatos de viagens dos primeiros exploradores fornecem uma infinidade de fontes a partir das quais se pode recorrer. Cidades pré-modernas sem o registo dos tipos de “favelas” no nosso discurso p. 238 Para verificar se os historiadores e teóricos da arquitetura omitiram a arquitetura das classes desprivilegiadas dos livros de história no século XX, devemos primeiro analisar aquilo que os exploradores viram, quando visitaram, muitas partes do mundo onde estas construções continuam a ser desenvolvidas. Os relatos dos exploradores são visíveis porque foram escritos antes do alvorecer da era industrial e quando as regiões começaram a participar rapidamente do comércio que se estendia por todo o mundo. A trajetória do pensamento aqui não higieniza as cidades encontradas pelos exploradores como assentamentos livres de pessoas e de habitações pobres. Não, essa não é a ideia nem a posição dos ensaios deste livro. Pelo contrário, reforça a existência de formas vernaculares de construir o ambiente para ricos e pobres, onde o vernacular é aqui entendido como algo feito localmente pelas pessoas com as suas próprias tecnologias e mão-de-obra qualificada. Normalmente, os materiais e tecnologias de construção eram extraídos do ambiente local. Não existe um único relato de edifícios construídos com chapas e coberturas metálicas, amianto, compensados, cimento, revestimentos plásticos reciclados, vidro, canas, varas e barro, como encontramos hoje nas produções arquitetónicas das classes desprivilegiadas. A consideração da descrição do antigo Império de Gana pelo estudioso muçulmano de Córdoba, Espanha, Abdallah ibn Abdel Aziz, também conhecido como Abu Abaid, e mais popularmente pela alcunha El Bekri, em 1067, dá-nos uma visão de um antigo ambiente africano. El Bekri não mencionou edifícios construídos com materiais manufaturados e naturais, como é comum encontrarmos nos assentamentos que estudamos. Davidson (1970) lembra-nos que El Bekri estava a escrever quando os governantes muçulmanos do Norte da África ainda lutavam para conquistar mais terras para sul, nas partes da África Ocidental, conhecidas na história como o Sudão Ocidental, onde os interesses económicos eram grandes, especialmente no controlo das rotas comerciais. Os produtos lucrativos do comércio incluíam ouro, minas de sal, assim como marfim e especiarias. Nas contas de El Bekri, a capital do Gana caiu em 1076 para o líder almoravid, Abu Bakr. Além disso, El Bekri escreveu que: “Esta capital tinha duas cidades separadas por seis milhas de distância, e os espaços entre elas também estavam cobertos de moradias. Na primeira dessas cidades estava a residência do rei, ‘uma fortaleza e várias cabanas arredondadas com telhados redondos, todas cercadas por um muro. A segunda, que também tinha uma dúzia de mesquitas, era uma cidade mercante de muçulmanos[...] (DAVIDSON, 1970, p. 85)”. Também temos um vislumbre da vida e dos protocolos na corte do rei, através dos relatos de El Bekri numa cena que parece um palco cinematográfico. Ele escreve que: Quando ele [o rei] dá audiência ao seu povo, para ouvir as suas reclamações e colocá-las em direitos, ele senta-se num pavilhão ao redor do qual os seus cavalos estão cativos com pano de ouro; atrás dele estão dez escudeiros segurando escudos e espadas douradas; e à sua direita estão os filhos dos príncipes do seu império, esplendidamente vestidos e com ouro trançado nos seus cabelos. […] O início de uma audiência é anunciado pelo rufar de uma espécie de tambor que eles chamam de deba, feito de um longo pedaço de madeira oca. (DAVIDSON, 1970, 91). p. 239 Embora a narrativa de El Bekri sobre o antigo Reino do Gana tenha vindo da distante Idade Média, as suas sugestões sobre a riqueza do antigo Reino do Gana foram corroboradas pelo conhecimento do sucesso do Império do Mali na região. Davidson (1966) também escreve sobre o Mapa Catalão da África de 1375, que se acredita ter sido preparado por Abraham Cresques, que mostrava cidades além das montanhas do Atlas e identificava alguns importantes centros comerciais ao longo do rio Níger e em outros lugares, incluindo “Tenbuck (Timbuktu), Ciutat de Mali, Geugeu (Gao), e Tagaza; todos estes, no meio de uma série de outros, que doravante iriam despoletar os interesses e a imaginação da Europa até que os primeiros viajantes, séculos depois, pudessem finalmente alcançá-los (DAVIDSON, 1966, p. 198; 1970, p. 72)” . p. 240 Este mapa é detalhado nas suas descrições visuais de lugares, pessoas, riquezas e atividades com o rei Mansa Musa sentado no meio do mapa, segurando uma esfera dourada e um bastão do poder. Bovill ([1958]1969) escreveu que a inscrição ao seu lado descreve Musa como o Rei dos Negros e o homem mais rico do mundo. Vários séculos depois, quando os grandes exploradores foram os pioneiros das rotas marítimas intercontinentais da África para a Ásia e da Europa para as Américas, as narrativas que recebemos de muitos deles, não mencionam as cidades onde os edifícios eram feitos de amianto, cimento, zinco e alumínio, plástico, compensado, argila, paus, telhado de colmo e outros materiais naturais, como os construídos por arquitetos urbanos não escolarizados, cujas obras resultaram claramente da era industrial moderna. Não encontramos descrições de construções e assentamentos tão variados nas costas africanas, no relato de viagem de Bartolomeu Dias (1488), nem do seu sucessor Vasco de Gama (1498) que navegou ao redor do Cabo da Boa Esperança durante a sua viagem à Índia. Nem podemos encontrar descrições de tais ambientes urbanos nos escritos do explorador Holandês Olfert Dapper (1668) que preparou vários mapas e ilustrações para o seu livro, nem nos escritos de William Bosman ([1704]1967) que passou algum tempo na África Ocidental. As ilustrações de Dapper (1668) de uma cidade em Marrocos, demonstram a abundância de edifícios feitos de tijolos cozidos ao sol e pedras que representam construções vernaculares, ainda hoje encontradas em vários cenários tradicionais do Atlas Marroquino. A sua ilustração do Oba (rei) do Benin num desfile real, mostra imagens de fundo urbanas que podemos corroborar nas placas de bronze e latão do Benin, anteriores a essa época. Edifícios com fixações altas, culminadas por grandes esculturas em bronze de águias e cobras pitão que têm até 12 pés de altura, descendo pelo meio do telhado com a cabeça voltada para o chão, podem ser vistas na frente e nos fundos das ilustrações. Enquanto que os corpos das pitão em bronze nas pontas dos edifícios não sobreviveram, várias cabeças que estão nos museus em Berlim e Leipzig, na Alemanha, corroboram as ilustrações de Olfert Dapper. Além disso, a ilustração de Lovango, um povoado projetado pelos primeiros portugueses, hoje Luanda, capital de Angola, mostra que edifícios bem construídos e casas de colmo ficavam lado a lado. Alguns dos edifícios foram construídos com pedra e madeira. Nas descrições subsequentes de cidades no Sudão Ocidental, feitas pelos autores Mongo Park (1970), Hienrich Barth ([1857]), Rene Calais (1824-1828) e Felix Dubois (1896) não contêm edificações feitas de materiais produzidos em fábricas ou aqueles obtidos da natureza. Uma descrição de Timbuktu feita por Felix Dubois (1896) foi nostálgica e histórica; ele fez vários esboços das paisagens urbanas e dos edifícios, assim como das pessoas e como elas utilizavam os seus espaços. No entanto, não encontramos nenhum relato de edifícios construídos com materiais que foram produzidos em fábricas ou de materiais naturais. África não é o único continente onde os primeiros exploradores registaram formas de assentamentos. A documentação dos exploradores portugueses sobre os ambientes que viram na Ásia e na Ásia Menor (partes do mundo que hoje conhecemos como o “Médio Oriente”), e na América Latina, especialmente no Brasil, não mencionava assentamentos onde materiais de construção produzidos em fábricas fossem combinados com materiais obtidos dos recursos locais. O Ensaio de Iconografia das Cidades Portuguesas do Ultramar, de Luís Silveira (1950), é provavelmente o mais completo em termos de documentação visual e o mais ambicioso, apesar dos grandes quatro volumes terem sido compilados em meados do século XX, por volta de 1950. Silveira obteve dos documentos originais de viajantes, que datam do século XV e até ao século XX, altura em que os assentamentos coloniais portugueses em África estavam a ser desafiados. O primeiro volume da documentação de Silveira concentra-se em Marrocos e nas ilhas dos arquipélagos da Madeira e dos Açores. No segundo volume, Silveira catalogou os assentamentos portugueses em partes que ele descreve como “África Ocidental” e “África Oriental”. O terceiro volume descreve os assentamentos portugueses no Próximo e Extremo Oriente, enquanto o quarto volume foi principalmente sobre o Brasil (SILVEIRA, 1950). Os assentamentos portugueses, descritos por Silveira, partilham certos pontos em comum. Os mais antigos estavam localizados nas principais ilhas, ou ao longo das cidades costeiras de África, Índia e América Latina, e eram, acima de tudo, assentamentos portuários. Alguns estavam localizados em entrepostos de pesca existentes ou perto de onde podiam ter acesso a abastecimentos para as naus, quando faziam p. 241 escala de porto em porto. Os assentamentos construídos por portugueses podiam ser facilmente distinguidos dos assentamentos construídos localmente, devido ao enorme investimento financeiro do rei de Portugal e de abastados investidores que participavam no comércio e nas explorações emergentes. Os principais edifícios portugueses foram patrocinados pelo Estado; não foram construídas como favelas, embora as últimas acabassem por se multiplicar nas imediações, quando indivíduos em busca de oportunidades e comércio com os estrangeiros começaram a montar acampamentos ao redor dos assentamentos. A mais proeminente, mais antiga e maior, foi estabelecida na África Ocidental. Atualmente no Gana, Forte Elmina (forte da mina de Mina) foi estabelecida em 1482, para que os portugueses pudessem tirar partido do comércio, especialmente do ouro. As diferenças entre a arquitetura de fortaleza e a arquitetura tradicional da região podem ser observadas. Nos relatos das viagens de Marco Polo à Ásia, por volta de 1271, encontramos descrições das grandes cidades Caracoron e Samarkand (YULE; CORDIER, 1920; RUGOFF, 1960). Marco Polo descreveu Caracoron (a primeira cidade construída pelos mongóis) como uma cidade fortificada por um muro de terra, dado que a pedra era escassa, e descreveu Samarkand como uma cidade de grande riqueza e beleza. Ele observou fascinado a “nobre cidade de Suju” (Su-chau), localizada a cerca de 80 milhas a oeste de Xangai. Não hesitou em expressar a sua opinião sobre as pessoas que ele pensava serem “idólatras”, e os súditos do Grande Kaan (Khan), que usavam o papel-moeda para o comércio, em vez de apenas por troca ou moedas. Também não faltou admiração na sua descrição da grandeza e tamanho da cidade, que tinha um “circuito de cerca de 60 milhas”. Observou a presença na cidade de muitos comerciantes ricos, uma grande população e muitos artesãos habilidosos e comerciantes. Ele escreveu: “E você deve saber que nesta cidade existem 6.000 pontes, todas de pedra e tão altas que uma nau, ou mesmo duas naus ao mesmo tempo, poderiam passar por baixo de uma delas” (YULE, 1926, p. 181). p. 242 Também não podemos desconsiderar os seus relatos da cidade de Kinsay (King-sze), que significa “capital” em chinês, como o lugar mais bonito do mundo. Além da designação de King-sze, o nome original era Lin-ngan, mas agora é conhecido como Hang-Chau. Marco Polo observou que a cidade estava protegida por um marco natural e outro feito pelo homem: um rio, canais e muros. Fala-nos dos numerosos mercados que se faziam três dias por semana, com a presença de cerca de 40.000 a 50.000 pessoas que traziam consigo todos os abastecimentos alimentares para venda. Preocupado com os detalhes, Marco Polo escreveu: “todos os dez mercados eram abarcados por casas imponentes, e debaixo delas haviam lojas onde todos os tipos de artesanato são trazidos, e todos os tipos de artigos estão à venda, incluindo especiarias, jóias e pérolas. Algumas destas lojas são inteiramente dedicadas à venda de vinho feito de arroz e especiarias, que é fresco e constantemente preparado, e é vendido muito barato” (ibid, p. 202). Nas cartas de Pietro Della Valle (1843), durante as suas viagens pela Índia entre 1614 e 1626, não recebemos relatos de edifícios construídos tanto com materiais naturais como manufaturados. Apesar das meticulosas observações e documentações de Pietro Della Valle sobre comércio, religião, relações sociais, cidades, edifícios, plantas de templos e formas de adoração - histórias que somadas a um compêndio inacreditável na sua Roma de origem de então, lhe renderam o apelido de Il Fantastico (VALLE, 1843). Podemos recordar The Bernal Diaz Chronicles, The True Story of the Conquest of Mexico, momento em que começou a documentar as suas experiências e observações no Novo Mundo, em 1514, quando, partindo de Cuba, embarcou com colegas em expedições para conquistar novos territórios. O que colhemos das histórias de Diaz foi uma grande riqueza que causou o falecimento do Chefe Montezuma e do seu povo. Nestes relatos havia uma descrição elaborada dos monumentais palácios e santuários de onde eram feitas oferendas e sacrifícios, o kou. O ponto mais alto do kou - a plataforma de onde se podia ver os arredores - era alcançado através de 114 degraus íngremes. Descreveu detalhadamente atividades comerciais e de irrigação. Diaz estava atento para registar o início do que pode ser visto como forma urbana europeia no Yucatan após a conquista do México. Depois que capturamos a grande cidade e alocamos canteiros de obras, decidimos construir uma igreja dedicada a São Tiago, nosso patrono e guia, no local da kou. Quando abrimos as fundações que a sustenta, encontrámos uma grande quantidade de ouro, prata, chalchiuis, pérolas e outras pedras. Um colonizador no México que foi designado para outra parte do mesmo local, encontrou as mesmas coisas (DIAZ. In: IDELL, 1956, p. 161). Os quatro volumes de Coleções Gerais das Viagens e Descobertas feitas pelos Portugueses e Espanhóis (1796), relatam as experiências de diversas pessoas que visitaram as Índias Orientais, as Índias Ocidentais e outras partes do mundo a partir do século XV. As descrições das viagens mencionam cenários e eventos locais, assim como as experiências dos exploradores. Ambientes surpreendentes onde os edifícios fossem feitos de materiais naturais e manufaturados, não foram encontrados. Também pode- p. 243 mos citar a documentação de Stephens (1841) das suas viagens pela América Central, Chiapas e Yucatan. Além das narrativas logísticas sobre como se deslocou de um lugar para outro, e suas negociações, recebemos relatos de assentamentos antigos, desenhos e sobre a extensão de grandes cidades desaparecidas como Copan, onde ele conduziu levantamentos arqueológicos (STEPHENS, 1841). Também não havia nada nos seus registos que descrevesse o tipo de arquitetura que agora chamamos de arquitetura de favela. Relembrar aqui os relatos dos viajantes, não recupera a nostalgia das culturas urbanas e dos modos de construção de um passado distante. Em vez disso, a sua ausência demonstra que os tipos de arquitetura em questão não faziam parte do que antes era considerado tradição de construção pré-industrial, nessas partes do mundo - África, Ásia e América Latina - onde se encontravam. Foram as construções da era industrial, que continuam a evoluir como resultado da rápida expansão do capitalismo global, nas formas atuais de produzir serviços e bens, distribuí-los e consumi-los. O encontro entre historiadores e profissionais de arquitetura com os tipos de arquitetura em causa, foi visto como um problema social, que precisava ser estudado separadamente dos problemas das práticas modernas em arquitetura, antes que pudessem ser resolvidos. O ensaio de Bernard Rudofsky (1964) que explora diversos tipos de edifícios, que não conseguiu situar como produções tradicionais, vernaculares ou modernas, não surpreendeu (RUDOFSKY, 1964). Confrontando o vernacular com as produções arquitetónicas urbanas "modernas" das classes desprivilegiadas p. 244 É fácil interpretar erradamente o catálogo de Bernard Rudofsky para a exposição no MOMA, Nova Iorque, Arquitetura sem Arquitetos (RUDOFSKY, 1964), e confundir as suas intenções com o tipo de produções arquitetónicas modernas das classes desprivilegiadas que estamos aqui a discutir. Se analisarmos cuidadosamente as imagens que ele apresentou, e revermos as extensas legendas que preparou para elas, não restará dúvida de que estava preocupado principalmente com o que ele via como práticas arquitetónicas “vernaculares” de diferentes cantos do mundo. Ele estava interessado em como a geografia, a tecnologia, os materiais, a cultura, motivaram pessoas em diferentes partes do mundo a produzir diferentes tipos de objetos arquitetónicos, incluindo anfiteatros, vilarejos em cima de colinas, locais de sepultamento, cidades trogloditas, habitações subterrâneas, enclaves defensivos, assentamentos em penhascos, aldeamentos flutuantes, celeiros e tendas nómadas transportáveis e desmontáveis. Como os arquitetos e os teóricos do seu tempo, Rudofsky também estava preocupado com a forma como as pessoas que viviam em diferentes regiões eram capazes de criar elementos e espaços de construção únicos, que desempenhavam tanto funções tangíveis como estéticas. Ele estudou arcadas, celeiros, ruas cobertas e bazares, loggias, portas e janelas, pináculos e torres, ameias e variedades de ornamentos e tectónica de construção. Era óbvio que enquanto ele criticava as visões dominantes do que constituía a arquitetura, quando escrevia os vocabulários que usava para apresentar as suas ideias, estes estavam limitados pelos conceitos predominantes de elementos arquitetónicos e componentes de edifícios, para os quais os arquitetos e teóricos seus contemporâneos foram atraídos. Talvez, e como ele explicou no catálogo, a falta de informação académica possa ter causado a confusão da arquitetura vernacular com as produções arquitetónicas urbanas das classes desprivilegiadas, já que estas tinham várias características de design em comum. Também ficou claro que Rudofsky estava preocupado com o papel que os historiadores estavam a desempenhar ao excluir certos grupos de produções arquitetónicas do século XX, dos textos que se estavam a tornar nos livros canónicos modernos de história da arquitetura. Ele escreveu: “Além disso, a história da arquitetura como a conhecemos, é igualmente tendenciosa no plano social. É um pouco mais do que um quem-é-quem dos arquitetos, que comemora o poder e a riqueza; uma antologia de edifícios de, por e para os privilegiados - as casas de deuses verdadeiros e falsos, de príncipes mercantes e príncipes de sangue - sem uma única palavra sobre as casas de pessoas menores” (RUDOFSKY, 1964, p. 9). Ele sentiu, justamente, que o historicismo estava em declínio e que a maioria dos edifícios do século XX, públicos ou privados, bancos ou centros cívicos, podiam ser projetados sem a validade de citações históricas, e acusou os historiadores de terem uma mente muito limitada na sua definição daquilo que constituía produções arquitetónicas. A sua intenção para o catálogo da exposição era ampla e intransigente: “Arquitetura sem Arquitetos procura quebrar os nossos limitados conceitos da arte de construir, introduzindo o mundo desconhecido da arquitetura sem-linhagem. É tão pouco conhecida que não temos sequer um nome para ela. Por falta de um rótulo genérico, vamos chamá-la de vernacular, anónima, espontânea, indígena, rural, dependendo do caso” (IBID., p. 15). p. 245 Desta definição arrebatadora, podemos deduzir que ele estava ciente dos debates que estavam a surgir sobre o tema quando estava a escrever o livro. Além disso, o pensamento e a abordagem de Rudofsky no catálogo também foram influenciados por certas ideias predominantes sobre o modernismo. Primeiro, ele percebia que a arte exótica, que ele definiu como objetos que eram “estranhos” ao estudioso ocidental, eram chamados de arte “primitiva”, e que isso impactou o desenvolvimento da arte moderna no início do século XX. Ele lamentou que a arquitetura exótica ainda não tivesse tido influência semelhante nos circuitos do design. Posteriormente, e embora ele não o tenha declarado no seu livro, não podemos descartar a possibilidade de ter antecipado que a sua obra poderia ter influência no cenário arquitetónico, como teve o catálogo O Movimento Moderno de Phillip John e Alfred Hitchcock de 1932. Ele escreve: A presente exposição é uma apresentação prévia de um livro sobre o assunto, o veículo da ideia de que a filosofia e o know-how dos construtores anónimos apresenta a maior fonte inexplorada de inspiração arquitetónica para o homem industrial. A sabedoria a ser retirada vai além das considerações económicas e estéticas, pois toca o problema muito mais difícil e cada vez mais problemático de como viver e deixar viver, como manter a paz com os vizinhos, tanto no sentido paroquial quanto no sentido universal (RUDOFSKY, 1964, p.5). Da citação acima é plausível que Rudofsky tenha antecipado o que hoje costumamos chamar de design sustentável, mas na época em que ele estava a escrever, essa ideia estava a ser expressa no apelo à mudança na profissão, como vimos no trabalho de Lynch (1960), Jacob (1961), Rapoport (1969). Os textos anteriores foram seguidos por livros críticos escritos por Venturi, Scott-Brown e Izenor (1972), Fathy (1973), Alexander (1977, 1979), Rowe e Koetter (1978). Teorização das produções arquitetónicas das classes desprivilegiadas p. 246 O ensaio pioneiro de Rudofksy estimulou debates entre os teóricos sobre o onde e o como situar a arquitetura sem-linhagem. Turner (1967, 1968) já tinha proposto como os assentamentos espontâneos na América Latina poderiam ser melhorados para os habitantes. Turner baseou a sua hipótese em observações de campo sobre como a barriada Cuevas, fora de Lima, Peru, foi desenvolvida após a invasão de terras em 1960. Ele declarou: “Sugerir que as normas de planeamento e construção destinadas a melhorar e manter os modernos padrões habitacionais têm o efeito oposto em muitas partes do mundo pode parecer herege” (TURNER, 1967, p. 167). Além disso, ele defendia que as pessoas que residem em áreas urbanas com pouca ou nenhuma moradia e que constroem o seu próprio abrigo estão, antes do mais, menos preocupadas com os “padrões iniciais da casa” do que com o “layout inicial”. Os padrões estabelecidos pelo município, embora bem intencionados, foram obstáculos para as pessoas que têm poucos meios económicos, e quando as pessoas encontram um lote de terreno e têm a certeza de que este lhes pertence, gradualmente fazem melhorias nele, inclusive, expandindo a casa. Para o recém-imigrante que procura participar da experiência moderna na cidade, o mais importante é garantir a posse do terreno sobre o qual ele pode vir a construir a sua casa. Após instalar-se na sua nova casa, os padrões exigidos pelo governo podem ser gradualmente implementados. Além disso, Turner observou que os governos abordaram o problema pela ordem inversa, fornecendo apartamentos ou casas acabadas sempre que podiam. Habitualmente nunca existiam unidades de habitação suficientes para responder às necessidades de todos, nem da forma como estavam acostumados a viver. Em vez disso, as habitações governamentais são construídas de acordo com os ditames dos arquitetos de elite, sobre como a vida urbana e moderna deve ser vivida, e a custos mais altos do que se as pessoas tivessem que desenvolver as suas casas por conta própria. Num outro ensaio publicado em 1968, Turner defendeu a habitação qualitativa na qual as relações entre as pessoas e o seu ambiente têm precedência sobre as habitações quantitativas que são construídas com altos padrões governamentais, mas que estão além dos meios das pessoas para as quais estas foram construídas (TURNER, 1968). Uma das definições mais sucintas da arquitetura vernacular, em termos do que não é e do que é, em diversas partes do mundo, foi feita por Paul Oliver, cujas inúmeras publicações sobre o tema continuam a ser indispensáveis. Oliver lembra-nos que a arquitetura deriva do conceito de vernacular nos estudos linguísticos, onde a palavra significa “idioma indígena”. A palavra tem raízes no latim, vernaculus, que significa “nativo”. Portanto, pode-se sugerir que a arquitetura vernacular se refere às formas de construção numa localidade, pois pode ser expressa em tectónica, estilos, tecnologia, materiais e todos os modos de representações visuais. Uma nota cautelosa segue a analogia de Oliver entre a linguagem vernacular e as práticas arquitetónicas. O/A leitor/a é lembrado/a que a palavra vernacular passa a ser usada num sentido amplo para representar até mesmo os empreendimentos suburbanos comercialmente produzidos em massa pelos prospetores imobiliários, devido à sua uniformidade e p. 247 facilidade de construção, que sugere caráter de bairro ou regional. Que a arquitetura popular não é o vernacular, é o que Oliver pesquisa no seu trabalho, pois a arquitetura vernacular compreende as residências e todos os outros edifícios do povo (OLIVER, 1995). Em relação aos seus contextos ambientais e recursos disponíveis, estes são habitualmente proprietários - ou construídos em comunidade, utilizando tecnologias tradicionais. Todas as formas de arquitetura vernacular são construídas para responder a necessidades específicas, acomodando os valores, economias e formas de vida das culturas que as produziram” (Oliver, 1997, p. xxiii). Oliver também nos dá pistas sobre os materiais que não pertencem à construção das práticas arquitetónicas vernaculares que ele define. É a rejeição da arquitetura vernacular pelos políticos e pela classe média emergente como símbolo de atraso, que resulta na adoção de materiais industriais para a construção de edifícios que representam o estatuto social desejado. Ele também apresentou características comuns entre os edifícios vernaculares em diferentes partes do mundo: apesar das distâncias geográficas e da evolução das formas de construção, uma série de práticas arquitetónicas vernaculares assemelham-se a soluções que foram desenvolvidas de forma independente, pois estavam enfrentando desafios climáticos semelhantes, utilizando as capacidades e a tecnologia que estavam à sua disposição. Na produção de significados, ele escreve, a arquitetura vernacular pode representar valores comunitários, sistemas de crenças, visão de mundo, e posteriormente pode tornar-se modificadora das relações e práticas sociais entre os grupos. A arquitetura vernacular pode, assim, simbolizar a cultura espiritual e a cultura material de um povo. Era comum que os edifícios e outras estruturas vernaculares fossem construídos por sociedades especializadas ou por meio de conhecimentos e técnicas transmitidas de geração em geração. p. 248 Abu-Lughod (1992) adotou uma abordagem global do tema num breve ensaio crítico que interrogou a validade e o valor de termos como “Primeiro e Terceiro Mundo” e “países desenvolvidos, em desenvolvimento e subdesenvolvidos”. Este questionamento estendeu-se a termos como setores da economia “formal” versus “informal”, e de assentamento “espontâneo” versus “projetado”, o Ocidente versus o Oriente, ou o Norte versus o Sul Global. Para a autora, a economia global estava demasiadamente interconectada para que estes termos tivessem validade. As pessoas que vivem no chamado “assentamento informal” poderiam estar a produzir produtos primários que são exportados para o mundo “desenvolvido” e, independentemente de onde estejam, na cadeia da produção económica, estão conectadas com o circuito global da mesma forma como aquelas que estão a trabalhar no chamado “setor formal”, ou no “mundo desenvolvido”. A leitura atenta do artigo de Abu-Lughod sugere que ela estava a mostrar como as experiências da modernidade conectam as pessoas em diferentes esferas da vida, diferentes localizações geográficas e em diferentes quadros sociais, embora de maneiras diferentes, que são exclusivas a grupos e indivíduos. Seguidamente, ela escreveu que “estas mudanças, na esfera económica, refletem-se na mudança dos padrões de vida e, inevitavelmente, também no ambiente construído. Por isso, a facilidade de distinguir a arquitetura ‚tradicional‘ da (qual?) ‚não-tradicional (?)‘, que em muitos aspectos tomamos como certa, não está mais presente” (ABU-LUGHOD, 1992, p. 8). Abu-Lughod afirmou que as dicotomias surgiram devido ao interesse dos teóricos em fazer distinções entre coisas e períodos, e ao longo dessa trajetória, três dicotomias foram usadas na caracterização de diferentes estágios de desenvolvimento. Estas, constituem os conceitos que articulam os assentamentos humanos “do rural ao urbano, através de um processo chamado urbanização; do pré-industrial ao industrial, através de um processo chamado industrialização; e do atrasado ao moderno, através de um processo chamado modernização”. A ironia, como ela indicou, é que independentemente da fase de desenvolvimento, o termo “tradicional” representa o ponto de partida para os três estágios: «rural, pré-industrial e atrasado». Consequentemente, não é mais viável precisar concretamente o que queremos dizer com o termo «tradição». Além disso, sempre que usamos o termo «tradição», por exemplo, em referência à determinação de tipos de moradias residenciais, o termo geralmente confunde-se com o termo “vernacular”, e isso implica “aquela porção da cultura indígena ou local que ainda existe fora dos eventos e da influência internacional” (ABU-LUGHOD, 1992, p. 9). Extraído da sua experiência pessoal durante a sua residência num bairro na Venezuela, Peattie (1992) discutiu o tema da habitação urbana das classes desprivilegiadas como uma questão de convergir e divergir experiências e valores humanos entre as pessoas. Como fator de convergência de valores, as pessoas que são vistas como moradores à margem da experiência urbana, utilizam o que têm para aproveitar ao máximo os seus ambientes, da mesma forma como aqueles que têm muito o fazem. Embora os resultados sejam diferentes, as intenções são as mesmas, é a necessidade de prover o próprio abrigo e segurança. Como fenómenos divergentes e conflitantes, os urbanistas que regulam as partes planeadas da cidade, desenvolvem designs e ideias que contrastam com as ideias dos “moradores” imigrantes, oriundos das áreas rurais, que constroem nas partes não planeadas da cidade, e ambos os lados têm valores estéticos diferentes. Os conflitos surgem do privilégio dado às grandes indústrias e infraestrutura - estradas pavimentadas, drenagem, abastecimento de água - para suportá-la, o que raramente existe em muitas partes dos bairros irregulares. p. 249 Independentemente dos conflitos, os moradores contribuem para uma economia maior à sua maneira, como as pessoas que supostamente fazem no setor formal. De acordo com Peattie, um equilíbrio pode ser alcançado combinando a baixa tecnologia encontrada no bairro e os altos e dispendiosos métodos de construção pela elite que depende principalmente do que é considerado material moderno. Os japoneses, afirma Peattie, acertaram porque desenvolveram uma tradição na qual a alta tecnologia e a baixa tecnologia, como aço, cimento, eletricidade, bambu e papel podem ser usados simultaneamente para criar ambientes sensíveis e adaptáveis (PEATTIE, 1992). p. 250 Em 1993, a AlSayyad preparou um estudo comparativo das relações e diferenças entre as culturas e os processos de ocupação na América Latina e no Oriente Médio. Ele abordou o ensaio a partir da maior experiência global das décadas que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950 e 1960, quando os artigos sobre desenvolvimento nacional e pobreza nos países em desenvolvimento estavam a florescer. Aqui, algo deve ser salientado. Esta foi uma época em que os planos de desenvolvimento nacional, frequentemente ao longo do modelo soviético, foram adotados e implementados em vários países descolonizados em África, no Oriente Médio e na Ásia. AlSayyad indicou que artigos sobre desenvolvimento dos anos 1950 e 1960 viam o surgimento da nova habitação urbana autoconstruída como sintomática da cultura da marginalidade, resultando na ideia de que as comunidades de não-cidadãos, nos centros metropolitanos do mundo, situavam-se nas margens da sua economia nacional. Tais comunidades representavam o conceito de Terceiro Mundo, que AlSayyad sugeriu como uma categoria do cenário económico, não era mais válida. Entretanto, AlSayyad escreveu que a realidade de que sempre houve certas relações económicas e políticas simbióticas entre as comunidades que supostamente viviam à margem é desconhecida dos economistas do desenvolvimento e dos Estados nas suas respectivas regiões provinciais e nacionais. A partir de seis estudos de caso na Colômbia, Venezuela, Peru, dois no Egito e um na Arábia Saudita, AlSayyad explicou que os processos nos quais essas comunidades foram estabelecidas na América Latina e no Médio Oriente, incluem “invasão de terras, formação social, consolidação física e maturidade urbana” (ALSAYYAD, 1993, p. 34), e cada um representa uma fase no desenvolvimento dos assentamentos ou ocupação, conforme o caso. O ponto mais importante, nos processos de formação, é nos países latino-americanos, onde os partidos ou agentes políticos estiveram envolvidos na mobilização de moradores de ocupações e na invasão de terras. No entanto, no Egito, os pobres urbanos construíram sobre a infraestrutura cultural existente e não se alinham com o aparato político. Na Arábia Saudita, os pobres urbanos exploraram as brechas arcaicas da lei Islâmica sobre como a terra poderia ser ocupada e cuidada pelas pessoas como se fosse sua, para se estabelecerem numa parte de uma propriedade. Em 1995, AlSayyad publicou outra obra que ampliou as ideias do seu ensaio e do ensaio de Abu-Lughold. Ele identificou quatro etapas na formação do mundo contemporâneo, nomeadamente “o período insular, o período colonial, a era da independência e da construção da nação, e a era atual da globalização” (ALSAYYAD, 1995, p. 13). Em cada época, existiam maneiras de construir em diferentes partes do mundo. Como a era insular foi marcada principalmente por experiências sociais localizadas com possíveis interações com grupos étnicos vizinhos, com poucas influências externas distantes, as formas de construção e a tecnologia de construção eram igualmente locais e era dada atenção às formas de relacionamento com o ambiente. Os badgirs, as chaminés de vento de Hyderabad, na Índia, e as residências trogloditas afundadas nas Províncias Hunan da China são exemplos de tais métodos locais de construção. Podemos chamar a este método de construção tradicional ou vernacular. Fazendo eco à voz crítica de Abu-Lughold sobre as divisões do mundo em diferentes graus de desenvolvimento, assim como Primeiro versus Terceiro, AlSayyad reiterou como a era colonial enfatizava as categorizações humanas feitas juntamente com raça, tecnologia, habilidades administrativas, conceitos subjetivos de civilidade, poder, tradição e modernidade. Em todos estes casos, as classificações eram inclinadas contra os não-europeus, sendo as pessoas de pele mais escura aquelas que recebiam menor classificação nessas categorias. Na construção civil, a era colonial deu início a formas híbridas que eram emprestadas da Europa e das formas tradicionais colonizadas, e um bom exemplo disso é o bungalow britânico, uma amálgama de diferentes métodos de construção extraída da Europa e das localidades onde eram construídas. Pode-se dizer que o bungalow bengali deu origem a este tipo de casa. Uma analogia semelhante pode ser feita com a casa holandesa na Indonésia. A terceira, a era da nação e dos projetos de modernização, inauguraram ideias concorrentes que foram, por um lado, zelosas por se modernizarem e, por outro, procuraram manter alguma semelhança com a tradição indígena. Os métodos tradicionais de construção eram frequentemente vistos como bens culturais ou símbolos de atraso que deveriam ser erradicados. Esta indecisão criou ambientes urbanos que eram indeterminados, nos quais novas formas de habitação em arranha-céus varreram das ruas as formas térreas de morar nesses lugares. Muitas vezes, havia conflitos entre valores espaciais e culturais, assim como serviços de utilidade básica necessários e formas individuais versus formas comunais de utilização dos espaços. p. 251 Na quarta fase, havia o desejo de corrigir o desequilíbrio, um fenómeno que se concentrava na nostalgia cultural, como visto na obra de Hassan Fathy do Egito, que projetou e construiu a cidade de Nova Gourna, um lugar que AlSayyad descreveu como mais uma obra-prima para impressionar os seus homólogos ocidentais, do que um verdadeiro empreendimento em arquitetura para os pobres do Egito. AlSayyad explicou que alguns ícones visuais (por exemplo, abóbadas e cúpulas), usados nos edifícios de Nova Gourna, tinham significados diferentes para as pessoas da região, que os associavam a santuários e tumbas para os mortos. O trabalho de Louis Khan em Dacca, no Bangladesh e o Edifício do Parlamento do Kuwait, de Jorn Utzon, foram ambos realizados a partir dessa nostalgia cultural. Dito isto, AlSayyad também observou que o projeto pioneiro de Fathy influenciou a próxima geração de arquitetos que praticam na região sobre como combinar elementos culturais com os elementos e a tecnologia contemporânea. Em ambos os ensaios, AlSayyad dissolve as produções arquitetónicas das classes desprivilegiadas como objetos de nosso tempo, com a implicação de que elas podem ser consideradas modernas, mesmo que ele nunca tenha atravessado completamente essa linha (ALSAYYAD, 1993; 1995). p. 252 Um ambicioso estudo intercultural de Peter Kellett e Mark Napier (1995), analisa a arquitetura dos pobres urbanos na África e na América Latina. Kellett e Napier reviram a literatura sobre o tema, a partir de meados do século XX, observando como diferentes teóricos - por exemplo, John Turner, Roderick Lawrence, Amos Rapoport, Paul Oliver, e David Stea e Mete Turan - exploraram a questão do assentamento espontâneo e da arquitetura vernacular. O objetivo dos autores era encontrar um marco teórico com o qual pudéssemos entender as formas de arquitetura construídas pelos pobres urbanos, indo além dos processos nos quais os assentamentos eram formados, e que acreditavam ter sido o foco dos estudos feitos até o momento sobre este tema. Uma premissa do ensaio é que a arquitetura vernacular é bem compreendida e que surgiram alguns acordos gerais entre os teóricos. No entanto, embora as causas sociais da arquitetura espontânea já tivessem sido discutidas, as formas propriamente ditas não foram estudadas. Os objetivos do ensaio e a premissa, pode-se assim dizer, ecoam o ponto de partida do ensaio de Amos Rapoport de 1988. Além disso, como o primeiro ensaio de AlSayyad, acima mencionado, a comparação entre os assentamentos espontâneos em Santa Maria Columbia e o de Inanda, na cidade de Durban, África do Sul, traz luz sobre as diferenças contextuais e como tais assentamentos poderiam ocorrer no território. Kellet e Napier teceram algumas observações no final do seu estudo: a forma do assentamento impermanente não é constante; são melhorados ou regularizados num processo de consolidação, dependendo dos contextos e das restrições de vida, ou das oportunidades disponíveis, dos moradores. “Poder-se-ia argumentar que onde o caminho para a permanência não é tomado, seja por escolha ou por causa de restrições, ou ainda, por causa da combinação de ambos, as estratégias desenvolvidas pelas pessoas para sobreviver a tais situações, também levam a um tipo de vernacular, uma linguagem de construção falada por pessoas excluídas da linguagem formalizada e mistificada da cidade do final do século XX” (KELLET; NAPIER, 1995, p. 21). Um ponto saliente nas observações de Kellet e Napier é que tanto os assentamentos formais quanto os informais, onde quer que coexistam, um ao lado do outro, são geralmente interdependentes e emprestam-se um do outro em termos de mão-de-obra, serviços, materiais, habilidades, manutenção e modos de vida quotidianos, tais como, o comércio e o emprego, “efetivamente, os assentamentos informais conseguiram a sua identidade através do que não são, ou do que não têm, comparativamente ao formal” (KELLET; NAPIER, 1995, p. 22). Ananya Roy (2001) preparou um interessante ensaio interdisciplinar que se baseou na arquitetura, literatura e lutas anticoloniais pela independência na Argélia, bem como na pintura, para levantar questões importantes sobre o que constitui modernismo puro ou incorruptível, modernidade, pós-modernismo e tradição. Estas categorias, escreve ela, tendem a fomentar o início e o fim do(s) modernismo(s). Entretanto, Roy estava mais interessada em como cada categoria é um reforço do modernismo, ou modernidade anterior, e, subsequentemente, na sua maioria são “presentes excedentes”, em vez de fins e de começos. Aquilo que é chamado de fim ou começo é na verdade um, e o mesmo, e mais apropriadamente, modos de rejuvenescimento. Aquilo que levanta a questão principal do ensaio é: quais as modernidades, vistas como as experiências do presente, são corruptas e não fazem parte da tradição? Se estendermos esta pergunta ao nosso tema, podemos perguntar: será que as favelas e os edifícios dentro delas representam modernismos corruptos que não pertencem às nossas visões de mundo e experiências das práticas arquitetónicas modernas e tradicionais? Olhando para as experiências de meados do século XIX até o início do século XX - por exemplo, a Exposição de 1851 em Londres, com o Palácio de Cristal e a sua receção, e a Exposição do Palácio de Cristal de 1853 em Nova Iorque - até que ponto o modernismo começa e também se torna tradicional? Mais pungentes são os exemplos de conjuntos arquitetónicos de ícones antigos selecionados na Las Vegas Boulevard, e que levantam questões de autenticidade e originalidade. O que acontece quando tais “cópias” de exposições e de monumentos arquitetónicos, em lugares como Calcutá, onde as infraestruturas para mantê-los no nível em que se encontram em Las Vegas estão ausentes? Além disso, utilizando exemplos da guerra da independência p. 253 argelina, em meados do século XX (que foram documentados no filme A Batalha de Argel), Roy defende que ser moderno, antigo e tradicional não é algo estável, em vez disso, pode depender de quem está decretando tais dualidades e como elas são exploradas. Por exemplo, enquanto que os franceses reclamavam sobre a opressão nas mulheres da Argélia sob o véu, as mulheres usavam-no, convenientemente, para desafiar os franceses. Da mesma forma, quando se tornou conveniente que as mulheres se revelassem para realizar as agendas violentas da guerra, disfarçando-se de “mulheres modernas” francesas que estavam do lado da França contra os esforços das lutas independentes, o véu também agiu como um expediente para expandir uma causa em particular. A cidade de Brasília é outro caso em que a capital modernista de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer tinha, e tem, favelas paralelas. É impossível descrever uma como moderna e a outra como não-moderna. No final, Roy rejeita a noção de que as favelas são arquiteturas tradicionais ou vernáculas (ROY, 2001). Tais posicionamentos reforçam as medidas excludentes, impedindo as pessoas que moram nas cidades e casas autoconstruídas de participar nos benefícios do modernismo e da modernidade, como pode ser aplicado a elas nas suas localidades. Depois de rever cuidadosamente a maioria dos ensaios, embora nenhum deles venha a estipular que a arquitetura das classes desprivilegiadas são edifícios arquitetónicos modernos e contemporâneos, contêm implicações que levam-nos a chegar a essa possibilidade. Mais importante ainda, os ensaios fazem o/a leitor/a perceber as experiências de modernidade, inerentes aos edifícios em causa, mais do que quaisquer rótulos que lhes queiram conceder. A teoria da transição: os elos entre as produções arquitetónicas vernaculares e modernas p. 254 Em 1988, Amos Rapoport publicou uma proposta sobre a produção arquitetónica das classes economicamente desprivilegiadas no ensaio “Assentamentos Espontâneos como Design Vernacular” (RAPOPORT, 1988). O objetivo de Rapoport era encontrar o marco conceitual na qual a consideração cultural e formal dos assentamentos espontâneos pudesse ser melhor alcançada. Na sua opinião, “se o design vernacular for definido corretamente”, descobriremos que “os assentamentos espontâneos podem ser mostrados como seu contemporâneo mais próximo” (RAPOPORT, 1988, p. 53). Rapoport (1969) elaborava sobre o aspecto cultural do seu livro inaugural Casa, Forma e Cultura onde ele afirma que os assentamentos espontâneos são uma “paisagem cultural” (RAPOPORT, 1969). Como ponto de partida, ele rejeitou a palavra “assentamento de ocupação” porque é um termo jurídico e político que pode ser explorado pelo poder. Ele também estava ciente de que o poder pode não excluir aqueles que constroem assentamentos espontâneos, se achar vantajoso consolidar os seus posicionamentos. De qualquer modo, este ensaio tem uma profundidade e uma implicação que não foi articulada por todos os outros. Ele enumerou certas características dos assentamentos espontâneos que os tornam paisagens culturais, e sugeriu que o design fundamental consiste em “os esquemas estão em estado de fluxo e incluem tanto elementos centrais da cultura tradicional quanto elementos recentemente introduzidos, altamente desejados pelos construtores e utilizadores” (RAPOPORT, 1988, p. 53). A maior contribuição do ensaio, e o que o diferencia de todos os discursos sobre as produções arquitetónicas das pessoas desprivilegiadas, é visível quando estudamos cuidadosamente a fundamentação que Rapoport definiu para entender o assentamento espontâneo como um processo e como um objeto construído - que é o produto do processo. Ele sugeriu “características de processo” que vão desde “(1) identidade do designer, (2) intenções do designer .... (16) forma de mudança temporal, e (17) extensão do compartilhamento de conhecimento sobre design e construção” (Rapoport, 1988, p. 17). O facto dos utilizadores serem também os designers em assentamentos espontâneos, torna a identidade dos construtores importante e transparente, e não há dúvida de que as intenções dos designers sempre foram de executar as necessidades espaciais dos utilizadores, com o máximo aproveitamento dos recursos. Além disso, a forma da mudança temporal também pode ser observada, geralmente relacionada com a mudança de rendimentos e no acreditar de que o terreno em que o edifício é construído virá a pertencer ao utilizador. A extensão do compartilhamento do conhecimento de design e construção entre os construtores que normalmente são utilizadores e membros da comunidade, é igualmente importante. Isto deve-se, em parte, às circunstâncias económicas e ao caráter multifacetado dos construtores em aprender uns com os outros, ajudar e proteger os interesses uns dos outros na construção das comunidades espontâneas. Além disso, ele observou 20 características do produto, que incluem: “(1) grau de especificidade cultural e de lugar, (2) modelos, plano e formas específicos, e morfologias, ... (19) capacidade dos ambientes para comunicar efetivamente com os utilizadores, e (20) importância relativa das características semifixas vs. elementos fixos” (RAPOPORT, 1988, p. 56). Normalmente são as capacidades e os materiais disponíveis para os construtores, que são também p. 255 os utilizadores dos espaços, que determinam o que é construído e, até certo ponto, a intenção dos construtores não é realmente replicar os cenários espaciais em que viviam quando estavam nas suas aldeias antes de migrarem para os cenários urbanos, mas sim de criar espaços que possam facilitar a vida no ambiente urbano para onde migraram. Assim, os modelos, planos e formas específicos e as morfologias dos objetos construídos tendem a ser como caixas, retilíneos e mínimos, dando assim a impressão de uniformidade dentro dos assentamentos. Rapoport foi responsável por isso ao enfatizar que os espaços estão “em estado de fluxo e incluem tanto elementos centrais da cultura tradicional quanto elementos recém introduzidos altamente desejados pelos construtores” (IBID.). p. 256 O que é significativo nas características do processo e do produto é que estas podem ser observadas e verificadas, e mostram como o vernacular transita do assentamento étnico ou “tribal” para os tecidos urbanos, nos ambientes cosmopolitas onde estão localizados. Rapoport escreveu que em relação à cultura, “geralmente, o que é apoiado são, entre outras coisas, grupos de parentesco e outras estruturas sociais, uma variedade de instituições intermediárias, rituais e festivais, linguagem, hábitos alimentares e uma ampla gama de sistemas de atividades” (Rapoport, 1988, p.58). O exemplo que utilizo para expandir as influências culturais é das áreas conhecidas como Cape Flats, também conhecidas popularmente como Khayelitsha, fora da Cidade do Cabo, África do Sul. Os assentamentos têm migrantes de diferentes grupos étnicos, incluindo o povo indígena predominante Khosan, o povo Ndebele, o povo Zulu, assim como migrantes de outros países africanos como Zimbabué, Zâmbia e incluindo pessoas da África Central, Oriental e Ocidental. A partir desta perspectiva, não há dúvida de que a observação do Rapoport está no horizonte, mas também levanta novas questões que lembram as citações das revisões bibliográficas anteriores, acima mencionadas. Embora alguns dos imigrantes ainda possam estar empregados no setor agrícola ou afins, seja por conta própria ou em empregos formais, a maioria são motoristas de táxi e de autocarro, seguranças em bancos, escolas, faculdades, universidades e hospitais, e enfermeiros na Cidade do Cabo metropolitana. Estão envolvidos em todos os aspectos da economia, incluindo jardinagem, construção civil e manutenção da infraestrutura metropolitana. Muitos frequentam escolas e adquirem aprendizagem técnica para conseguirem aptidões que lhes permita mudar para empregos mais bem pagos. Isto é o que Rapoport reconhece como “... os padrões apropriados de atividades económicas, trabalho, compras e saúde, e seus ambientes associados são altamente significativos” (Rapoport, 1988, p. 59). Entre as características sociais não quantificáveis apoiadas pelo assentamento espontâneo em Khyeletsha estão experiências de emprego e formas de existência no ambiente urbano que podem levar à competição entre os sindicatos. Nos locais onde os sindicatos ainda não estejam formados, os conflitos podem irromper nas comunidades ao longo das linhas tribais. Estamos cientes da violência popularmente apelidada na imprensa como “ataques de xenofobia” envolvendo a morte de imigrantes africanos estrangeiros em grandes cidades da África do Sul, principalmente nas townships, em 2007 e 2008. Embora eles não possam ser justificados em nenhuma circunstância, a violência foi causada pela rivalidade económica entre as partes interessadas nas comunidades espontâneas que infelizmente se alinharam como indígenas contra imigrantes. A principal causa da violência foi a forma de ganhar a vida na sociedade urbana, a competição pelo emprego. A minha atenção nesta passagem não é para focalizar na violência, mas para demonstrar como a hipótese de Rapoport sobre o assentamento espontâneo, confirma cenários que estão a passar de ambientes vernaculares para ambientes contemporâneos, independentemente do facto de que nas observações de Rapoport estes pareçam compartilhar mais características com os ambientes vernaculares do que com os ambientes sociais modernos e contemporâneos. Tendo em mente que as características partilhadas entre assentamentos espontâneos e assentamentos vernaculares irão variar de contexto para contexto, e podem até não ser as mesmas em regiões diferentes no mesmo país, como Rapoport observa, podemos expandir as suas ideias fazendo a pergunta: se o meio predominante de existência - os “padrões de atividade” e as experiências vividas quotidianamente - nos assentamentos espontâneos, é mais sobre os modos de vida no centro urbano moderno e contemporâneo, do que nas sociedades vernaculares que os assentados deixaram para trás, como poderemos reconciliar os padrões de atividade e as experiências vividas quotidianamente, com as articulações espaciais que eles criaram? Olhando para o plano do assentamento ndebele, poderíamos descobrir que o conjunto habitacional criado nas áreas rurais mantém certas características morfológicas orgânicas, que o distinguem dos arranjos urbanos. Além disso, deve-se ter em mente que, embora durante as etapas iniciais de desenvolvimento, as estruturas urbanas possam não ter tido acesso por estrada asfaltada, nem drenagem e eletricidade, os moradores espontâneos iriam traçar a sua rede domiciliar que mais tarde seria regularizada pelo fornecimento de estradas pavimentadas, eletricidade e drenagem, pelo Governo Provincial do Cabo. A organização dos espaços interiores é simples, mas já não estão necessariamente em conformidade com os conjuntos tradicionais das suas aldeias, onde os imigrantes cresceram. O estudo p. 257 dos espaços que são dedicados aos padrões de atividade como cozinhar, conviver, dormir e casas ao ar livre não estão mais espalhados como unidades individuais ligadas entre si num conjunto localizado na aldeia. Em vez disso, a compressão começa a mostrar a economia de espaço, mas acima de tudo a assimilação sincrética de uma disposição de casa de vida urbana. A vedação da casa, para proporcionar segurança e sensação de privacidade do espaço urbano, continua a ser um fator no design, mas o espaço interno do espaço exterior definido pela cerca não funciona necessariamente como o espaço interno do espaço exterior que se encontraria num conjunto rural. Acima de tudo, a expressão mais radical está no uso do material de construção Podemos observar como a estrutura simples de madeira é revestida com zinco, compensado, tábuas e outros tipos de materiais de revestimento para construir edifícios multiusos. O mais intrigante, e que confirma que estamos a lidar, agora, com um conjunto inteiramente novo de edifícios modernos e contemporâneos, está relacionado com o tempo: certos moradores qualificados começam a prefabricar as partes componentes do abrigo (estruturas de paredes, portas, janelas, esquadrias de janelas e portas) para venda. Esta adaptação raramente é encontrada no cenário vernacular da aldeia, e por esta razão podemos sugerir que os assentamentos espontâneos são, de facto, produções arquitetónicas modernas e contemporâneas que partilham certas características com edifícios vernaculares. Referências ABU-LUGHOD, J. Disappearing Dichotomies: First World-Third World; Traditional-Modern. Traditional Dwellings and Settlement Review: Journal of the International Association for the Study of Traditional Environments. Vol. 3, n. 2, p. 7-12, 1992. ALEXANDER, C. The Timeless Way of Building. Nova Iorque: Oxford University Press, 1979. p. 258 ALEXANDER, C. A Pattern Language: Towns, Buildings, Construction. Nova Iorque: Oxford University Press, 1977. ALSAYYAD, N. From Vernacular to Globalism: The Temporal Reality of Traditional Settle- ments. Traditional Dwellings and Settlement Review: Journal of the International Association for the Study of Traditional Environments. Vol. 7, n.1, p. 13-24, 1995. ALSAYYAD, N. 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Os editores decidiram acolher neste dossiê as múltiplas grafias da língua portuguesa, conforme a escrita em cada um dos países lusófonos. 2 (Nota da tradutora [N.T.]) Township é a designação dada na África do Sul às urbanas onde pessoas negras, mulatas, pardas e do subcontinente indiano eram morar durante o regime de segregação racial do Apartheid (1948-1994) e que se hoje como espaços não brancos (Africans townships, Coloured townships e Indians de exclusão racial mas também de resistência e luta. periferias forçadas a mantêm até townships) p. 261 Refazendo 1 cidades africanas AbdouMaliq Simone Universidade de Sheffield TRADUÇÃO: Luís Paulo da Silva Almeida Refazendo cidades africanas Resumo Este artigo apresenta o livro de 2004 For the City Yet to Come: Changing African Life in Four Cities, de autoria de AbdouMaliq Simone, que se dedica há mais de vinte anos ao estudo das cidades africanas como ativista, professor, pesquisador e assessor de ONGs e governos locais. O autor mostra-nos as nuances, obscuridades e criatividades por detrás da vida urbana das várias Áfricas e elabora uma análise crítica ao sofrimento e injustiças da vida urbana. Simone contesta a visão convencional de “cidades falhadas”, argumentando que a compreensão dos centros urbanos em África passa por conhecer as origens históricas de cada cidade em particular e, não menos importante, também conhecer de perto os saberes locais, que são fortemente imbuídos na cultura, que se refletem nos sistemas sociais, econômicos e políticos “informais” que dão vida e forma às cidades (Por não haver resumo no texto original, este foi feito pelos editores). Palavras-chave: cidades africanas, vida urbana,injustiça espacial, cultura urbana, África. Rehaciendo ciudades africanas Resumen Este artículo presenta el libro de 2004 For the City Yet to Come: Changing African Life in Four Cities, de AbdouMaliq Simone, quien ha pasado más de veinte años estudiando las ciudades africanas como activista, docente, investigador y asesor de ONGs y gobiernos locales. El autor nos muestra los matices, las oscuridades y la creatividad detrás de la vida urbana de las distintas Áfricas y elabora un análisis crítico del sufrimiento y las injusticias de la vida urbana. Simone cuestiona la visión convencional de las “ciudades fallidas”, argumentando que la comprensión de los centros urbanos en África implica conocer los orígenes históricos de cada ciudad en particular y, no menos importante, también conocer el conocimiento local, que está fuertemente imbuido en la cultura, que se reflejan en los sistemas sociales, económicos y políticos “informales” que dan vida y forma a las ciudades (Al no existir un resumen en el texto original, éste fue realizado por los editores). Palabras clave: ciudades africanas, vida urbana, injusticia espacial, cultura urbana, África. Reconstruction of african cities Abstract This article presents the 2004 book For the City Yet to Come: Changing African Life in Four Cities, by AbdouMaliq Simone, who has spent more than twenty years studying African cities as an activist, teacher, researcher and NGO advisor. and local governments. The author shows us the nuances, obscurities and creativity behind the urban life of the various Africas and elaborates a critical analysis of the suffering and injustices of urban life. Simone contests the conventional view of “failed cities”, arguing that the understanding of urban centers in Africa involves knowing the historical origins of each city in particular and, not least, also getting to know the local knowledge, which is strongly imbued in the culture, which are reflected in the “informal” social, economic and political systems that give life and form to cities(Since there is no abstract in the original text, this was done by the editors). Keywords: African cities, urban life, spatial injustice, urban culture, Africa. s cidades africanas não funcionam, ou pelo menos as suas caracterizações são convencionalmente repletas de representações que vão desde as valentes lutas, embora na maior parte equivocadas, dos pobres para ganhar algum sustento mínimo até as descrições mais insidiosas de corpos envolvidos em liminaridade quase constante, decadência, ou conflitos religiosos e étnicos. Um ponto de vista mais generoso reconhece que as cidades africanas são obras em andamento, ao mesmo tempo em que são tremendamente criativas e extremamente estagnadas. Em cidade após cidade, pode-se testemunhar um pulsar incessante produzido pela intensa proximidade de centenas de atividades: cozinhando, apregoando, vendendo, carregando e descarregando, brigando, rezando, descansando, batendo e comprando, tudo lado a lado em cenários muito apertados, muito deteriorados, muito entupidos de desperdícios, história e energia díspar, e suor para sustentar todos eles. E ainda assim, persistem. Sony Labou Tansi o escritor congolês e um dos renomados observadores da vida urbana do continente, fala sobre o caso do amor africano com a “miscelânea” – os puxões e empurrões da vida em todas as direções das quais ordens provisórias são apressadamente montadas e demolidas, que por sua vez tentam “pegar emprestado” tudo o que está à vista. Pode ser que esse uso do que quer que apareça, bem como a manutenção de centenas de diversidades em algum tipo de vínculo estreito, dêem a muitas cidades Africanas sua aparência de vitalidade. A n. 1 p. 262-289 2022 ISSN: 2965-4904 Mas como Tansi (1988) também sugere em seu romance The Antipeople, assim como em grande parte de seu teatro, o próprio sentido de atirar as coisas umas para as outras não torna uma sociedade necessariamente mais flexível ou produtiva (TANSI, 1988). Às vezes a miscelânea paraliza os elementos em seu lugar e deixa as culturas estáticas e lentas para se adaptarem às mudanças das condições. Em outros momentos, eles podem se adaptar muito bem e esquecer que a adaptação ou acomodação não é essencialmente o que a sociedade é, ou é capaz de se tornar. Desta forma, embora existam muitas maneiras pelas quais os Africanos urbanos reinventaram tradições e as tornaram interlocutores dinâmicos entre passado e futuro em sua vida cotidiana, enormes energias criativas foram ignoradas, desperdiçadas e deixadas sem uso. Durante muito tempo estive envolvido em vários tipos de esforços para entender o que está em ação nas cidades africanas. Busquei investigar como elas funcionam tanto em algum sentido normativo de eficácia como em uma série ampliada de noções sobre o que as cidades podem e devem fazer - a fim de usar esses entendimentos como uma plataforma para engajamentos institucionais mais inovadores e incisivos com os processos e residentes urbanos. Grande parte deste esforço tem envolvido tentativas, muitas vezes imprecisas, de olhar para como as cidades africanas se tornam um local para a elaboração de economias translocais que se desdobram e são implantadas dentro de lógicas e práticas que colocam de lado as noções usuais de crescimento e desenvolvimento. Longe de serem marginais aos processos contemporâneos de recomposição escalar e de reimaginação das comunidades políticas, as cidades africanas podem ser vistas como uma fronteira para uma ampla gama de experiências difusas com a reconfiguração de corpos, territórios e arranjos sociais necessários para recalibrar as tecnologias de controle. Por exemplo, há um interesse crescente em vários ministérios da União Européia quanto ao que a aparente ingovernabilidade, ainda assim contínua sobrevivência, de cidades como Lagos e Kinshasa pode ter a dizer sobre o futuro da governança urbana em geral. Aqui, o que convencionalmente conhecemos como legalidade e ilegalidade, guerra e paz, o corpóreo e o espiritual, o formal e o informal, o movimento e o lar são trazidos para uma proximidade que produz um senso de lugar altamente ambíguo. Essas ambiguidades ocasionam intensas lutas sobre as quais as identidades têm acesso legítimo e direitos sobre lugares e recursos específicos. Mas elas também ampliam a capacidade histórica de muitas sociedades africanas de configurar formações sociais altamente móveis. Estas formações enfatizam a construção de múltiplos espaços de operação que incorporam uma ampla gama de habilidades táticas destinadas a maximizar as oportunidades econômicas através de compromissos transversais entre territórios e arranjos díspares de poder. Neste livro, For the City Yet to Come: Changing African Life in Four Cities, optei por me concentrar em práticas sociais, políticas e económicas específicas que considero cruciais para a realização dessas capacidades de formações sociais. Em outras palavras, p. 267 olho para o que acontece em espaços e tempos bastante circunscritos que podem ajudar a preparar atores específicos para alcançar e se estender por um mundo maior e decretar essas possibilidades de se tornar urbano. Especificamente, eu me concentro nas seguintes problemáticas: em cidades onde a subsistência, a mobilidade e a oportunidade parecem ser produzidas e promulgadas através da própria aglomeração de diferentes corpos marcados e situados de diversas maneiras, como é que as permutações na interseção de sua existência física, suas histórias, redes e inclinações, podem produzir valor e capacidade específicos? Se a cidade é um enorme cruzamento de corpos em necessidade, e com desejos em parte impulsionados pelo número absoluto deles, como um número maior de corpos pode se sustentar se impondo em conjunturas críticas, sejam estas conjunturas espaços discretos, eventos da vida, ou locais de consumo ou produção? A tarefa é intimidante na medida em que é difícil determinar com qualquer precisão que tipo de possibilidades e futuros urbanos estão sendo feitos. Pois as cidades estão cheias de histórias de transformações e ressurreições repentinas e inexplicáveis - de pessoas que não têm nada de repente acumulando quantidades significativas de riqueza, apenas para perdê-la de um dia para o outro e depois “ressuscitá-la” em um momento posterior. Estas oscilações estão embutidas em um contexto onde os horizontes de um futuro razoavelmente alcançável e a capacidade de imaginá-los desapareceram para muitos jovens - atualmente o maior grupo populacional da região. Os africanos urbanos também parecem cada vez mais incertos de como espacializar uma avaliação de suas chances de vida - ou seja, de onde assegurarão o sustento, onde se sentirão protegidos e cuidados, e onde irão adquirir as habilidades e capacidades críticas para fazê-lo. Os anos acumulados de desilusão popular com os estados africanos, as exigências de trabalho intensivo para assegurar as necessidades básicas, a “negociabilidade” enraizada da justiça e os efeitos dos processos de reforma econômica mandatados e supervisionados internacionalmente têm, em grande parte, sobrecarregado a eficácia das práticas urbanas que priorizam a reciprocidade social e a interação contínua da diversidade complementar. p. 268 No ambiente urbano é cada vez mais difícil determinar quais práticas sociais, alianças e conhecimentos podem ser mobilizados o suficiente para produzir resultados prováveis concebidos com antecedência. Da mesma forma, a rapidez com que as impressões podem ser fixadas no imaginário popular, a desenvoltura organizada não antecipada e as disposições de comportamento transformadas muitas vezes não permitem nenhuma certeza quanto às identidades dos ingredientes ou processos envolvidos. As pressões para manter a coesão funcional dentro da estrutura de sistemas familiares alargados e as práticas de distribuição de recursos que a acompanham são enormes. Há uma preocupação por parte de muitos residentes em cidades africanas com o quanto eles estão ligados ao destino de outros que eles testemunham “estar afundando” ao seu redor. Ao mesmo tempo, eles esperam que os laços à sua volta sejam suficientemente fortes para resgatá-los, se necessário. Os próprios atos de atar e desfazer laços sociais tornam-se o local de intensa contestação e preocupação - ou seja, quem pode fazer o quê com quem sob quais circunstâncias se torna um domínio tão carregado de tensão e até mesmo de violência que demarcações claras são adiadas e tornadas opacas. Não está claro o que está mesmo acontecendo. Esta ambiguidade não é apenas uma realidade enfrentada pelos residentes urbanos, mas uma realidade que eles também parecem trazer consigo. Em muitas cidades, a própria disposição dos bairros sempre serve para confundir e desconcertar avaliações claras sobre o que está acontecendo face às incertezas muitas vezes avassaladoras (MALAQUAIS, 2002; MBEMBE, 2003). Outra maneira de olhar para esta dinâmica é considerar a ambiguidade que resulta na relação entre a forma como as cidades são governadas e as respostas a esta regra por parte da maioria dos residentes urbanos. Para muitos residentes urbanos, a vida é reduzida a um estado de emergência (AGIER, 2003). O que isto significa é que há uma ruptura na organização do presente. As abordagens normais são insuficientes. O que aconteceu no passado ameaça a manutenção do bem-estar, ao mesmo tempo em que proporciona um fornecimento inadequado de recursos para lidar com esta ameaça. A emergência não deixa tempo para pensar, não deixa tempo para traçar a etiologia precisa da crise, pois a sequência de causalidade é suspensa na urgência de um momento em que a imprudência pode ser tão importante quanto a cautela. O passado traz a comunidade ao limiar e, neste precipício, o que pode haver para recordar? Ao mesmo tempo, a emergência descreve um processo de coisas em construção, da emergência de novos pensamentos e práticas ainda instáveis, ainda provisórios em termos do uso que será dado a tais pensamentos e práticas. Este é um presente, então, capaz de aparentemente absorver qualquer inovação ou experiência; uma temporalidade caracterizada por uma falta de gravidade que poderia manter significados em expressões e ações específicas. Não há direções e a desorientação é p. 269 garantida. No entanto, a experiência da crise pode ser dissipada na medida em que não há normalidade que se possa referir, não há sentimento de algo que se desenrola, embora também não haja garantia de que a comunidade não voltará ao mesmo lugar de onde começou. Assim, a emergência conota tanto o fim de uma certa flexibilidade de interpretação, quanto a capacidade de adiar para outro dia um balanço de compromisso e convicção, que agora se encontra no caminho errado. Ao mesmo tempo, este estado de emergência permite, por mais fugaz que seja, que uma comunidade experimente sua vida, suas experiências e realidades, em seus próprios termos: esta é nossa vida, nada mais, nada menos. Mesmo quando ocorre um certo grau de melhoria, racionalização ou “desenvolvimento”, esta experiência de emergência de duplo sentido põe em movimento uma maneira específica de ver, de visualizar o ambiente que informará como as pessoas, as coisas, os lugares e as infraestruturas serão utilizados. A auto-responsabilidade pela sobrevivência urbana abriu espaços para diferentes formas de organização das atividades. As comunidades têm se envolvido cada vez mais em um ou mais aspectos da prestação de serviços essenciais, ao mesmo tempo em que advogam por um planejamento e gestão urbana mais eficazes. Muitas associações locais foram formadas para melhorar o saneamento, fornecer abrigo, melhorar a comercialização, ampliar as microfinanças e advogar por uma gama mais ampla de direitos. Além disso, formas mais difusas de mobilização social têm vindo à tona. Mas o que eu também quero mostrar nesta discussão é como esses esforços às vezes são engajados como plataformas que se estendem para elaborar maneiras de usar a cidade e maneiras para que os moradores urbanos usem entre si, que são mais difíceis de identificar, explicar ou conter. p. 270 Como resultado dessas histórias e dinâmicas, os mecanismos através dos quais as economias locais se expandem e se fundem em novas formações políticas são muitas vezes pouco claros, assim como muitas vezes obscuros e problemáticos. Elas podem envolver articulações altamente tênues e frequentemente clandestinas entre, por exemplo, redes religiosas e fraternas, funcionários públicos que operam em capacidades privadas, redes de listas de clientela que mobilizam mão-de-obra muito barata, partidos políticos estrangeiros e corporações transnacionais que operam fora dos procedimentos convencionais. Com estes cenários econômicos surgem configurações mais flexíveis de vida associativa, estruturas mais desterritorializadas de reprodução social e identidade política, bem como preocupações autóctones com o pertencimento. Consequentemente, o esforço para “fazer malabarismos” com cenários contraditórios de bem-estar se torna mais volátil e incerto. Em resposta, os residentes buscam maneiras de colaborar com pessoas muitas vezes muito diferentes de si mesmos, operando em diferentes partes da cidade, e com quem estabelecem relações altamente particularizadas e formas de lidar uns com os outros. Essas redes não são construídas em termos de organizações convencionais ou associações de base, mas muitas vezes envolvem um grande número de pessoas que coordenam implicitamente seus comportamentos na busca de objetivos que têm tanto a definição individual quanto a coerência mútua entre os participantes. Neste livro, procuro documentar e analisar estas formas mutáveis de colaboração social. Também me propus a fornecer um contexto histórico, político e socioeconômico para o surgimento de tais formas e sua importância na remodelação de uma ampla gama de cidades africanas. Lidando com restrições Em parte, as formas emergentes de colaboração social estão relacionadas à proliferação de certas restrições sobre como os africanos urbanos são capazes de garantir a subsistência e as manobras através da cidade em geral. Os sistemas de apoio social enraizados em conexões familiares estendidas, reciprocidade local e várias composições de laços compartilhados, que outrora contavam para sustentar a aparência de bairros urbanos dinâmicos e estáveis, estão se tornando cada vez mais tensos (DEY; WESTENDORFF, 1996; MONGA, 1996; TRIPP, 1997; DE BOECK, 1998; MOORE, 1998; LUND, 2001; MASQUELIER, 2001). Essas tensões às vezes são políticas, pois os bairros recebem mais responsabilidades oficiais para administrar diferentes serviços urbanos (BRETT, 1996; RAKODI, 2003). Esta responsabilidade gera novas modalidades de colaboração, mas também intensifica a concorrência (BANGURA, 1994; SCHUBELER, 1996). Em alguns casos, as comunidades se polarizaram em linhas de estratificação social que no passado eram mais abertas (EL-KENZ, 1996; DEVISCH, 1995; DIOUF; FOTÊ; MBEMBE, 1999). As tensões também são econômicas, dado que o acesso a qualquer tipo de emprego - formal e informal - é cada vez mais difícil (SETHURAMAN, 1997; INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION, 1998; COLLIER; GUNNING, 1999; LACHANCE, 2000). Como resultado, os sistemas de apoio familiar e residencial, antes altamente elaborados, p. 271 se vêem sobrecarregados (KANJI, 1995; HARTS-BROEKHUIS, 1997; ROBERTSON, 1997; BRYDEN, 1999). Estima-se que cerca de 75% das necessidades básicas são fornecidas informalmente na maioria das cidades africanas, e que os processos de informalização estão se expandindo através de setores e domínios separados da vida urbana (ARKADIE, 1995; KING, 1996). Embora o desemprego sempre tenha sido uma realidade persistente para as cidades africanas, as compensações disponíveis agora requerem ações mais drásticas (LUGALLA, 1995; EMIZET, 1998; ROITMAN, 1998). As inundações de importações baratas possibilitadas pela liberalização do comércio estão diminuindo os sistemas de produção local (MKANDAWIRE; SOLUDO, 1998). Ao mesmo tempo, vários componentes da racionalização econômica abriram possibilidades para a apropriação de bens anteriormente públicos - terras, empresas, serviços - por interesses privados, particularmente para as elites emergentes que estão bem posicionadas nos aparelhos que administram o ajustamento estrutural. Possibilidades de reprodução social são excluídas para um número crescente de jovens. Como tal, as ações, identidades e composição social através das quais os indivíduos tentam obter a sobrevivência diária são mais provisórias, posicionando-os em uma proliferação de tempos aparentemente difusos e discordantes. Sem responsabilidades e certezas estruturadas, os lugares em que os jovens habitam e os movimentos que empreendem tornam-se instâncias de geografias desarticuladas - ou seja, subsumindo lugares em ordens místicas, subterrâneas ou de bruxaria, universos proféticos ou escatológicos, mitos altamente localizados que capturam as lealdades de grandes corpos sociais, ou rotinas reinventadas diariamente que têm pouca ligação com qualquer coisa. Ao extremo, como base material da confiança em institutos locais outrora confiáveis, números cada vez maiores de africanos “desaparecem” de forma muito visível em um espaço interior recuado - uma espécie de alucinação coletiva de se afastar do mundo. Este pode ser um espaço altamente volátil, pois mesmo que marcado por geografias intrincadas de mundos espirituais, pode elevar a “vida civil” em uma mistura rudimentar de crueldade e ternura, indiferença e generosidade. Ao mesmo tempo, as novas redes relacionais estão interligadas com diferentes vertentes culturais com locais, instituições e transações em diferentes escalas - em outras palavras, uma capacidade de saber o que fazer para ter acesso a vários tipos de recursos instrumentais. p. 272 A sobrevivência dessas cidades também está cada vez mais baseada na extensão de suas conexões com uma ampla gama de organizações internacionais, assim como acordos bilaterais e multilaterais que fornecem os fundos para muitos dos serviços urbanos básicos que são prestados. Assim, as cidades permanecem, pelo menos “oficialmente”, inscritas em uma narrativa de desenvolvimento. Mas o desenvolvimento como uma modalidade específica de temporalidade não se trata simplesmente de atender às necessidades dos cidadãos. Trata-se de tornar os seres éticos; de manter as pessoas em relações que as tornem governáveis. Como tal, o desenvolvimento é sobre ajudar os residentes a atender suas necessidades de uma forma “boa” ou “moral” (CHIPKIN, 2003). No entanto, dentro das cidades africanas, a sustentabilidade das comunidades significa em grande parte sustentar formas de associação e movimentação que não são conducentes a tal cidadania nem à produção dos seres morais do tipo requerido pelos estados e outros órgãos de “supervisão” e/ou doadores. Como tal, a relevância dessas práticas locais, e até mesmo sua eficácia, deve ser frequentemente mascarada. Cidades e ajustamento estrutural Contrariamente a tais realidades precárias, Thandika Mkandawire argumentou incisivamente que os estados africanos tiveram um desempenho muito bom na primeira década de independência. O desenvolvimento acelerado, não apenas na entrega de produtos de desenvolvimento, mas em suas tentativas de transformar os aparelhos políticos e administrativos nacionais inadequados para as tarefas de modernização. O escopo deste trabalho forçou os governos a elevar seus orçamentos ao limite, a fim de lidar tanto com os custos das infra-estruturas físicas e sociais necessárias quanto com a configuração de contratos sociais viáveis, a fim de fornecer pelo menos estruturas temporárias de coesão social (MKANDAWIRE, 2002; CLUB DU SAHEL/OECD; MUNICIPAL DEVELOPMENT PROGRAM, n.d.). Na tentativa de recalibrar a viabilidade financeira do desenvolvimento, as capacidades políticas das sociedades se desgastaram, resultando na imposição de regimes disciplinares que estabelecem enclaves de capacidade administrativa fiscal distanciados de compromissos reais com processos ou instituições sociais locais. Assim, o ajuste estrutural vem não apenas para se referir às políticas que reestruturam a economia, mas também à reestruturação do tempo e do espaço das vidas africanas (OBARRIO, 2002). Muitos estados já nem sequer fazem esforços simbólicos para demonstrar preocupação com o bem-estar de suas populações, e os discursos de governação participativa ou empreendedorismo local tornam-se, em grande parte, performances implementadas para atrair o interesse dos doadores. A cidade que emer- p. 273 ge de crises no campo político ocasionadas por valores monetários constantemente flutuantes ou dívidas intransponíveis é uma cidade onde as considerações sobre o que é importante fazer, sobre o que tem valor ou eficácia, se tornam cada vez mais opacas. Em alguns casos, aparentemente, a totalidade dos recursos materiais de muitas nações africanas deve-se a interesses estrangeiros que, no processo, também se tornam propriedade delas. Como aponta Juan Obarrio, os espaços de transação estão efetivamente corroídos, pois o que quer que uma nação possua, seus recursos materiais, humanos e culturais, são consumidos no que cada vez mais se torna uma concepção espectral de valor, ou seja, os valores do capital financeiro virtual (IBIDEM, 2004). A volatilidade das sociedades africanas pós-coloniais em construção está, portanto, sujeita à volatilidade das oscilações de preços. Esta volatilidade constitui o padrão através do qual os derivados e outros instrumentos financeiros são tarifados e pelo qual os recursos africanos, tais como ouro ou algodão, são mobilizados para um futuro indeterminável. As oscilações entre estabilidade e instabilidade, tais como a as remunerações de lucro e prejuízo na guerra de baixa intensidade, tornaram-se altamente lucrativas para aqueles que administram, por exemplo, os circuitos de mercadorias de cacau, pedras preciosas e minerais. Ao mesmo tempo, a capacidade política dos Estados em regular ou servir populações debilitadas diminui, assim como a capacidade da nação de servir como ponto de referência através do qual os “cidadãos” podem situar as suas perspectivas e desenvolver algum tipo de avaliação sobre o que é provável que aconteça com eles. Esta era de ajuste estrutural enquadra então a intensa preocupação de toda a região com a questão de como os residentes urbanos podem trabalhar e colaborar uns com os outros - mais particularmente como as conexões são melhor formadas e mantidas; quão visíveis e conhecidas estas conexões podem e devem ser. Se um futuro visível e uma vida fora da miséria incessante se tornaram impensáveis para muitos, então os africanos devem intervir através de várias formas na adversidade para conseguirem alguma contra-realidade (NLANDU, n.d.; HETHERINGTON, 2002). Fazendo uso da cidade p. 274 A cidade é a conjunção de possibilidades aparentemente infinitas de refazer. Com seu artifício de arquiteturas, infra-estruturas e sedimentação canalizando movimento, transação e proximidade física, os corpos estão constantemente “em linha” para afetar e serem afetados, “entregues” a terrenos específicos e possibilidades de reconhecimento ou coalescência (CHEAH, 1999). Vejamos, por exemplo, estruturas precárias tais como estradas, muitas vezes inundadas e com buracos, áreas muitas vezes inacessíveis, barracas quebradas, negócios frágeis, vendedores ambulantes, alfaiates e artesãos amontoados em locais provisórios e dispersos. Mesmo em suas condições supostamente depauperadas, todas são aberturas em algum lugar, texturas que pontuam e conduzem. São o produto de práticas espaciais específicas e interações complexas de vários atores localizados que refletem manobras por parte dos moradores da cidade para se resituarem de forma constante em campos de ação mais amplos (WEISS, 2002; DE BOECK, 2003). Tem havido uma enorme gama de estudos sobre setores econômicos urbanos informais africanos, mercados de terra e meios de subsistência. Mas a maior parte deste trabalho tem se concentrado nas informalidades como compensação pela falta de urbanização bem sucedida, particularmente em termos de adiamento de níveis elevados de integração espacial, econômica e social dentro da cidade. Outros estudos têm analisado as economias informais ou “reais” como instrumentos através dos quais processos sustentáveis e viáveis de uma urbanização “normativa” poderiam ser consolidados. Na maioria das vezes, estes estudos não examinaram as formas pelas quais tais economias e atividades poderiam agir como uma plataforma para a criação de um tipo muito diferente de configuração urbana sustentável do que geralmente ainda viremos a conhecer (ROGERSON, 1997; MACGAFFREY, 1988; MALDONADO, 1989; DAWSON, 1992; GREY-JOHNSON, 1992; SIMON, 1992; PETERS-BERRIES, 1993; LOUP, 1996; VAN DIJK, 1996; SETHURAMAN, 1997; TRIPP, 1997). Em um sentido, a diminuição do emprego no setor público, a superlotação nos setores informais (MHONE, 1995), o aumento da concorrência por recursos e serviços e uma crescente orientação de sobrevivência por parte de muitos residentes urbanos realoca a forma como as pessoas estruturam as relações de trabalho cotidianas. As empresas lidam com aqueles que lhes são mais familiares. As transações são conduzidas com aqueles com quem se tem contato regular. Para todos os seus problemas - ressentimentos mútuos, obrigações e perda de autonomia - as relações familiares tornam-se a base das relações de negócios. Este é especialmente o caso quando setores particulares são incapazes de absorver efetivamente quaisquer novos ingressantes (KANJI, 1995). Mas também há grandes elementos de dissimulação e mascaramento envolvidos neste processo. Em outras palavras, o que parece ser cada vez mais paroquial, p. 275 identidades e práticas estreitamente delineadas podem realmente funcionar como marcadores em uma economia social complexa onde os atores tentam participar com muitas identidades diferentes ao mesmo tempo (BERRY, 1995). Este é um “jogo” onde os indivíduos se tornam diferentes tipos de atores para diferentes comunidades e atividades. Por um lado, reitera-se, em casa, uma solidariedade baseada em grande parte no parentesco e na vizinhança. Ao mesmo tempo, os atores sociais estão envolvidos em formas muito diferentes de se associar, fazer negócios, ganhar apoio, compartilhar informações ou realizar suas identidades em outros bairros da cidade. Além disso, há frequentemente uma proliferação de acordos econômicos “oficialmente” clandestinos (mas, na realidade, altamente visíveis) (ELLIS; MACGAFFEY, 1996; MBEMBE, 2000). Aqui, atores de diferentes procedências religiosas, étnicas, regionais ou políticas colaboram na base de que ninguém espera que tais colaborações ocorram. Como resultado, muitas vezes os recursos podem ser reunidos e empregados com grande rapidez e eficácia. Isto ocorre porque o processo não é deliberado de forma exagerada, escrutinado ou sujeito às exigências e obrigações normalmente inerentes aos sistemas de solidariedade baseados em parentesco e vizinhança. Na maioria das cidades africanas, as intervenções políticas e programáticas se concentraram na necessidade de uma maior integração das cidades. Frequentemente, busca-se isso sem se preocupar com a forma como o espaço urbano fragmentado - ou seja, características altamente divergentes dos bairros e suas relações entre si - incorpora a heterogeneidade das oportunidades urbanas e oferece possibilidades para a elaboração de meios de subsistência que não correspondem facilmente aos quadros normativos impostos. Frequentemente assume-se que os bairros urbanos - de histórias e capacidades variadas - estão acima de tudo interessados em consolidar os campos sociais locais em estruturas de representação que possam atuar como uma plataforma para acessar e influenciar acordos de poder em escalas maiores. Há muitas vezes a suposição de que esta consolidação inevitavelmente toma a forma de, pelo menos, a semelhança de organizações e papéis bem elaborados. Mas os investimentos populares em tempo e energia estão muitas vezes em outro lugar; isto é, focados em juntar maiores espaços de ação - maiores tanto em termos de território quanto de interdependências sociais entre estatuto, classe, etnia, geração, posição social, e assim por diante. p. 276 Mitigando danos A cidade é também o local de danos potencialmente irreparáveis, onde aqueles que a navegam nunca podem ter certeza de como sua própria existência pode estar implicada nas narrativas e comportamentos de outros; em outras palavras, onde eles nunca podem ter certeza se sua posição imediata e suas ações inadvertidamente os colocam em alguma “linha de fogo” - em uma trajetória de alguma capacidade de transporte capaz de lhes causar sérios danos. À medida que as possibilidades de mediação diminuem - ou seja, estruturas institucionais capazes de organizar diferenças de intensidade e inclinação em locais, entidades, setores e campos de interpretação confiáveis claramente definidos - a noção de potencial dano potencial aumenta. No entanto, os moradores urbanos devem encontrar algum meio de conexão, geralmente implícito e fora de sua consciência, que os leve uns para os outros em modos que os mantenha em ação. Ao mesmo tempo, essas conexões fornecem a base para sua convicção de que se podem manter próximos uns dos outros e fora de perigo (SERRES, 1995; MAFFESOLI, 1996; CLARK, 2000). Quem pode estar nas ruas e em que circunstâncias; quem pode recorrer a espaços protegidos sem ter que descobrir maneiras de lidar com os outros; quem pode ter acesso a que tipo de espaços? Todas estas são questões com grande rapidez e significado na maioria das cidades africanas. Em estados com sistemas precários ou inexistentes de previdência e redes de segurança, muito tem sido feito sobre a capacidade dos indivíduos de se apoiarem em sistemas familiares alargados e em formas de capital social para atravessar períodos prolongados de desemprego, doença ou velhice. Mas muitas vezes o processo de cair de volta nestes laços resulta caindo em prejuízo, já que a dependência transforma os indivíduos em objetos frequentemente fáceis de manipulação e culpabilização. As cidades são densidades de histórias, paixões, mágoas, vinganças, aspirações, evasões, deflexões e cumplicidades. Como tal, os residentes devem ser capazes de conceber um espaço suficientemente delimitado de modo a consolidar energias díspares e fazer acontecer coisas em escala. Mas, ao mesmo tempo, eles devem conceber um espaço fracionado suficientemente grande para que sentimentos perigosos possam se dissipar ou ser desviados. Os residentes urbanos estão, portanto, preocupados com que tipos de jogos, instrumentos, idiomas, linhas de visão, construções e objetos podem ser colocados em jogo a fim de antecipar novos alinhamentos de iniciativa e recursos sociais e, portanto, capacidade. A questão é como pessoas de diferentes trajetórias de vida podem se envolver na vida umas das outras sem necessariamente p. 277 obrigar a transações e obrigações específicas. Como as permutações subsequentes ressuscitam o interesse mútuo em colaborações sociais, mesmo quando os benefícios discerníveis podem não ser claros ou quando os participantes são confrontados com provas inconclusivas de suas próprias posições dentro deles (DONNELLY-ROARK; OUEDRAGO; YE, 2001)? Reafirmando a colaboração Muitos dos sons que emergem das cidades africanas são tornados inaudíveis ou inexplicáveis. O discurso é muitas vezes violentamente excluído ou implacável em sua mímica, em suas promessas ou em seu medo desesperado de fazer uma pausa. A política urbana deve então dizer respeito à invenção de uma plataforma ou cenário na qual a cacofonia das vozes urbanas seja audível e compreendida, e na qual os oradores se tornem visíveis. O que é dado como um status objetivo é colocado em questão ao tornar visível aquilo que, sob a ótica de um determinado campo perceptivo, não tem sido visível (RANCIÉRE, 1998). É dado um “nome”, não necessariamente um “nome correto”, mas, não obstante, uma designação. Este nome é uma técnica e um instrumento que permite que algo possa afetar e ser afetado. p. 278 Aqui, me preocupa como os laços afetivos são revitalizados e como um desejo de intercâmbio e cooperação social pode conter as sementes das economias sociais que se estendem através da escala, do tempo e do alcance. Mas isto não se trata diretamente de organizações da sociedade civil e organizações não-governamentais (ONGs), associações de microcrédito ou associações populares. Ao contrário, estou interessado aqui em formas mais difusas, mas não menos concretas, nas quais diversos atores urbanos se reúnem e atuam. Quais são algumas das maneiras pelas quais os residentes urbanos estão construindo um campo emocional particular na cidade, tentando restaurar um senso muito físico de conexão uns com os outros? Esta é uma micropolítica de alinhamento, interdependência e exuberância. Este não é o trabalho de exames etnográficos detalhados de novos movimentos sociais, novos arranjos de vida, ou novas formas de produtividade urbana. É uma prática de estar sintonizado com sinais fracos, clarões de criatividade importante em manobras desesperadas, pequenas erupções no tecido social, que proporcionam nova textura, plataformas pequenas, mas importantes a partir das quais se pode ter acesso a novas visões. Sendo que uma ação com conhecimento de causa é em grande parte uma atividade prática que envolve a construção de novas relações nas lacunas que sempre se abrem no processo de conduzir as relações existentes - de agir, gesticular, mover-se e alinhar-se. A colaboração urbana não reflete e institucionaliza simplesmente processos e formas sociais claramente identificáveis. Há lacunas e abertura, espaço para negociação e provocação, e assim a colaboração pode assumir muitas formas. Às vezes as pessoas se juntam em organizações que têm nomes, mas onde não está claro para quase todos o que é exatamente a organização e o que ela faz. Em outros momentos, um evento pode desencadear uma vizinhança inteira em cursos de ação aparentemente desconhecidos, mas com uma sincronicidade que faz parecer como se alguma lógica profunda de mobilização social estivesse sendo desencadeada. Ainda em outros momentos, os meios em que as localidades tanto ativam como resistem à mudança em relação às decisões em que as autoridades governamentais constroem tentativas de plataformas para que as pessoas colaborem de forma “silenciosa”, mas poderosa. Essas colaborações têm o potencial de alterar substancialmente a posição da localidade dentro do sistema urbano maior. Recombinando a contingência O impulso deste livro é que está sendo gerada uma ampla gama de ações provisórias, altamente fluidas, mas coordenadas e coletivas que correm paralelamente, embora se cruzem com uma proliferação crescente de autoridades locais descentralizadas, empresas de pequena escala, associações comunitárias e organizações da sociedade civil. Estas ações, por sua vez, estão repletas de economias morais e sociais geradas localmente, pressionadas, no entanto, por um envolvimento mais expansivo com uma ampla gama de processos e atores externos. Se as cidades africanas, em algum nível funcionam, então eu defendo que estas práticas desempenham um papel importante para fazê-las funcionar. O centro deste livro, então, é uma série de estudos de caso que tentam demonstrar o complexo entrelaçamento de recursos e problemas em uma ampla variedade de esforços para reunir formas viáveis de vida urbana. Discutirei longamente vários “casos” - de Pikine (Senegal), Winterveld (África do Sul), Douala (Camarões), e Jidda (Arábia Saudita). Cada um dos quatro casos será apresentado e enquadrado por uma de quatro noções distintas: o informal, o invisível, a adversidade e o movimento. Estas noções não são utilizadas como estruturas conceituais que dirigem e respondem pelo p. 279 comportamento urbano, mas sim como pontos de entrada heurísticos na descrição de capacidades variadas de diversos residentes urbanos para operar em conjunto sem infra-estruturas discerníveis, estruturas políticas e práticas institucionais nas quais se possa fazer isso. Elas são usadas para ajudar a dar sentido ao que, de outra forma, parece simplesmente dimensões díspares e irracionais da vida urbana. Estas noções são utilizadas para supor processos de operação urbana que podem não necessariamente ter uma coerência empírica, mas sim elaborar um campo possível através do qual os moradores de variadas trajetórias de vida prestem atenção, se aproximem ou coordenem suas ações uns com os outros. Eles servem como formas de trazer a cidade para algum tipo de foco e para alavancar o acesso aos efeitos das forças e práticas urbanas, que de outra forma não são fáceis de apreender. Em outras palavras, para encontrar formas de tornar visíveis as possibilidades urbanas que foram suprimidas ou deixadas difusas ou opacas na concentração em linguagens analíticas que tentam explicar a vida urbana através de uma delimitação específica de identidades sociais, setores e instituições. As paisagens urbanas vêm para refratar várias camadas de sedimentação - de usos e organização passados - assim como para incorporar uma série de possíveis significados e ações fora dos níveis de mudança de especificação trazidos a essas paisagens pelos aparelhos de controle predominantes e, na África, frequentemente fragmentados. A pergunta que me interessa ao explorar estes estudos de caso é como os residentes podem ler seus ambientes de maneira a impulsioná-los para fora da navegação diária à qual estão acostumados. Que possibilidades e oportunidades estão abertas? Como as diversas possibilidades são vistas como excluídas? Como os residentes estão assumindo várias identidades e posições incluídas em diferentes esforços de colaboração? Como essas colaborações são espacializadas e avaliadas de forma a gerir os padrões oscilantes de inclusão e exclusão? p. 280 As instituições urbanas africanas, no passado, foram chamadas a fornecer plataformas que facilitem a ação independente, mas ainda assim tentam assegurar um senso de equanimidade que ressoe com valores culturais profundamente sentidos. Mas à medida que essas instituições enfraquecem e centros de gravidade social se dissipam, novas formas de vida urbana e sociabilidade estão potencialmente repletas dos perigos de parasitismo, manipulação e provisionalidade incessante. Portanto, para que novas transações ocorram, seus elementos constituintes - pessoas, recursos, lugares e mobilidades - muitas vezes devem ser reunidos de forma a afastar a publicidade, o escrutínio e a comparação. Este processo de reunir os lucros não por uma lógica específica compartilhada pelos participantes, pode ser visto como uma recombinação de contingência. Em outras palavras, uma coincidência de perspectivas, interpretações, compromissos e práticas que permitem a diferentes residentes em diferentes posições convergir e/ou divergir uns dos outros, de forma incremental ou radical, e, nesse processo, refazer o que é considerado possível fazer. Estas noções de enquadramento - informalidade, invisibilidade, adversidade e movimento - são utilizadas aqui como campos de operações táticas, constituem um campo crítico ou locus através dos quais diferentes capacidades, práticas e interpretações podem ser cruzadas e através das quais as formas mais efêmeras de colaboração de residentes de diferentes origens podem ser visualizadas. Mais uma vez, estas noções não são postas aqui como alguma ação de estruturação lógica abrangente; pelo contrário, elas simplesmente fornecem um mecanismo através do qual as diversas práticas e tendências em ação em cada estudo de caso podem ser vistas como coincidentes. Para apreciar o que os residentes urbanos africanos enfrentam, bem como o contexto no qual as formas emergentes de colaboração social vieram à tona, fazem sentido ou fazem as coisas acontecer, analisarei na maior parte deste livro as condições em que eles operam. O que há nas cidades africanas - suas histórias, economias e posições - que ocasionam as colaborações emergentes como uma modalidade particularmente incisiva para aqueles que as experimentam? Discutirei como as histórias, macroeconomias e estruturas de política urbana e de desenvolvimento relacionadas às cidades africanas preparam o cenário para a informalização de grandes porções da vida cotidiana dentro delas, e como os residentes lidam com este processo de informalização. Assim, vou rever as várias dimensões econômicas, políticas e sociais da informalidade no trabalho nas cidades africanas. Falarei sobre as diferentes implicações da informalização em diferentes escalas de operação e as formas pelas quais os bairros urbanos tentam se situar e mediar essas diferenças de escala. Mais uma vez, meu objetivo é falar sobre as formas como as cidades africanas são produtivas. As experiências que discuto aqui têm sido complicadas, e não é fácil reunir lições claras e simples. A linguagem de descrição também será, portanto, complicada às vezes. Nem sempre ficará claro exatamente o que está acontecendo, pois as histórias dão abertura a outras histórias. Tentei encontrar uma narração inicial próxima aos processos reais em andamento - uma narração próxima ao entrelaçamento de identidades e domínios superficialmente distintos. Aprecio plenamente como a vida cotidiana na maioria das cidades africanas se tornou difícil, e não romantizo nem p. 281 celebro o que está acontecendo. Ao contrário, acredito que é importante enfatizar que o que está acontecendo tem valor e importância, e é um aspecto crucial da África enquanto ela se refaz a si mesma. Uma nota metodológica: engajamentos múltiplos como metodologia É difícil realizar pesquisas sociais contínuas e sistemáticas em muitos bairros (ou seja, divisão ou distrito) das cidades africanas, especialmente onde as mudanças parecem mais pronunciadas e o complexo de interação social. Como as categorias convencionais para entender tais mudanças são elas mesmas abertas, “desfiguradas” e rearranjadas, é difícil confiar que se está trabalhando com entidades estáveis e consistentes ao longo do tempo. Por esta razão, optei por me concentrar no próprio provisório. Em outras palavras, escolhi não tentar conduzir uma pesquisa social sistemática, mas sim mergulhar em vários ambientes sob quaisquer condições e rubricas possíveis. Mais uma vez, eu estava particularmente interessado nas várias maneiras pelas quais os residentes podiam colaborar uns com os outros fora das associações e instituições formais. Eu estava interessado em casos de desarticulação de bairros a partir dos bairros, de bairros dos governos estaduais e municipais, de identidades sociais umas das outras, e de economias formais das economias informais. Eu estava interessado em como esta desarticulação se tornou um recurso ou um modo de operação para a colaboração social visando a realização de um uso amplo de cidade. Em outras palavras, procuro aqui acrescentar uma nova dimensão à análise urbana, concentrando-me em aspectos particulares do comportamento individual e coletivo fora dos contextos convencionais de família, instituição e bairro. p. 282 Acredito que esses “foras” são domínios e considerações importantes para entender as cidades africanas como mais do que cidades “fracassadas”. As cidades africanas são mais do que simplesmente cidades que precisam de melhor gestão, mais participação popular, mais infraestrutura e menos pobreza. Isto não quer dizer que as cidades africanas não precisem dessas coisas. Pelo contrário, acredito que nunca iremos realmente apreciar o que uma história acumulada da África urbana tem a oferecer a nosso conhecimento sobre as cidades em geral, a menos que encontremos uma maneira de ir além dos enormes problemas e desafios. Para que os recursos limitados destinados ao desenvolvimento urbano na África sejam eficazes, é importante estabelecer uma causa comum com os esforços diários dos residentes africanos. Esta é uma causa comum para usar a cidade como um gerador de imaginação e bem-estar, de fazer ligações e operar em conjunto com o mundo em geral. A única maneira de fazer tal causa comum é ampliar a sensibilidade, criatividade e racionalidade das práticas e comportamentos cotidianos que ou são invisíveis ou parecem estranhos. Minha intenção é abrir as formas pelas quais as realidades urbanas africanas são deliberadas, as políticas são feitas e os programas são implementados. As cidades africanas têm muito a nos oferecer em termos de melhorar nossa compreensão sobre grandes faixas da vida social. São particularmente essas dimensões da vida cotidiana “entre” as categorias e designações que têm as oportunidades mais incisivas para fazer isso. Este livro é baseado em quase quinze anos de trabalho em várias cidades africanas. Há muito tempo tomei a decisão de explorar os vários meios de operar nessas cidades. Tentei encontrar várias formas de passar o tempo em bairros. Em alguns casos, minha afiliação com os bairros foi como ativista, conselheiro de uma ONG ou do governo local, professor, companheiro muçulmano, trabalhador de desenvolvimento, e/ou pesquisador. Durante muitos anos, eu trabalhei em várias agências de assistência social islâmica baseadas em África tentando ajudar as comunidades a pensar em diferentes maneiras de melhorar as condições de vida, mantendo intactos os aspectos críticos de suas identidades muçulmanas. Ensinei em universidades no Gana, Sudão, África do Sul e Costa do Marfim, onde tentei aproximar a experiência da universidade à realidade cotidiana de bairros urbanos específicos. Durante a extensa descentralização da governação urbana que ocorreu durante a última década, fui analista de políticas e conselheiro de vários governos municipais. Trabalhei com um grupo regional de ONGs de desenvolvimento urbano para experimentar diferentes maneiras de gerar conhecimento e fazer pesquisas com as comunidades nas quais trabalham. Menciono estas diferentes posições a fim de dar reconhecimento aos diversos meios através dos quais as perspectivas e análises com este livro foram reunidas. Talvez o nosso conhecimento destas questões aqui discutidas possa ser substancialmente melhorado através de pesquisas comparativas sistemáticas de longo prazo, entrelaçando pesquisa e métodos etnográficos. Tais projetos, no entanto, constituem um empreendimento gigantesco. Tem havido um interesse limitado na África urbana. Em parte, tenho assumido diferentes pontos de vista e posições profissionais porque um único ponto de entrada ou modalidade profissional simplesmente não é adequado p. 283 para ter acesso a muitos processos urbanos críticos. Assim, eu tenho ido e vindo - cidade a cidade, posição a posição. O enquadramento de posicionamento, sem dúvida, influenciou a maneira como eu vejo as cidades de que falei aqui. Tais idas e vindas são processos que não são desconhecidos por muitos africanos urbanos. Embora este método certamente não seja o único em uso, tem sido adotado por muitos habitantes da cidade para tentar entender o que está acontecendo. Como muitos observadores têm continuamente levantado a problemática de exatamente o que pode tornar as cidades especificamente “africanas”, quero deixar claro que minha intenção não é estabelecer uma especificidade geográfica ou uma modalidade ou urbanização particularmente “africana”. O impacto de diferentes formas pré-coloniais de urbanização, lógica e administração colonial e desenvolvimento pós-colonial nas cidades africanas tornam-nas de caráter heterogêneo No entanto, diante da reestruturação econômica global, os arranjos econômicos particulares, as inclinações culturais e as formas de engajamento externo que em grande parte tornaram as cidades africanas diferentes umas das outras estão sendo desvendadas. Além disso, lugares urbanos específicos, separados por distâncias físicas e culturais marcadas, estão sendo interpenetrados, em grande parte pelas ações dos próprios atores africanos. Por exemplo, cidades tão diversas como Mbuji-Mayi, Port Gentile, Adis Abeba, Arusha e Nouadibhou estão sendo vinculadas através da participação daqueles que fazem delas sua base em um sistema cada vez mais articulado de contra-comércio. O Contra-comércio envolve conexões com Bombaim, Dubai, Bangkok, Taipei, Kuala Lumpur, e Jidda. Estes circuitos, por sua vez, “se prolongam” e se ligam aos caminhos migratórios mais convencionais dos africanos ocidentais e centrais para a Europa, e cada vez mais nos Estados Unidos, e do leste africano para a América do Norte e o Reino Unido (CONSTANTIN, 1994). Estes circuitos estão organizados em torno de diferentes mercadorias, porém, um perfil comum ganhou força. Produtos primários valiosos, tais como minerais em particular, são desviados das estruturas “oficiais” de exportação nacional para intrincadas redes onde grandes volumes de produtos eletrônicos, armas, moedas falsificadas, títulos, narcóticos, dinheiro lavado e bens imóveis circulam através de várias “mãos” (MACGAFFEY; MUKOHYA; ENGUNDU; BEDA; SCHOEPF, 1991; BAYART; ELLIS; HIBOU, 1999; OBSERVATOIRE GEOPOLITIQUE DES DROGUES, 2001; GORE; PRATTEN, 2003). p. 284 As cidades africanas também se encontraram historicamente no mesmo barco quando se trata de unir um senso funcional de coerência e viabilidade a partir de uma coleção muito aleatória de aspirações e meios de subsistência. Muitas cidades não africanas também podem estar no mesmo barco. Entretanto, as cidades africanas compartilham uma região e são, portanto, objetos de iniciativas políticas e programas específicos e funções administrativas que são organizadas de acordo com linhas regionais. Essas iniciativas e funções têm um grande impacto na forma como as cidades são governadas e desenvolvidas. O que as distintas cidades africanas fazem desta “uniformidade” é, então, importante para o que lhes acontece no futuro. Além disso, a identificação de alguns pontos em comum, baseados empíricamente ou não, pode ser crítica para apoiar o próprio processo de expansão dos espaços de operação dentro dos quais os residentes dessas cidades estão engajados. O que é fundamental aqui é que as cidades africanas refletem, em diferentes dimensões e relações de poder, canais de engajamento com vários espaços e domínios geográficos, tanto materiais quanto espirituais. Em vez de ver essas cidades como predominantemente marginais de um mundo urbanizado maior, a maioria das cidades africanas têm sido plataformas de mediação. Tem havido lugares onde a assimilação, a integração e a reformulação e consolidação de novas formas, especificamente endógenas, de pensar e fazer as coisas poderiam ocorrer simultaneamente (FETTER, 1976; ROBERTS, 1987; PELS, 1998). Estas caracterizações têm sido tanto a força quanto a vulnerabilidade da cidade na África. Mais uma vez, esta elasticidade urbana proporciona uma multiplicidade de formas de entrar e sair, deixando, ao mesmo tempo, as cidades quer excessivamente fluidas ou sedentárias. Em um aspecto, os julgamentos sobre o “grau” de desenvolvimento, capacidade, produtividade ou marginalização assumem um certo senso de ligação entre as cidades africanas. Elas são vistas principalmente como criações coloniais, ainda em grande parte ligadas ao mundo através dos resíduos dessas relações coloniais. No entanto, ver as cidades africanas apenas em termos de suas relações coloniais e pós-coloniais, muitas vezes torna difícil ver o quão “modernas”, “inovadoras” e “engenhosas” elas podem realmente ser. Isso também pode impedir uma compreensão mais completa das formas multifacetadas em que elas estão envolvidas com o resto do mundo. Se houver uma conexão empírica entre cidades africanas distintas, é improvável que ela se encontre na simples reiteração de sua sujeição comum a alguma estrutura abrangente chamada “colonialismo”. Em outras palavras, para que o colonialismo seja retido como um conceito útil na compreensão das histórias urbanas africanas é preciso apreciar as diferentes influências que foram trazidas para determinados espaços urbanos. Formadas de maneiras diferentes, as cidades poderiam então for- p. 285 necer referências importantes umas para as outras. Era mais fácil fazer certas coisas em algumas cidades, e não em outras. Através da estadia, migração e quantidades limitadas de comércio, as cidades conseguiram criar alguma forma de ligação (ILLIFE, 1995; PEEL, 1980). Não vou fazer uma análise dessas interligações neste livro, mas é importante afirmar aqui sua existência para afirmar que espaços distintos de manobrabilidade que simplesmente não foram usados ou explorados existem nas cidades Africanas há algum tempo. Referências AGIER, M. Between War and City: Towards an Urban Anthropology of Refugee Camps. Ethnography, n. 3, 2002, p. 317-342. ARKADIE, V. The State and Economic Change in Africa. In: CHANG, H.; ROWTHORN, R. The Role of the State in Economic Change in Africa. Oxford: Clarendon Press, 1995. BANGURA, Y. Economic Restructuring, Coping Strategies, and Social Change: Implications for Institutional Development in Africa. Development and Change, n. 25, 1994, p. 785-827. BAYART, S. E.; HIBOU, B. (Orgs.). The Criminalization of the State in Africa. 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O que hoje chamamos de têxteis africanos são têxteis importados produzidos principalmente na Europa e na Ásia, isso mostra como o movimento dos têxteis uniu os nossos mundos e criou a narrativa têxtil atual no continente. É uma peça que nos faz analisar o nosso papel no desenvolvimento de uma nova narrativa na indústria têxtil africana, como preservamos o nosso conhecimento indígena e abraçamos os novos desenvolvimentos no design têxtil, entendendo que a menos que a nossa produção se torne circular, em breve os nossos recursos desaparecerão juntamente com as nossas histórias e tradições. Palavras-chave: descolonização; conhecimento indígena; economia circular. Caminos tejidos Resumen Caminos tejidos es una narrativa crítica de la industria textil africana que explora la historia y la historia del textil en África occidental y subsahariana como un paralelo al comercio de esclavos y la ocupación colonial. Lo que hoy llamamos textiles africanos son textiles importados producidos principalmente en Europa y Asia, muestra cómo el movimiento de los textiles unió nuestros mundos y creó la narrativa textil actual en el continente. Es una pieza para hacernos analizar nuestro papel en el desarrollo de una nueva narrativa en la industria textil africana, cómo preservamos nuestro conocimiento indígena y abrazamos los nuevos desarrollos en diseño textil, entendiendo que a menos que nuestra producción se vuelva circular pronto nuestros recursos desaparecerán. junto con nuestras historias y tradiciones. Palavras clave: descolonización; conocimiento indígena; economía circular. Woven paths Abstract Woven paths is a critical narrative of the African textile industry that explores the story and history of textile in West and Sub-Saharan Africa as a parallel to slave trade and colonial occupation. What we call African textiles today is imported textiles mainly produced in Europe and Asia, it shows how the movement of textiles brought our worlds together and created the current textile narrative on the continent. It is a piece to make us analyse our role in the development of a new narrative in African textile industry, how do we preserve our indigenous knowledge and embrace the new developments in textile design, understanding that unless our production becomes circular soon our resources will disappear along with our histories and traditions. Keywords: decolonization; indigenous knowledge; circular economy. n. 1 p. 290-305 2022 ISSN: 2965-4904 screver sobre os tecidos Africanos hoje, é sempre um pouco agridoce, há uma tristeza persistente desta indústria moribunda da qual fazemos parte e pela qual estamos a dar o nosso sangue, suor e lágrimas para a manter viva, é tenso, como assistir ao monitor cardíaco de um ente querido em estado crítico em uma cama de hospital. Onde começar? Talvez pelo início. Ao que hoje chamamos de tecidos africanos, é na verdade o descendente colonial dos nossos têxteis nativos. Estes tecidos de cera (wax), kitenge, capulana, mukumi… foram todos importados para o continente no século IX chegando pelo norte de Moçambique através dos Persas e dos Árabes. O Wax chega ao Oeste da África, antiga Costa do Ouro por via dos holandeses, e é uma imitação industrializada do batik indonésio que foi rejeitado pelos indonésios locais porém amado pelos Ganeses, um golpe de pura sorte para os holandeses que acabavam de criar esta nova tecnologia de estampagem. Há outras versões que chegam ao Quênia, Moçambique e Tanzânia que são inspiradas nos tecidos indianos de sari e madras, que ironicamente também inspira o tecido tartã escocês (embora a história diga que foi o contrário). E A chegada desses tecidos de algodão industrializados e coloridos significou que muitos dos sistemas de produção de têxteis indígenas africanos começaram a desaparecer, eles eram muito lentos, muito difíceis e não forneciam uma gama de cores tão vibrante. À medida que essas tradições foram desaparecendo, também desapareciam partes de nossa história, porque os têxteis africanos foram e ainda são uma parte intrincada da nossa tradição de contar estórias e um meio importante para o registo de nossas histórias. Como africanos somos contadores inatos de estórias, encontramos uma maneira diferente de embutir as nossas histórias nesses tecidos, talvez estes tecidos não fossem mais sagrados, cheios de nosso misticismo e tecidos com o conhecimento e as histórias de nossos ancestrais, mas ainda assim eles contavam nossas histórias. p. 304 Olhando no baú de madeira das nossas avós, recheado de capulanas, podemos ainda reviver a história colonial recente. Em Moçambique e em muitas partes da África, quando uma nova capulana chegava ao mercado as mulheres locais a batizavam, associando-a a uma data histórica importante, algo que aconteceu na comunidade ou um conto popular. Na Ilha de Moçambique onde chegaram os primeiros têxteis, eles têm um significado ainda mais profundo, as mulheres guardam-nos como uma demonstração de riqueza, uma herança que podem passar às suas filhas. Conta-se de alturas em que havia escassez de tecidos, e apenas as mulheres que guardaram capulanas puderam vestir as suas famílias. Ainda na Ilha e por ser uma comunidade muçulmana as mulheres usam três capulanas colocando uma para cobrir a cabeça, à semelhança do que usam as indianas e outras mulheres muçulmanas. Na antiga capital Lourenço Marques, actual Maputo, os têxteis eram comercializados num mercado nas terras do governante Polana. Os tecidos eram adquiridos em Ka Polana (que significa terras do Polana), e assim nasceu o nome Capulana. Em ambos lugares, ao se tornarem capitais coloniais, esses tecidos se tornaram um símbolo de separação, uma forma de diferenciar os nativos. Assim como as barreiras invisíveis que dividiam Lourenço Marques e a Ilha de Moçambique em duas partes, em Lourenço Marques, Xilungwine (cidade branca), era onde os portugueses viviam e como nativo era preciso ter um passe que permitisse circular, e na Ilha havia a divisão entre cidade de pedra e cidade de Makuti. É interessante ver hoje como mudou a nossa relação com os têxteis, não se pode dizer a nenhum moçambicano, ou africano que estes tecidos não são nossos, tornaram-se uma parte integrante da cultura africana que muitos de nós não conseguiríamos sequer imaginar um tempo em que eles não existiam. A prova disso é a economia dos têxteis africanos, pois os africanos consomem 90% dessa produção, mais de 80% dela é produzida fora da África, na Holanda, China, Índia e apenas uma percentagem muito pequena é produzida no continente, onde ainda assim a maioria dessas fábricas são investimentos estrangeiros. Então, sim, é nosso porque o usamos, mas não é nosso no sentido econômico, no sentido macroeconômico, porque pode-se argumentar que muitos dos mercados informais, do design africano e da indústria da moda são alimentados pelos tecidos de cera (Wax). Também não é nosso, pois não está mais embutido em nossas histórias, símbolos e conhecimento dos nossos ancestrais. Karingana wa Karingana, que significa era uma vez nas línguas Ronga e Changane, é a nossa tentativa de descolonizar o mercado têxtil africano, viemos com a visão de mudar a narrativa atual escrevendo histórias têxteis. Nós reapropriamos os têxteis africanos e os “re-significamos”... nossos têxteis contam novas histórias que elevam o conhecimento indígena, criamos novos sistemas de conhecimento, ocupamos espaço, construímos legados e impregnamos os nossos tecidos com novas narrativas de cura, que mudarão o vidas de muitos africanos. p. 305 Resenha Aprendendo com as cidades africanas a partir de “The history of african cities south of the Sahara: from the origins to colonization”, 1 de Catherine Coquery-Vidrovitch David Viana Universidade Portucalense (UPT) / Centro de Estudos em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (CEAU-FAUP) I nicialmente publicado nos primeiros anos da década de 1990, no idioma francês, com o título Histoire des Villes d’Afrique Noire: Des Origines à la Colonisation (Éditions Albin Michel S.A.), este livro aborda a problemática das cidades africanas e respetiva diversidade a partir de contextos geográficos e cronológicos previamente definidos e articulados, seguindo um fio condutor que os organiza desde as cidades anciãs até o século XIX. Este percurso está patente na organização do índice, composto por seis capítulos e conclusão. Antecede o primeiro capítulo o prefácio à edição americana e a introdução à edição francesa (1994). Cada capítulo está estruturado em três partes, com exceção do capítulo 5 (com duas partes) e da secção relativa à conclusão (com quatro partes). n. 1 p. 306-318 2022 O capítulo 1 tem designação genérica, referindo-se às cidades na África. Questiona a urbanização africana, procura avançar na definição relativa às cidades africanas pré-coloniais e perspetiva estabelecer a sua periodização. O segundo capítulo aborda cidades antigas, focando não só a África Oriental e o património Meroe, como o Sudão Ocidental e o delta interior do Níger. O terceiro capítulo refere-se às cidades Banto, sendo dado destaque quer ao Zimbábue e a ruínas na África Austral, quer a capitais de reinos na África Central e na África Meridional. O capítulo 4 discorre sobre o Islão e cidades africanas, desde as cidades antigas até as cidades islamizadas. É dada uma maior atenção ao contexto da África Ocidental e das cidades Swahili. O capítulo 5 é sobre o designado período Atlântico, desde o século XVI até o XVIII, demarcando-se a época anterior ao tráfico de escravos do período correspondente ao comércio escravagista. Por fim, o sexto capítulo coloca a tónica na revolução urbana do século XIX, aludindo ao papel dos portos marítimos e dos mercados na África Oriental, às transformações urbanas na África Sudanesa e à transição colonial verificada de Norte a Sul do continente. A secção sobre a conclusão do livro sublinha a importância da economia, dos diferentes tipos de cidades e da relação entre urbanização e colonização, e cultura e cidades. Há uma questão que importa dar nota, colocada imediatamente no início do primeiro capítulo, que indaga se a temática principal é a história africana ou se da respetiva história urbana. Reforçando que se trata de ambas, chama-se, no entanto, a atenção para o enquadramento da mesma no contexto africano, dada a inexistência de uma convergência evidente quanto a aspetos sociais, culturais, políticos, entre outros – mesmo no que diz respeito a conceitos como cidade e civilização, por exemplo. Adicionalmente, no livro é colocada a questão de se saber até que ponto o enquadramento e legado geocultural possibilitam, atualmente, a distinção entre cidades africanas e cidades do designado terceiro-mundo em geral. Para avançar na resposta, é referenciado René de Maximy, quando foca a diferença nas cidades que foram e permanecem habitadas por africanos, isto é, por indivíduos, grupos e pessoas que interagem entre si e vivenciam os espaços urbanos a partir de um património cultural e histórico específico. Os conteúdos do livro são desenvolvidos ao longo da narrativa nele explanada tendo em linha de conta as devidas especificidades contextuais quanto a noções como espaço, sociedade, economia, coletivo. Outras diferenças são igualmente equacionadas, como os diferentes sistemas ecológicos locais, as formas de organização entre indivíduos e comunidades, os modos de produção e de comércio/troca de produtos e recursos, para além das particularidades etnográficas, antropológicas e de comportamento associadas às diversas geografias africanas implicadas no conteúdo do livro. Este cuidado afasta-o de generalizações potencialmente redutoras da dimensão e diversidade de problemáticas inerentes aos múltiplos processos de urbanização em África, os quais colocam as respetivas cidades em estado de evolução e transformação constante no respeitante às correspondentes dinâmicas socioespaciais. Neste sentido, é frisado no livro que as relações entre a população urbana e o ambiente construído são estruturadas de acordo com expectativas sociais e políticas próprias, para além de condicionalismos ideológicos e tecnológicos. Outro tema relevante para a abordagem apresentada no livro prende-se com a diferença que é estabelecida entre a urbanização em África e no Ocidente. Distinguindo os distintos tempos e variáveis entre ambas, fica claro que os processos que despoletaram uma e outra têm contornos próprios – principalmente, as transformações de produção e migratórias que decorreram da Revolução Industrial na Europa (no caso da urbanização ocidental) e as alterações estruturais (organização da sociedade, formas de vida e de produção, código de leis e trabalho, sistema político, por exemplo) p. 311 introduzidas por nações colonizadoras ocidentais em largas regiões do continente africano, que deram espaço ao que é designado no livro por “revolução urbana”. No entanto, ainda de acordo com o livro, não terá sido a primeira, nem tão pouco a única, já que é possível identificar períodos pré-coloniais com lógicas de urbanização explícitas associadas e, por outro lado, essencialmente a partir do último quartel do século XX (anos de 1960/70 em diante) há evidências de uma outra revolução urbana a acontecer em África, com o crescente protagonismo de cidades africanas no âmbito da urbanização do que é chamado de Sul Global. Sobre urbanização e colonização, no livro considera-se que a cidade colonial não deve ser considerada uma exceção histórica, dado entender-se que qualquer cidade, independentemente da sua localização, sociedade e momento na história conheceu contextos de colonização em que, devido às diferentes culturas presentes ou em passagem e aos distintos modos de vida, se consubstanciaram transformações e contrastes socioespaciais que foram espelhando os vários domínios que penderam na respetiva configuração e organização (desde o poder mais benevolente até ao mais tirano). Alocar este tipo de questões apenas sob o enquadramento da colonização afigura-se redutor para o conhecimento de qualquer cidade, e das africanas também, pelo que no livro se advoga um olhar ajustado aos diversos períodos da história das cidades africanas, sem exagerar a relevância de um qualquer deles (isto, sem retirar a devida importância ao período colonial das cidades africanas – apenas colocando-o em perspetiva). p. 312 Para além do comentado nos parágrafos anteriores, destaca-se igualmente a ideia de que as cidades africanas, mais do que corresponderem a um tipo específico de cidade, são cidades híbridas – resultantes de uma cronologia (por vezes) muito longa e com uma grande profusão e contraste de atores, condicionantes e fatores internos e externos que moldam a respetiva história urbana. Assim, mais do que uma tipologia de cidade africana, o que é defendido no livro é uma cronologia da urbanização em África. Mais do que modelos, longos períodos de estabilização dos mesmos e fases de transição/sobreposição entre eles, a cronologia sugerida para enquadrar processos de urbanização em África acolhe a complexidade das cidades africanas quanto aos respetivos assentamentos, às formas de ocupação do território e rotas (de comércio, por exemplo) associadas, aos modos de transformação urbana, tipos de vida, produção, comércio e serviços proporcionados e às diferentes orientações político-religiosas-ideológicas das administrações (locais, coloniais, por exemplo) de cada cidade – logo, se independentes ou subjugadas a poderes internacionais. Sobre urbanização e colonialismo, é defendido no livro que na aurora do imperialismo colonial, a urbanização em África tinha já as fundações da sua transformação no sentido da modernização das cidades. Neste âmbito, cabe sublinhar o contexto desta transformação, resultante da dialética entre práticas consolidadas pela experiência do saber-fazer vernáculo – onde a noção da relevância do território e seus recursos tinha papel relevante – e o conhecimento que a dimensão da urbanidade sobre o habitat confere-lhe qualidades próprias do coletivo (independentemente dos diversos entendimentos que podem ser associados a esta palavra nos múltiplos quadros culturais na qual possa estar a ser equacionada). No caso concreto da “cidade africana”, urbanização e apropriação espacial estabelecem uma correlação intrínseca que molda a referida modernização no sentido dos espaços que são habitados mas que também habitam quem os habita. Perante o exposto, consubstancia-se a reflexão acerca da validade da expressão “cidade africana”. É a partir desta que as generalizações que o livro avança sobre a urbanização em África assentam no reconhecimento que a idade e a complexidade da história urbana em África exigem o conhecimento dos seus muitos tempos de formação e evolução, de modo que haja uma ampla e plural perceção do que conforma a configuração das mesmas. Neste sentido, a verificação das dinâmicas socioculturais e político-económicas de diversas proveniências com impacto na história urbana de África levou em conta contextos locais, islâmicos, mediterrâneos e asiáticos, não deixando de mencionar a convergência do contacto entre o Índico e o Atlântico. O livro visa a análise detalhada da sucessão, acumulação e interpretação destes contributos (muitas vezes, díspares entre si). Este legado confere ao processo da urbanização africana uma riqueza singular e muitas vezes (ainda) negligenciada e pouco reconhecida em narrativas redutoras sobre as cidades africanas. O livro procura ultrapassar esta situação abordando o fenómeno urbano em África através de uma lente ao mesmo tempo panorâmica e focada na especificidade de cada caso abordado. Neste trabalho, o livro é também meritório por correlacionar população urbana, ambiente natural e construído, classes sociais e âmbitos políticos. A urbanização em África, mais do que linear e escorreita, se apresenta interligada ao que de disruptivo e de entropia tem acontecido naquele continente. O livro propõe então uma leitura desdobrada entre a história de África e a história urbana de África, como indicado no início desta resenha. Uma e outra se alimentam, compaginando uma leitura plural das cidades africanas e do que as configura, do que as organiza e do que p. 313 lhes confere pulso e dá vida e sentido às suas vias, edifícios, gentes e hábitos. Saber ver a singularidade de cada cidade africana, saber ler a pauta dos elementos-chave que as estruturam e definem e compreender o que as move e o que movem implica (re)conhecer na primeira (na história de África) a segunda (a história urbana de África) e, simultaneamente, apreendê-la de modo não adjetivado e sem juízos pré-concebidos à partida. O legado das cidades africanas requer a utilização das “lentes” mais adequadas para o seu entendimento, obrigando quem sobre elas decide a se colocar numa posição de aprendizagem também, mais do que deterministicamente instrutora. A este propósito, da leitura do livro, infere-se que quanto mais se aprender com as cidades africanas mais se saberá sobre os desafios do viver urbano coletivo. Em síntese, mais do que rótulos – para se compreender a história das cidades africanas – este livro advoga ser necessário perceber e saber ler como os africanos têm reinventado as suas cidades: “[…] it is not the city that makes the African but the African who makes the city” (COQUERY-VIDROVITCH, 2008, p. 325). Esta reinvenção desafia categorias simplistas estabelecidas por “peritos” entre o “formal” e o “informal”, o “campo” e a “cidade”, o “moderno” e o “tradicional”, o “urbano” e o “periurbano”, entre a “evolução” urbana e a “involução” urbana, o paternalismo e o assistencialismo. Estes pares dicotómicos não cabem na leitura deste livro, porque míopes quanto ao espectro de contextos a serem perspetivados. Pelo contrário, a combinação dos múltiplos aspetos que contribuem para a consubstanciação das cidades africanas enquanto sistemas plurais e interatuantes, mesmo quando desestruturados e/ou não apoiados, demanda o correto enquadramento para cada um deles de forma a que fique explícita a inovação presente neles. p. 314 A capacidade inventiva dos africanos nos modos como vivem as suas cidades é uma realidade que pode dar indicações sobre como ultrapassar um dos efeitos mais calamitosos do período colonial nas cidades africanas: a confrontação entre dominantes e dependentes. Não obstante, de acordo com o referido no livro, este tipo de situação aconteceu em outros períodos da história da cidade africana – por exemplo, quando dos primeiros contactos entre africanos e árabes e o Islão. Desse modo, ter em linha de conta os ciclos da história das cidades africanas é crucial para saber qual o valor a dar ao que hoje se encontra nelas. Ter noção da intensidade dos respetivos fenómenos em cada um desses ciclos também se revela importante para o efeito. Conforme consta no livro, a história urbana de África em uma densidade é ainda pouco compreendida e justamente integrada nas principais narrativas dominantes sobre as cidades africanas. Assim se justifica a relevância deste livro. Destaca-se, da leitura do livro, a relevância e o papel da criatividade que os africanos empregam no viver urbano coletivo, quotidianamente renovada, mediando dificuldades e oportunidades, o popular e a inovação, a tradição e o progresso. Neste sentido, o livro constitui uma referência no modo como aprender a história das cidades africanas e, ao fazê-lo, como cada um de nós, leitores, aprendemos sobre a urbanização em geral – seu passado, presente e futuro. Referência COQUERY-VIDROVITCH, Catherine. The History of African Cities South of the Sahara: From the Origins to Colonization. 3. ed. Princeton: Markus Wiener Publishers, 2008. Notas 1 (Nota dos editores [N.E.]): Esta resenha foi escrita no português de Portugal. Os editores decidiram acolher neste dossiê as múltiplas grafias da língua portuguesa, conforme é escrita em cada um dos países lusófonos. p. 315 Laje é uma publicação semestral do ¡DALE! – Decolonizar a América Latina e seus Espaços, grupo de pesquisa vinculado ao Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. Dedica-se ao giro decolonial latino-americano, às epistemologias do sul e à descolonização do conhecimento, priorizando uma produção transdisciplinar em interseção com diferentes dimensões do urbanismo, da paisagem e da arquitetura. ISSN: 2965-4904