Acta Scientiarum
http://www.uem.br/acta
ISSN printed: 1983-4675
ISSN on-line: 1983-4683
Doi: 10.4025/ actascilangcult.v39i1.32033
Os feácios e a transição de Odisseu na Odisseia
André Malta
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, Rua do Lago,
717, 05508-080, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: andremal@usp.br
RESUMO. Uma das maiores unanimidades entre os estudiosos de Homero é a visão a respeito do papel
‘transicional’ desempenhado pelos feácios na Odisseia, povo que parece claramente estabelecer uma ‘ponte’ entre
as aventuras pregressas, fantasiosas de Odisseu e seu reingresso na dura realidade de Ítaca. Sua rápida estadia de
três dias nessa terra desconhecida oferece ao herói a oportunidade para que rememore as vicissitudes por que
passou desde a partida de Troia, fazendo assim com que se estabeleça uma relação narrador-audiência que nos
ajuda a entender não apenas as qualidades do protagonista do poema, mas também as desses extraordinários
anfitriões que o acolhem. Vou me deter aqui no modo como Homero constrói a caracterização dos feácios como
um povo ‘intermediário’, que mescla elementos opostos de modo a mostrar a possibilidade de conexão,
concretamente representada pela perícia desses homens em navegar.
Palavras-chave: Homero, épica grega, idealização.
The Phaeacians and Odysseus’ transition in The Odyssey
ABSTRACT. The transitional role played by the Phaeacians in The Odyssey has built into a kind of
‘communis opinio’ among Homeric scholars. Mixing divergent elements, these people seem to set a
connection between Odysseus’ previous adventures and his re-entering in Ithaca. His quick 3-day stay in
this unknown land gives him the opportunity to recall his sufferings since he left Troy, and manages to
build a relationship between narrator and audience that helps us understand not only Odysseus’ character,
but also the character of those who entertain him. I will focus on how Homer characterizes the Phaeacians
as an ‘intermediate’ people, mixing opposite elements which are epitomized in their ability to sail.
Keywords: Homer, Greek epic poetry, idealization.
Introdução
Talvez uma das maiores unanimidades entre os
estudiosos de Homero seja a visão a respeito do
papel ‘transicional’ desempenhado pelos feácios na
Odisseia (Woodhouse, 1930), povo que parece
claramente estabelecer uma ‘ponte’ entre as
aventuras pregressas, fantasiosas de Odisseu e seu
reingresso na dura realidade de Ítaca. Mais do que
isso, sua rápida estadia de três dias nessa terra
desconhecida oferece ao herói a oportunidade para
que rememore as vicissitudes por que passou desde a
partida de Troia, fazendo assim com que se
estabeleça uma relação narrador-audiência que nos
ajuda a entender não apenas as qualidades do
protagonista do poema, mas também as desses
extraordinários anfitriões que o acolhem.
Vou me deter aqui no modo como Homero
constrói a caracterização dos feácios como um povo
‘intermediário’, que mescla elementos opostos de
modo a mostrar a possibilidade de conexão e
passagem de que tanto necessita Odisseu –
possibilidade esta concretamente representada pela
perícia desses homens em navegar. É nesses
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elementos (disseminados principalmente entre os
Cantos 5 e 8) que devemos nos concentrar. A via
etimológica, muitas vezes útil, aqui pouco
esclarece, porque tanto o nome do lugar, Esquéria
(Skheríe), quanto o do povo, feácios (phaiékes),
permanecem obscuros. Poderíamos trabalhar com
a sugestiva ligação entre phaiékes e o adjetivo
phaiós, ‘cinza’, termo que, em grego, como mostra
o dicionário Liddell-Scott, indica precisamente a
‘mistura’ do branco e do preto; mas parecemos
estar diante apenas de uma associação sonora livre,
que prescinde de uma base sólida, capaz de
permitir a postulação da hipótese de que essa
camada semântica era de fato incorporada ao
texto.
O mesmo vale para a ligação entre Skheríe e o
substantivo skherós, citada por Bryan Hainsworth em
seu comentário, onde afirma que, quer aceitemos a
ideia de ‘continuidade’ para skherós, quer esposemos
a sugestão de Hesíquio em seu léxico, de que o
termo é sinônimo de akté, ‘costa’, ‘promontório’,
ainda assim tais conexões seriam dúbias, por mais
tentador que seja pensarmos que espelhariam a
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função transicional desses homens (Hainsworth,
1988).
Mais interessante, e com suporte mais evidente
no interior do poema, é a indeterminação sobre ser
ou não a Esquéria uma ilha. Ao contrário do que
acontece com Ogígia, claramente referida como nésos
(três vezes na Odisseia, I, 50, 85 e 198), a terra dos
feácios nunca é assim definida (Homero usa apenas
gaîa), embora certos elementos – como a fala de
Nausícaa no Canto 6, “Longe habitamos, remotos,
no mar repleto de ondas [...]” (Odisseia, VI, 204) –
pareçam querer remeter a um isolamento do tipo. A
tradicional identificação com a ilha de Corcira, atual
Corfu (Garvie, 1994), junto com responder a um
desejo já antigo de mapear as andanças de Odisseu,
mostra-nos, curiosamente, como o silêncio do texto
não era empecilho para uma convicção de que a terra
dos feácios era insular. Enquanto ilha, a Esquéria
surge como um elo perfeito entre a ilha de Calipso e
a ilha de Ítaca; por outro lado, enquanto terra
continental, ela igualmente parece representar uma
firmeza e solidez, uma mitigação do isolamento,
uma possibilidade maior de contato, que se ajusta
igualmente ao momento de transição vivido pelo
herói.
Neste artigo, abordaremos, primeiro, essa
condição ‘fronteiriça’, de cruzamento entre dois
mundos, encarnada pelos feácios, para, depois,
restringindo-nos ao polo positivo dessa condição,
explorar os elementos de ‘idealização’ desse povo,
que têm reflexos sobre a moral geral do poema.
Malta
do que denomina de ‘justaposição dos feácios e
Calipso’ na narrativa, ele diz:
Os feácios, com sua existência ativa, ágil, de
marinheiros, são o oposto da inatividade forçada em
Ogígia e da falta de meios de transporte que Calipso
alega para Hermes (Odisseia, V, 141-142). [...] A
solidão e o isolamento de Ogígia também
contrastam com o gosto dos feácios pela vida
coletiva, em sociedade [...]. A Esquéria representa
assim um ponto essencial na passagem da completa
suspensão em Ogígia em direção ao completo
envolvimento em Ítaca (Segal, 1994, p. 16-17,
tradução nossa)1.
Quanto à relação entre os feácios e os Ciclopes,
ela é, como sabemos, abordada pelo próprio
narrador da Odisseia. No Canto 6, ficamos sabendo
que o povo, que é a própria antítese da selvageria
ciclópica, outrora viveu ‘perto’ dela:
[...] Mas Atena
foi à cidade populosa dos feácios, que antes
tinham habitado na espaçosa Hipereia, perto
dos Ciclopes, homens de terrível insolência,
que continuamente os pilhavam por serem mais
fortes.
Foi de lá que os trouxe o divino Nausítoo e os
estabeleceu
em Esquéria, longe dos homens que comem pão.
Em torno da cidade construíra um muro; edificara
casas,
Fronteira náutica
Quem melhor explorou a ‘função transicional’
dos feácios, que fazem a ponte entre dois mundos,
foi Charles Segal, no ensaio ‘Os feácios e o retorno
de Odisseu’, apresentado em duas partes no livro
Cantores, heróis e deuses na Odisseia (Segal, 1994). O
enfoque de Segal privilegia o aspecto psicológico e
concentra-se na simbologia do renascimento. Para o
estudioso norte-americano, o fato de Odisseu chegar
nu à Esquéria indicaria sua volta à vida depois de sua
quase morte em Ogígia, motivo que seria retomado
no Canto 22, quando ele “[...] despiu os
farrapos[...]” (gumnóthe rhakéon, Odisseia, XXII, 1)
para dar início ao ataque contra os pretendentes.
De fato, no poema a ideia de salvação da morte –
ou de um novo acesso à vida – vem bem destacada
na despedida entre o herói e Nausícaa, a jovem que
o vestiu em sua chegada (Odisseia, VI, 457-468).
Além desse binômio morte/vida, Segal explora os
pares
secundários
atividade/inatividade
e
sociabilidade/isolamento, no contraste dos feácios
com as duas figuras principais das aventuras de
Odisseu, Calipso e o Ciclope. Sobre a importância
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templos dos deuses e procedera à divisão das terras.
Mas agora, vencido pelo destino, estava já no Hades;
o rei era Alcínoo, cujos conselhos igualavam os dos
deuses.
(Odisseia, VI, 2-12)2.
De certa maneira, esse movimento de
‘transposição’ – de um ambiente bruto em direção a
um comedido – experimentado pelos feácios parece
reproduzir aquele agora vivido por Odisseu,
habilitando-os, assim, a se encarregarem da
‘reinserção’ do herói no mundo civilizado (ainda que
esse mundo esteja sujeito à mesma insolência, como
vemos pelos pretendentes).
Do mesmo modo, o contato dos feácios tanto
com o âmbito divino quanto com o mortal os coloca
mais uma vez na borda entre dois mundos. Como
1
[…] The Phaeacians, with their activity, agility, and seamanship, are antithetical
to the inactivity enforced on Ogygia ant to the lack of means of transportation that
Calypso alleges to Hermes (5.141-42). […] The loneliness and isolation of Ogygia
also contrast with the Phaeacians’ fondness for society and collectivity. […]
Scheria thus forms an essential stepping-stone from the complete suspension of
Ogygia to the complete involvement of Ithaca.
2
Citamos sempre a tradução de Frederico Lourenço (2011).
Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017
Os feácios e a transição de Odisseu na Odisseia
3
afirma Zeus a Hermes no Canto 5, eles ‘são parentes
dos deuses’ (agkhí theoì gegáasin, Odisseia, V, 35 =
Odisseia, XIX, 279), e, segundo Nausícaa, ‘pelos
deuses imortais especialmente estimados’ (Odisseia,
VI, 203). Ainda assim, não têm a condição divina de
Circe ou Calipso e ficam sujeitos à cólera de
Posídon. Posídon, não por acaso, é uma divindade
fundamental para entendermos o papel dos feácios.
Segundo afirma Atena no Canto 7, o deus é avô de
Alcínoo (Odisseia, VII, 56-66). Esse parentesco com
os deuses, que inclui também uma relação com
figuras excessivas, é afirmado pelo próprio Alcínoo,
quando se indaga sobre quem seria o forasteiro
recém-chegado:
Porém se ele for um dos imortais, descido do céu,
outra coisa doravante estarão os deuses a planear:
é que antes sempre se nos revelaram de forma clara,
quando oferecíamos as gloriosas hecatombes; e eles,
conosco sentados,
banquete.
conosco
participavam
do
E se algum de nós, caminhando só pela estrada,
encontrar um dos deuses, eles não se ocultam, visto
que são parentes
nossos, como são os Ciclopes e os selvagens
Gigantes.
(Odisseia, VII, 199-206).
A maneira como Odisseu é recebido revela de
maneira muito clara essa tensão característica do povo.
Por um lado, temos uma hospitalidade irretocável, que
a jovem Nausícaa, a primeira a ter contato com o herói,
demonstra possuir de modo inequívoco. Já no palácio
de Alcínoo, é a vez de o ancião Equeneu dar as
seguintes orientações ao rei Alcínoo:
Levanta dali o estrangeiro e senta-o num trono
decorado
com prata, e ordena aos escudeiros que misturem o
vinho,
para que a Zeus que lança o trovão ofereçamos
libações:
pois é ele que segue no encalço dos venerandos
suplicantes.
E que a governanta lhe dê uma ceia do que houver lá
dentro.
(Odisseia, VII, 162-165).
Por outro lado, essa intrigante hesitação de
Alcínoo – que o leva a precisar de orientações sobre
como agir naquela situação – vem se juntar a uma
falta de sociabilidade, a um isolamento (a cidade é
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cercada por muralhas; Odisseia, VI, 262-263), que
parecem pôr em dúvida essa hospitalidade
aparentemente irrestrita. Nesse sentido, sabemos
pelo que diz Nausícaa (como vimos), que os feácios
vivem ‘remotos’ e não têm ‘associação’ com outros
povos (Odisseia, VI, 204-205). Mais do que isso, a
jovem diz com todas as letras que há homens
‘presunçosos’ (huperphíaloi, Odisseia, VI, 274) em
Esquéria, numa qualificação que é idêntica à
empregada para o Ciclope (Odisseia, IX, 106) e
para os pretendentes (em Odisseia, I, 134 e 227,
entre outras ocorrências). O passo não é isolado
nem se liga simplesmente a um possível ‘ciúme’
dos jovens locais em relação ao forasteiro: Atena,
disfarçada, também reafirma para o herói esse lado
não amistoso dos feácios, quando comenta que
não são muito receptivos com estrangeiros, não
tratando bem nem dando boas-vindas a quem vem
de outra terra (Odisseia, VII, 31-33). Poderíamos
supor que temos aí apenas um movimento da
deusa no intuito de aguçar a atenção e a
desconfiança já características do herói, mas o fato
é que a sequência da narrativa comprova que não
se pode descartar o desrespeito da parte dos
feácios. Na passagem dos jogos, como sabemos,
Euríalo trata de maneira indevida Odisseu ao
desconfiar da capacidade atlética deste (Odisseia,
VIII, 158-185) e acaba sendo comparado pelo
herói a um ‘desvairado’ (atastháloi andrí, verso
166). No final, o jovem busca a reconciliação
(Odisseia, VIII, 396-416), sem, contudo, desfazer
a impressão de que a hospitalidade irrestrita
guarda dentro de si um lado sombrio e
perturbador.
Portanto, estamos diante do que Suzanne Saïd
denominou de ‘terra de contrastes’ – ilha e
continente, com origem divina e destino mortal,
hospitaleira e com uma agressividade latente, isolada
e dada à sociabilidade. A uma imagem inicialmente
unívoca vêm se juntar, marginalmente, ‘notas
discordantes’, nos dizeres novamente da helenista
francesa. Para Saïd, em Esquéria,
[...] o aspecto selvagem vive lado a lado com a
civilização em seu mais alto grau. Essa dualidade fica
aparente desde a chegada de Odisseu. A ilha é
coberta por um denso bosque e a princípio oferece
apenas um abrigo natural (Odisseia, V, 478-480),
apropriado mais para um animal do que para um
homem (não por acaso a mesma fórmula é usada no
Canto 19 (versos 440-442), para descrever o
esconderijo do javali ferido pelo jovem Odisseu), e
um simples leito de folhas. Mas ela também tem,
crescendo junto a uma oliveira selvagem, uma árvore
enxertada e cultivada, como aquelas que crescem em
Ítaca, bem como ‘campos cultivados’ e uma cidade
de fato, com ‘longas, altas paliçadas’ (Odisseia, VII,
Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017
4
Malta
44-45), e uma ágora [...] (Saïd, 2011, p. 179-180,
tradução nossa)3.
Esses contrastes, como dissemos, podem ser um
recurso feliz no poema para sintetizar a função
transicional dos feácios: guardando elementos das
duas ‘pontas’ da viagem de Odisseu, eles podem
conectar à sua realidade o homem oriundo da
fantasia.
Concretamente, é a capacidade náutica desse
povo a chave para que essa passagem se dê. Como
acontece com frequência no poema, a
transparência dos nomes é explorada aqui de
modo eloquente. Alcínoo, Rexenor e Arete não
têm denominações associadas à atividade
marítima, mas Nausícaa (Nausikáa) retoma o avô
Nausítoo (Nausíthoos, ‘Nau-ligeira’), e já vimos
acima a intervenção do velho e sábio Equeneu
(Ekhéneos, ‘Detém-nau’). O passo fundamental,
no entanto, é o catálogo do Canto 8 (versos 111119), quando somos apresentados a vários feácios;
as traduções apenas vernaculizam os nomes
gregos, tirando-lhes a transparência original.
É curioso notar como essa perícia é revestida ora
de um aspecto mágico, ora realista, como se
houvesse aí também uma junção de opostos.
Quando Nausícaa descreve a pólis feácia e o caráter
navegador do povo – informação que Odisseu
certamente ouve com alegria –, a ênfase recai sobre o
‘trabalho’ com as naus, que proporcionam o prazer
da travessia (Odisseia, VI, 263-272). No Canto 7,
Atena diz a Odisseu que se trata de um povo que
“[...] confia apenas nas suas rápidas naus
velozes[...]”, as quais “[...] são rápidas como uma
flecha ou um pensamento[...]” (versos 34-36), o que
parece conferir a elas um caráter sobrenatural, ainda
que a mesma Atena sublinhe o conhecimento
prático, ao afirmar que os “[…] feácios são os mais
sabedores de todos os homens/ sobre como
navegar[...]” (108-109). Mais adiante, ainda no
Canto 7, é a vez de Alcínoo destacar a condição
incomum do transporte marítimo praticado por seu
povo (numa passagem em que o afastamento da
Esquéria do mundo conhecido fica novamente
indicado; Odisseia, VII, 319-328). O trecho parece
apontar para uma combinação – livre de contradição
– entre a ação dos marinheiros (que percutem o mar
com remos) e um movimento sem esforço ou
cansaço (áter kamátoi). Ou seja, ao trabalho dos
3
[…] wildness exists side by side with the highest degree of civilization. This
duality becomes apparent from the moment when Odysseus arrives. The island is
covered in dense woodland and at first only affords him a natural shelter
(5.478.80), more fitting for a beast than for a man (it is no accident that the same
formulae are used at 19.440-2 to describe the lair of the boar that wounded the
young Odysseus), and a simple bed of leaves. But it also has, growing alongside
a wild olive tree, a grafted, cultivated tree, just like those that are grown in Ithaca,
as well as ‘cultivated fields’ (7.44-5) and a true city with ‘long, high palisaded
walls’ (7.44-5) and an assembly-place […].
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feácios com suas naus vem se juntar uma facilidade
típica do âmbito divino.
A passagem mais explícita sobre o modo
sobrenatural como operam as naus fica reservada, no
entanto, para o trecho final desse Canto 8:
E diz-me qual é tua terra, qual é a tua cidade, para
que até lá
as nossas naus te transportem, discernindo o
percurso por si sós (tituskómenai phresí).
É que os feácios não têm timoneiros, nem têm
lemes,
como é hábito entre as naus dos outros; mas as
próprias naus
compreendem (ísasi) os pensamentos e os espíritos
dos homens,
e conhecem (ísasi) as cidades e férteis campos de
todos,
atravessando
ocultadas
o
abismo
do
mar
rapidamente,
por nuvens e nevoeiro (kekalumménai). Nunca
receiam que algo de mal
lhes aconteça, nem nunca têm medo de se perder.
(Odisseia, VIII, 555-563).
Por aí vemos que se, por um lado, as naus são
objeto do empenho e da dedicação dos feácios, os
quais, quando no mar, atuam como seus remeiros,
por outro elas prescindem dos condutores e lemes
típicos das embarcações ‘mortais’, atravessando o
mar por meio de uma espécie de ‘piloto automático’.
Reparemos como o aspecto divino delas fica
destacado por meio da repetição da ideia de um
saber total (verbo ísasi, ‘conhecem’, nos versos 559 e
560); da informação sobre o ‘encobrimento, que as
separa, pela invisibilidade, do mundo comum, como
se existissem em outro plano (como as Musas
‘envoltas por muita névoa’ na Teogonia, ou o
próprio Odisseu ‘enevoado’ por Atena); e da
ausência de medo e de risco de dano. Em outras
palavras, as naus ganham aí uma autonomia notável,
em que, com o ato esperado de cruzar, ligeiras, o
mar, são inesperadamente personificadas, sendo
capazes de ‘saber’ e ‘(não) recear’.
Assim se combinam, portanto, mesmo na
atividade da passagem, características contrastantes: o
símbolo máximo do ‘cruzamento’ – a atividade da
navegação – reúne em si elementos mesclados, o
divino e o humano, a facilidade e o trabalho. A
tensão fica ainda mais forte se considerarmos que
esses feácios, um pouco ‘mágicos’, podiam ser
associados aos fenícios pela audiência homérica, o
que ajudaria a contrabalançar irrealidade com
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Os feácios e a transição de Odisseu na Odisseia
realidade, imaginário livre e ancoragem no mundo
concreto. Quem explorou de modo interessante
essa associação foi Carol Dougherty, em seu livro
A jangada de Odisseu, de 2001. Segundo essa
estudiosa, os feácios desempenham o papel de
porta de acesso à imaginação etnográfica do
mundo da Odisseia, sendo apresentados numa
chave positiva e idealizada que os opõe, dentro de
um mesmo universo de ‘troca’, aos gananciosos
fenícios (trôktai, Odisseia, XIV, 289, e XV, 416).
Em apoio a essa conexão, Dougherty invoca pelo
menos quatro dados alusivos do texto: a
similaridade entre a topografia de Esquéria e a da
cidade fenícia de Tiro, assinalada já pelos
comentadores (Dougherty, 2001); o fato de
Leucótea, filha do fenício Cadmo, vir em auxílio
de Odisseu no Canto 5 (versos 333 e 334); a
menção feita pelo herói ao ‘novo rebento de uma
palmeira’ (phoínokos érnos) no momento em que
saúda Nausícaa (Odisseia, VI, 163), com o termo
para ‘palmeira’ remetendo no original, pela
sonoridade, a ‘fenício’; e, finalmente, o uso de um
mesmo epíteto, ‘célebres pelas suas naus’,
nausíklitoi, tanto para fenícios quanto para feácios
– e apenas para eles – na Odisseia (aplicado aos
primeiros em Odisseia, VII, 39, e aos segundos em
Odisseia, XV 415). A partir disso, ela conclui:
[...] o texto da Odisseia apresenta dois povos, os fenícios
e os feácios, ambos afamados por seus navios e por sua
habilidade náutica, e então os situa em polos opostos do
espectro da troca [...]. Numa ponta está o modelo da
contínua reciprocidade, corporificada pelo sistema de
troca de dádivas; no outro extremo, roubo ou pirataria
representam a completa falta de troca em todos os
sentidos (Dougherty, 2001, p. 115)4.
De acordo com Dougherty, é possível levar essa
dualidade para a própria figura de Odisseu:
[...] como um mercador fenício, Odisseu viaja pelo
mar, pratica o engano e traz para casa uma grande
quantidade de bens valiosos. Ao mesmo tempo,
porém, Odisseu tem muito em comum com os
fictícios feácios e, como eles, claramente conhece as
regras de hospitalidade (Dougherty, 2001, p. 117)5.
Qualquer que seja a interpretação adotada a respeito
da ligação entre feácios e fenícios, é certo que essa
possível conexão traz mais um nível de duplicidade
4
[…] the text of the Odyssey presents two peoples, the Phoenicians and the
Phaeacians, both famed for their ships and nautical skill, and then locates them
at opposite ends of the exchange spectrum […]. At one end of the spectrum is
the model of ongoing reciprocity embodied in the system of gift exchange; at the
other extreme, outright theft or piracy represents the complete absence of
exchange in any sense.
5
[…] like a Phoenician trader, Odysseus travels by sea, practices deception, and
brings home a great deal of valuable goods. At the same time, however,
Odysseus has much in common with the fictional Phaeacians. Like them, he
clearly knows the rules of hospitality.
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5
aos transportadores de Odisseu, ao mesmo tempo
ligando-os e separando-os da realidade. É
interessante notar, desenvolvendo essa conexão de
Odisseu com os feácios tanto pelo lado justo quanto
pelo lado ‘fenício’, como o povo da Esquéria, em sua
condição fronteiriça e híbrida, acaba sendo o alvo
típico da cólera divina, por praticar ‘em excesso’ sua
habilidade. Em certo sentido, a Odisseia nos mostra
como sua hospitalidade pode ser perigosa, caso
extrapole os limites, o que não só retoma uma
questão central no comportamento do próprio
Odisseu, como a apresenta num sentido invertido:
os feácios, ao transportarem Odisseu, contribuem
para o fim da cólera de Posídon contra o herói, ao
mesmo tempo em que, com isso, estabelecem a ira
do deus contra si próprios.
Com efeito, não podemos concluir a discussão
sobre a capacidade feácia de transporte náutico sem
abordar esse motivo da cólera. Como já vimos, há
um parentesco entre esse povo e Posídon –
genealogia que em certo sentido explica o poder que
aquele tem da travessia. Em termos concretos, os
feácios cultuam o deus, recebendo em troca seu
favor no mar. Essa relação de reciprocidade vem
indicada no poema no momento em que somos
informados de que o templo dessa divindade se
destaca na paisagem da cidade (Odisseia, VI, 266) e
de que esses marinheiros só conseguem passar pelo
‘abismo do mar por graça do Sacudidor da Terra’
(Odisseia, VII, 35). É exatamente por conta dessa
relação típica entre mortal e imortal que paira sobre
os feácios a ameaça de um eventual
descontentamento divino, na realidade, ele faz parte
de uma predição antiga, relatada por Alcínoo a
Odisseu no Canto 8 (Odisseia, VIII, 564-571). É
possível afirmar, pelas palavras do rei, que o
agastamento
divino
se
explica
por
um
comportamento ‘imortal’ dos feácios na função de
transportadores: essa condução não só é total, ‘de
todos’, irrestrita e ilimitada, como também é
‘indene’, sem dano, sem sofrimento, fazendo assim
de certo modo pender a balança da existência desse
povo para o âmbito sobre-humano, como se eles não
estivessem sujeitos às vicissitudes da vida finita. É
bom lembrar que esse trecho vem logo a seguir ao
comentário de Alcínoo (citado acima) sobre o caráter
mágico e timorato das suas naus: ele mesmo tem
consciência, portanto, de que sobre essa ‘facilidade’
deve
necessariamente
se
associar
um
descontentamento, para o qual a profecia aponta.
Há, naturalmente, uma ironia no fato de que o
dia indeterminado (poté, Odisseia, VIII, 567) para o
cumprimento da predição chegou – e de que a
predição é comunicada a quem é responsável por
levá-la a cabo, Odisseu. Mais do que isso, no
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6
Malta
entanto, importa destacar que esse esquema
predição-cumprimento se liga a um padrão no
poema, figurando de diferentes maneiras ao longo da
narrativa – na volta de Odisseu e no seu destino pósOdisseia; na morte de seus companheiros; no
cegamento do Ciclope; na morte dos pretendentes –
e que, assim, o ‘vidente’ Nausítoo vem se juntar a
Haliterses, Têlemo, Tirésias e Teoclímeno. Como
elemento comum, temos a presença de uma
inevitabilidade conjugada, paradoxalmente, à
possibilidade de antecipação dos fatos – num
desenho cujos efeitos trágicos, tão evidentes na
Ilíada, talvez se apliquem, em Odisseia, apenas aos
pretendentes.
No caso específico dos feácios, podemos ver com
clareza como opera a cólera divina no diálogo entre
Zeus e Posídon do Canto 13, quando o Treme-terra
vê que Odisseu foi transportado com sucesso até
Ítaca. O deus imediatamente reage: o fato de o herói
retornar para casa com mais dádivas do que teria
obtido, caso tivesse vindo diretamente de Troia,
incólume, faz Posídon sentir-se desonrado pelos que
são da sua ‘linhagem’ (genéthles), o que põe em risco
sua própria honra entre as divindades (Odisseia,
XIII, 128-138). Zeus responde que não há risco de
desonra, entre os imortais, para quem é ‘o mais
velho e o melhor’ (presbútaton kaì áriston), e que
contra os homens que agem com violência há
sempre a possibilidade de vingança (tísis), conforme
ele, Posídon, desejar (versos 140-145). O Tremeterra comunica então sua vontade: estilhaçar a nau,
para que os feácios desistam do transporte, e cercar a
cidade com uma montanha (versos 147-152). Zeus
concorda com a segunda medida, mas sugere que,
em vez da destruição, a embarcação seja
transformada em pedra, num prodígio à vista de
todos (versos 154-158), solução mais inteligente,
porque faz a agilidade e rapidez serem vingadas com
o estabelecimento da condição inversa, a
imobilidade... A partir desse ponto, lemos, então, o
seguinte:
Quando ouviu estas palavras Posídon que abala a
terra,
foi para a Esquéria, onde habitam os feácios, e aí
esperou.
Aproximou-se a nau preparada para o alto mar,
navegando
rapidamente; e dela se aproximou o deus que abala a
terra
e transformou-as em pedra, enraizando-a no fundo
do mar
com um golpe da mão; e de seguida partiu.
Acta Scientiarum. Language and Culture
Entre eles proferiram palavras apetrechadas de asas
os feácios de longos remos, famosos pelas suas naus.
E assim falava um, olhando de soslaio para outro:
Ai de mim, quem estancou no ar a nau veloz
quando regressava para casa? Estava à vista de todos!
Assim falava alguém, sem saber como tudo se
cumpria.
Mas Alcínoo, tomando a palavra, falou no meio
deles:
Ah, na verdade vêm ao meu encontro os oráculos há
muito proferidos
pelo meu pai, que afirmava que Posídon se agastara
conosco, ao sermos indenes transportadores de
todos:
disse que um dia à nau bem-feita dos varões feácios,
após voltar de um transporte pelo mar enevoado,
destruiria, e com grande monte a pólis cercaria.
Assim proferia o velho. E agora tudo se cumpre.
Mas agora àquilo que eu disser obedeçamos todos.
Cessai o transporte de mortais, quando à nossa
cidade
vier ter alguém; e a Posídon sacrificaremos doze
touros
escolhidos, para que de nós se digne apiedar-se
e a cidade não nos rodeie com uma grande
montanha.
Assim falou; eles sentiram medo (édeisan) e
prepararam os touros.
Fizeram suas preces a Posídon soberano
os príncipes e conselheiros do povo dos feácios,
em pé em torno do altar. Acordou então o divino
Odisseu...
(Odisseia, XIII, 159-187).
Em toda a cena, vemos a combinação dos dois
motivos fundamentais para a vingança divina –
excesso e honra -, os mesmos que reaparecem nas
cóleras de Posídon contra Odisseu e do Sol contra
seus companheiros (na cronologia linear, eventos já
acontecidos, mas ainda por narrar na disposição
enviesada da Odisseia). Diante das similaridades,
portanto, podemos afirmar, seguindo Charles Segal
(Segal, 1994), que Odisseu deixou sua marca – a
inevitabilidade do sofrimento – com os feácios, agora
forçados a compartilhar da sofrida condição mortal,
e que a última visão que temos deles, no mesmo
verso em que Odisseu acorda em Ítaca (Odisseia,
Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017
Os feácios e a transição de Odisseu na Odisseia
XIII, 187), é de incerteza. De fato, o povo cujas naus
navegavam sem receio agora sente medo e se apoia
na esperança – ao que tudo indica, vã – de que a
profecia (a cidade ser rodeada por um monte) não se
cumpra. Essa ‘marca’, por sua vez, permite não
apenas que entendamos os feácios à luz do contato
com Odisseu, mas também Odisseu à luz do contato
com os feácios: ou seja, esse povo é ‘contaminado’
pela presença do herói, mas o que se passa com este
é igualmente iluminado pelo destino dos habitantes
da Esquéria.
Ao mesmo tempo, a despeito de a ruína de que
são vítimas ajudar a romper qualquer conexão que
ainda persistia deles com um âmbito fantasioso livre
de problemas – uma vez que são apresentados de
modo muito humano na relação com o divino,
sendo alvos da cólera de Posídon e precisando
apaziguá-la –, não nos parece que essa conexão fique
totalmente desfeita por esse desfecho. Pelo
contrário: o fato de Odisseu ser o último a ser
transportado por esse povo parece lançar de vez os
feácios num passado mágico e inacessível, com o
qual ninguém mais, dentre os mortais, terá contato.
Casamento, esporte, política
Se é certo que, vista em seus detalhes, a
representação dos feácios está caracterizada por uma
natureza ‘transicional’, não é menos certo que a
‘impressão’ geral que fica desse povo é a de uma
idealização: no fim das contas, é a pintura positiva
que sobressai. Nenhuma outra passagem indica isso
melhor do que a descrição, no Canto 7, do pomar de
Alcínoo, cenário saído de uma verdadeira Idade de
Ouro. Essa descrição surge no momento em que
Odisseu, envolto por uma névoa, adentra o palácio
do rei: depois de se maravilhar com as paredes de
bronze, as portas de ouro e as colunas de prata, entre
outras características sobre-humanas (versos 82111), o herói se depara com o seguinte quadro:
Fora do pátio, começando junto às portas, estendiase
o enorme pomar, como uma sebe de cada um dos
lados.
Nele crescem altas árvores, muito frondosas,
pereiras, romãzeiras e macieiras de frutos brilhantes;
figueiras de figos doces e viçosas oliveiras.
Destas árvores não murcha o fruto, nem deixa de
crescer
no inverno nem no verão, mas dura todo o ano.
Continuamente
o Zéfiro faz crescer uns, amadurecendo outros.
Acta Scientiarum. Language and Culture
7
A pera madurece sobre outra pera; a maçã sobre
outra maçã;
cacho de uvas sobre outro cacho; figo sobre figo.
Aí está também enraizada a vinha com muitas
videiras:
parte dela é em local plano de temperatura amena,
seco pelo sol; na outra, homens apanham uvas.
Outras uvas são pisadas. À frente estão uvas verdes
que deixam cair a sua flor; outras se tornam escuras.
Junto à última fila da vinha crescem canteiros de
flores
de toda a espécie, em maravilhosa abundância.
Há duas nascentes de água: uma espalha-se por todo
o jardim; do outro lado, a outra flui sob o limiar do
pátio
em direção ao alto palácio: dela tirava o povo a sua
água.
Tais eram os belos dons dos deuses na casa de
Alcínoo.
Ali, de pé, se maravilhou o sofredor e divino
Odisseu.
(Odisseia, VII, 112-133).
Essa produção contínua (mál’ aieí, verso 118), que
se estende por todo o ano (epetésios, verso 118, e
epeetanón, verso 128), talvez explique o nome do
lugar, Skheríe – conforme uma das hipóteses citadas
acima –, e o uso excepcional na épica, num trecho
narrativo, do tempo presente (versos 103-131),
contribui para dar vivacidade à descrição, como se
víssemos tudo pelos olhos maravilhados de Odisseu.
O trecho nos lembra a descrição da Idade de Ouro,
que encontramos nos Trabalhos e dias, de Hesíodo
(versos 109-119). A associação não é completa,
porque, em Hesíodo, o homem dessa idade está
aparentemente livre do trabalho – verdadeiro sinal,
em seu poema, de uma ‘queda’ do paraíso. Já nesse
canto da Odisseia, apesar de estarmos diante de ‘dons
dos deuses’, de uma terra verdadeiramente pródiga,
em que a ‘perenidade’ é marca de uma condição
sobre-humana – os frutos são imperecíveis, não
murcham –, ainda assim há indicações de labuta,
com as uvas sendo apanhadas e pisadas (versos 124125). A videira ‘em local plano’ (verso 123), com a
fonte que flui ‘em direção ao palácio’ (verso 131),
também ajuda a sugerir a ideia de um planejamento
humano, que desfaz a impressão de uma
espontaneidade absoluta. É como se fosse retomado
aqui o mesmo padrão que encontramos em relação à
atividade náutica: o elemento mágico não anula a
Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017
8
necessidade de aplicação e empenho. Mesmo assim
o quadro é de um lugar ideal: o cultivo da uva e da
oliveira nos mostra que estamos perante uma
sociedade tipicamente grega, mas levada a uma
condição sublime, maravilhosa, utópica.
Três âmbitos ‘idílicos’ dos feácios são
particularmente importantes para o plano geral da
Odisseia: o casamento, a disputa atlética e a condução
política. Eles pintam uma situação de paz e
prosperidade que de certo modo antecipa o que
Odisseu deverá estabelecer em Ítaca em sua volta,
numa sociedade que está perturbada pela corte
indevida, pelo espírito belicoso e pela acefalia. O
tópico da união matrimonial é explorado na relação
do herói com a jovem filha do rei, Nausícaa, figura
que Homero elabora com extrema delicadeza.
Quando aparece pela primeira vez, no Canto 6,
somos informados de que ela ‘na forma e na beleza
igualava as deusas’ (verso 16) e de que seu
casamento estava ‘próximo’ (verso 27): não
permaneceria ‘virgem por muito tempo’, já sendo
cortejada por ‘pretendentes os mais nobres’ (versos
33-34). O fato de a jovem surgir sonhando com os
preparativos do casamento – estratégia de Atena para
que, ao ir lavar o enxoval, encontre Odisseu – já nos
transmite algo de um impulso erótico que
perpassará, com inigualável sutileza, todo o episódio.
Ao mesmo tempo, a descrição que se segue ao
momento em que acorda traça indiretamente um
contraponto entre essa adolescente e Telêmaco,
ambos prestes a ingressar no mundo adulto – mas o
dela, ao contrário do que acontece com o filho de
Odisseu, livre de problemas (Odisseia, VI, 48-55).
Em poucas linhas Homero é capaz de nos indicar
como a mãe, Arete, desempenha a atividade
tipicamente feminina em total paz – não sendo
obrigada, como Penélope, a usar a tecelagem como
arma contra invasores de seu palácio – e como
Alcínoo, o pai, está envolvida com as funções
políticas de um líder num ambiente de ordem e
harmonia. O que Nausícaa experimenta na Esquéria
é exatamente o inverso do que vive Telêmaco em
Ítaca.
A relação Arete-Alcínoo, naturalmente, é um
modelo para a relação a ser restabelecida entre
Penélope e Odisseu, mas o que parece estar em mais
evidência aqui é a situação de corte, isto é, o fato de
Odisseu, enquanto possível candidato à mão de
Nausícaa, contrapor-se aos pretendentes de
Penélope e já se colocar como ‘pretendente’ justo da
própria esposa. A possibilidade de união com
Nausícaa vem sugerida no primeiro discurso que
Odisseu dirige à jovem. Acordado pelos gritos da
princesa e de suas servas – que jogavam bola depois
de concluída a lavação das roupas -, Odisseu sai de
Acta Scientiarum. Language and Culture
Malta
seu arbusto totalmente nu (a não ser por um tapasexo) e com um aspecto selvagem (versos 127-136).
O erotismo é incontestável, não só por conta da
nudez desse homem, que é como um leão faminto
prestes a atacar fêmeas indefesas, mas em razão ainda
do fato de que elas, banhadas e ungidas com azeite
(verso 96), brincavam sem seus véus, de certa
maneira também estando despidas (verso 100).
Nessas condições, Odisseu opta, inteligente e
respeitosamente, por uma súplica a distância.
Notando a puberdade da jovem, ele elabora um
discurso ‘doce mas proveitoso’ (meilíkhion kaì
kerdaléon, verso 148): primeiro compara a princesa a
Ártemis – deusa pura, virginal –, por conta de seu
porte (versos 150-152), assemelhado a dois
elementos vegetais, um ‘caule’ (verso 157) e um
‘rebento de palmeira’ (verso 163), para depois relatar
suas agruras no mar e pedir acolhida. Na parte
inicial, a beleza da jovem o faz proferir as seguintes
palavras:
Por sua vez é mais bem-aventurado de todos aquele
homem
que com os presentes nupciais te levar para casa.
(Odisseia, VI, 158-159).
Na parte final, por sua vez, Odisseu formula os
seguintes votos, no caso de ser acolhido:
E que a ti os deuses concedam tudo que teu coração
deseja:
um marido e uma casa. Que a ambos deem igual
modo de sentir (homophrosúnen),
essa coisa excelente! Pois nada há de melhor ou mais
valioso
do que quando, sintonizados (homophronéonte) nos
seus pensamentos, numa casa
habitam um homem e uma mulher. Inveja causam
aos inimigos,
e alegria a quem os estima. Acima de tudo, eles
próprios têm fama.
(Odisseia, VI, 180-185).
Esse conjunto de elementos, portanto, trazendo à
tona o motivo da corte – tão central no poema -,
coloca numa perspectiva justa aquilo que é, em Ítaca,
violência e soberba, transgressão de normas e falta de
decoro, antecipadamente justificando, por meio de
um quadro ideal, a vingança de Odisseu – desde o
Canto 6 um ‘pretendente’ modelar – contra os
pretendentes de Penélope.
Uma idealização afim aparece no âmbito
esportivo, que afasta os feácios da guerra e do
conflito letal. Apesar de Esquéria ter os traços típicos
Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017
Os feácios e a transição de Odisseu na Odisseia
de uma cidade grega – o que inclui uma muralha
construída por Nausítoo (Odisseia, VI, 9) –, o
enfrentamento bélico parece não fazer parte da
realidade de seus habitantes, homens avessos à
agressão e que já tinham se afastado da violência dos
Ciclopes (Odisseia, VI, 5-6). Como diz Nausícaa a
Odisseu, ‘aos feácios não interessam os arcos e as
flechas’ (Odisseia, VI, 270), voltados que estão para a
atividade náutica. A demonstração de excelência
desse povo fica restrita àquele outro âmbito,
benéfico e inofensivo, da disputa atlética, o mesmo
que vemos no Canto 23 de Ilíada. De fato, no Canto
8 acompanhamos a disputa de cinco provas: corrida a
pé, luta, salto, lançamento de disco e pugilato.
Primeiramente, os feácios são convocados por
Alcínoo (Odisseia, VIII, 97-103). Um pouco mais
abaixo, num trecho narrativo curto, de apenas 11
versos, os jogos são apresentados (Odisseia, VIII,
120-130). O mais curioso – e que parece contribuir
para a idealização, mesmo no já restrito âmbito da
disputa atlética – é percebermos que, ainda nesse
Canto 8, depois de Odisseu ser arrogantemente
desafiado (e de reagir com um lançamento de disco
espetacular, que supera as marcas anteriores de seus
anfitriões, versos 131-234), Alcínoo afirma que, de
todas as provas, os feácios se destacam apenas na
corrida, não privilegiando nem a luta nem o
pugilato. Na verdade, notamos nesse discurso – em
que o tópico central é a ‘excelência’ areté – que a
corrida vem, por duas vezes, coordenada, de modo
significativo, às atividades da navegação, do canto e
da dança (Odisseia, VIII, 236-253). Portanto, esse
povo não só está livre da guerra, mas também parece
pouco propenso a qualquer atividade física que
represente violência. Ainda que, como vimos, os
feácios pratiquem a luta e o pugilato, é nos âmbitos
pacíficos da corrida, da navegação e do banquete que
eles se sobressaem, numa existência voltada para a
celebração, como o próprio Canto 8 – com a
combinação de cantos, danças e jogos – nos mostra
bem. Podemos dizer, assim, que Homero elabora aí
mais uma vez a visão de uma existência ideal, não
beligerante e convival e que de certa forma vem
sintetizada pelo verbo ‘brincar’ (paízo), empregado
por Alcínoo no final de seu discurso (paísate, verso
251).
Considerações finais
Finalmente, na representação desse povo está
presente ainda uma excelência política com cores
claramente utópicas. Logo de saída, chama-nos a
atenção a figura da rainha Arete, com poderes que
parecem mais indicar uma estrutura matriarcal.
Acta Scientiarum. Language and Culture
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Como sabemos, Nausícaa diz a Odisseu que a
acolhida dele depende da vontade da mãe, a quem o
herói deve se dirigir primeiro ao chegar ao palácio:
[...]
Aí, contra a mesma coluna, está o trono de meu pai,
onde se senta como um imortal a beber seu vinho.
Passa apenas por ele; atira-te antes aos joelhos da
minha mãe,
para os abraçares, para que vejas o dia do teu
regresso,
depressa regozijando-te, apesar de teres vindo de tão
longe.
Se ela te acolher com gentileza no coração,
há esperança de que revejas a família e regresses
à tua casa bem construída e à tua terra pátria.
(Odisseia, VI, 308-315).
No Canto 7, é a vez de Atena, disfarçada, dizer o
seguinte, repetindo, nos três versos finais, as palavras
de Nausícaa:
[...]
Arete. Foi ela que Alcínoo escolheu como esposa;
e honrou-a, como poucas mulheres na terra são
honradas,
todas as que em suas casas estão sob a alçada dos
maridos.
Ela é, e sempre foi, honrada além do que estava
destinado,
pelos queridos filhos, pelo próprio Alcínoo e pelo
povo:
eles contemplam a rainha como se fosse uma deusa,
e como tal a cumprimentam quando atravessa a
cidade.
Pois a ela não falta de modo algum entendimento:
dirime contendas, mesmo entre homens desavindos.
Se ela te acolher com gentileza no coração,
há esperança de que revejas a família e regresses
à tua casa bem construída e à tua terra pátria.
(Odisseia, VII, 66-77).
Essa rainha que ‘atravessa a cidade’ e tem poder
de arbítrio entre os homens não se ajusta à figura
feminina tipicamente grega, mas seria apressado
concluirmos que há, aí, uma estrutura política
diversa. Se atentarmos para essa e outras passagens –
e para o modo como Homero nos apresenta a
acolhida de Odisseu na Esquéria –, veremos que o
Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017
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Malta
poder claramente está nas mãos do rei, Alcínoo: ele
não só ‘escolheu’ Arete como esposa, mas ela está
‘sob sua alçada’ (Saïd, 2011). Durante a recepção ao
forasteiro, é ele que conduz as atividades, podendo,
inclusive, se dirigir assim à mulher:
[...] o transporte [de Odisseu] dirá respeito
A todos, sobretudo a mim; pois meu é o poder nesta
terra!
(Odisseia, XI, 352-353).
Além do mais já ouvimos, anteriormente, o
narrador nos dizer que Nausícaa encontrou o pai a
“[...] sair para a assembleia, onde se reuniria/ com os
reis gloriosos, e para a qual o convocaram os feácios”
(Odisseia, VI, 48-55). Esses reis descobrimos depois
– são 12 e na realidade parecem ser apenas líderes
locais, que devem se submeter ao poder maior de
Alcínoo:
Nesta terra são em número de doze os reis principais
que reinam e dão ordens; eu próprio sou o décimo
terceiro...
(Odisseia, VIII, 390-391).
Essa conformação (como uma liderança ao
mesmo tempo fracionada e unificada sob o comando
de uma figura principal) é, ao que tudo indica, a que
encontramos em Ítaca, onde domina a mão
masculina e o papel da mulher é secundário. Se
assim for, como entender esse quadro, em que a
rainha Arete recebe honras superiores e transita
publicamente, com autoridade? Uma resposta
possível estaria em justamente imaginar que
Homero trabalha aqui, mais uma vez, com a visão
ideal, segundo a qual a esposa deve se equiparar ao
rei, não por vontade própria, mas porque o esposo a
“[...] honra como poucas mulheres são honradas na
terra”. Em outras palavras, o que temos aqui é o
‘igual modo de sentir’ (homophrosúne) de que
Odisseu falou a Nausícaa no Canto 6 (Odisseia, VI,
181-185): por essa harmonia, a consorte acaba por
ser uma espécie de reflexo da virtude política do
homem (Bolmarcich, 2001) – e não podemos
ignorar o fato de que, em grego, o nome Aréte
certamente remetia a audiência à ideia de
‘excelência’, areté6. Nesse sentido, é interessante
notar como, no Canto 19, o mendigo Odisseu
assemelhará a fama adquirida por Penélope àquela
de um rei justo:
Mulher, não há homem mortal em toda a terra
ilimitada
6
Etimologicamente, a associação não é possível, porque o primeiro ‘e’ de Aréte
é longo, e não breve, como em areté. O nome Arete seria da mesma raiz de
aráomai e significaria ‘por quem se fez rogo’ ou ‘a quem se fez rogo’ (em
referência à súplica que lhe dirige Odisseu?).
Acta Scientiarum. Language and Culture
que te pudesse censurar. A tua fama chegou já ao
vasto céu,
à semelhança do rei ilibado que, temente aos deuses,
reina sobre muitos homens valentes
e promulga decisões justas: a terra escura dá
trigo e cevada, as árvores ficam carregadas de fruta
e os rebanhos estão sempre a parir crias; o mar
proporciona muitos peixes
em consequência do bom governo. Sob a sua alçada
o povo prospera.
(Odisseia, XIX, 107-114).
Aqui também Penélope é alçada a uma posição
‘masculina’, de destaque, igualando-se ao próprio
esposo, Odisseu – não por acaso, o herói usa aqui a
expressão ‘a glória alcança o vasto céu’ (kléos ouranòn
eurùn hikánei), a mesma que, com pequenas
modificações, aplicara a si próprio no Canto 9 (kléos
ouranòn híkei, verso 20). E, no Canto 24, a ênfase
dada por Agamenon à excelência, areté, de Penélope
(versos 193 e 197), fará dela uma rival do próprio
marido, o que pode ser entendido como mais um
sinal positivo da ‘sintonia’ entre ambos (Doherty,
1992).
Portanto, a situação política especial dos feácios –
com uma rainha equiparável ao rei e uma
prodigalidade da natureza (vista no pomar de
Alcínoo) a refletir a condução justa da comunidade –
parece ser a concretização daquilo que, no âmbito
‘real’, corresponde a um ideal a ser constantemente
buscado: não um governo feminino, mas sim um
governo masculino que, ao mostrar excelência, cobre
também de honras a rainha, possibilitando que esta
demonstre sua virtude e capacidade de pensamento.
Também aqui os feácios contrastam com os seus
antigos vizinhos, os Ciclopes, e a idealização
antecipa a ordem que deve ser imposta em Ítaca.
Referências
Bolmarcich, S. (2001). Homophrosúne in the Odyssey.
Classical Philology, 96(3), 205-213.
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Odyssey. The American Journal of Philology, 113(2), 161177.
Dougherty, C. (2001). The raft of Odysseus: the ethnographic
imagination of Homer’s Odyssey. Oxford, UK, Oxford
University Press.
Garvie, A. (1994). Homer: Odyssey – Books VI-VIII.
Cambridge, UK: Cambridge University Press.
Hainsworth, B. (1988). A commentary on Homer’s Odyssey. (Vol.
I, Books 1-8). Oxford, UK: The Clarendon Press.
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Paulo, SP: Penguin/Companhia das Letras.
Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017
Os feácios e a transição de Odisseu na Odisseia
Saïd, S. (2011). Homer and the Odyssey. Oxford, UK:
Oxford University Press.
Segal, C. (1994). Singers, Heroes, and Gods in the Odyssey.
Ithaca, US: Cornell University Press.
Woodhouse. W. (1930). The composition of Homer’s Odyssey.
Oxford, UK: The Clarendon Press.
Acta Scientiarum. Language and Culture
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Received on May 23, 2016.
Accepted on November 3, 2016.
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and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.
Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017