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Acta Scientiarum http://www.uem.br/acta ISSN printed: 1983-4675 ISSN on-line: 1983-4683 Doi: 10.4025/ actascilangcult.v39i1.32033 Os feácios e a transição de Odisseu na Odisseia André Malta Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, Rua do Lago, 717, 05508-080, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: andremal@usp.br RESUMO. Uma das maiores unanimidades entre os estudiosos de Homero é a visão a respeito do papel ‘transicional’ desempenhado pelos feácios na Odisseia, povo que parece claramente estabelecer uma ‘ponte’ entre as aventuras pregressas, fantasiosas de Odisseu e seu reingresso na dura realidade de Ítaca. Sua rápida estadia de três dias nessa terra desconhecida oferece ao herói a oportunidade para que rememore as vicissitudes por que passou desde a partida de Troia, fazendo assim com que se estabeleça uma relação narrador-audiência que nos ajuda a entender não apenas as qualidades do protagonista do poema, mas também as desses extraordinários anfitriões que o acolhem. Vou me deter aqui no modo como Homero constrói a caracterização dos feácios como um povo ‘intermediário’, que mescla elementos opostos de modo a mostrar a possibilidade de conexão, concretamente representada pela perícia desses homens em navegar. Palavras-chave: Homero, épica grega, idealização. The Phaeacians and Odysseus’ transition in The Odyssey ABSTRACT. The transitional role played by the Phaeacians in The Odyssey has built into a kind of ‘communis opinio’ among Homeric scholars. Mixing divergent elements, these people seem to set a connection between Odysseus’ previous adventures and his re-entering in Ithaca. His quick 3-day stay in this unknown land gives him the opportunity to recall his sufferings since he left Troy, and manages to build a relationship between narrator and audience that helps us understand not only Odysseus’ character, but also the character of those who entertain him. I will focus on how Homer characterizes the Phaeacians as an ‘intermediate’ people, mixing opposite elements which are epitomized in their ability to sail. Keywords: Homer, Greek epic poetry, idealization. Introdução Talvez uma das maiores unanimidades entre os estudiosos de Homero seja a visão a respeito do papel ‘transicional’ desempenhado pelos feácios na Odisseia (Woodhouse, 1930), povo que parece claramente estabelecer uma ‘ponte’ entre as aventuras pregressas, fantasiosas de Odisseu e seu reingresso na dura realidade de Ítaca. Mais do que isso, sua rápida estadia de três dias nessa terra desconhecida oferece ao herói a oportunidade para que rememore as vicissitudes por que passou desde a partida de Troia, fazendo assim com que se estabeleça uma relação narrador-audiência que nos ajuda a entender não apenas as qualidades do protagonista do poema, mas também as desses extraordinários anfitriões que o acolhem. Vou me deter aqui no modo como Homero constrói a caracterização dos feácios como um povo ‘intermediário’, que mescla elementos opostos de modo a mostrar a possibilidade de conexão e passagem de que tanto necessita Odisseu – possibilidade esta concretamente representada pela perícia desses homens em navegar. É nesses Acta Scientiarum. Language and Culture elementos (disseminados principalmente entre os Cantos 5 e 8) que devemos nos concentrar. A via etimológica, muitas vezes útil, aqui pouco esclarece, porque tanto o nome do lugar, Esquéria (Skheríe), quanto o do povo, feácios (phaiékes), permanecem obscuros. Poderíamos trabalhar com a sugestiva ligação entre phaiékes e o adjetivo phaiós, ‘cinza’, termo que, em grego, como mostra o dicionário Liddell-Scott, indica precisamente a ‘mistura’ do branco e do preto; mas parecemos estar diante apenas de uma associação sonora livre, que prescinde de uma base sólida, capaz de permitir a postulação da hipótese de que essa camada semântica era de fato incorporada ao texto. O mesmo vale para a ligação entre Skheríe e o substantivo skherós, citada por Bryan Hainsworth em seu comentário, onde afirma que, quer aceitemos a ideia de ‘continuidade’ para skherós, quer esposemos a sugestão de Hesíquio em seu léxico, de que o termo é sinônimo de akté, ‘costa’, ‘promontório’, ainda assim tais conexões seriam dúbias, por mais tentador que seja pensarmos que espelhariam a Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017 2 função transicional desses homens (Hainsworth, 1988). Mais interessante, e com suporte mais evidente no interior do poema, é a indeterminação sobre ser ou não a Esquéria uma ilha. Ao contrário do que acontece com Ogígia, claramente referida como nésos (três vezes na Odisseia, I, 50, 85 e 198), a terra dos feácios nunca é assim definida (Homero usa apenas gaîa), embora certos elementos – como a fala de Nausícaa no Canto 6, “Longe habitamos, remotos, no mar repleto de ondas [...]” (Odisseia, VI, 204) – pareçam querer remeter a um isolamento do tipo. A tradicional identificação com a ilha de Corcira, atual Corfu (Garvie, 1994), junto com responder a um desejo já antigo de mapear as andanças de Odisseu, mostra-nos, curiosamente, como o silêncio do texto não era empecilho para uma convicção de que a terra dos feácios era insular. Enquanto ilha, a Esquéria surge como um elo perfeito entre a ilha de Calipso e a ilha de Ítaca; por outro lado, enquanto terra continental, ela igualmente parece representar uma firmeza e solidez, uma mitigação do isolamento, uma possibilidade maior de contato, que se ajusta igualmente ao momento de transição vivido pelo herói. Neste artigo, abordaremos, primeiro, essa condição ‘fronteiriça’, de cruzamento entre dois mundos, encarnada pelos feácios, para, depois, restringindo-nos ao polo positivo dessa condição, explorar os elementos de ‘idealização’ desse povo, que têm reflexos sobre a moral geral do poema. Malta do que denomina de ‘justaposição dos feácios e Calipso’ na narrativa, ele diz: Os feácios, com sua existência ativa, ágil, de marinheiros, são o oposto da inatividade forçada em Ogígia e da falta de meios de transporte que Calipso alega para Hermes (Odisseia, V, 141-142). [...] A solidão e o isolamento de Ogígia também contrastam com o gosto dos feácios pela vida coletiva, em sociedade [...]. A Esquéria representa assim um ponto essencial na passagem da completa suspensão em Ogígia em direção ao completo envolvimento em Ítaca (Segal, 1994, p. 16-17, tradução nossa)1. Quanto à relação entre os feácios e os Ciclopes, ela é, como sabemos, abordada pelo próprio narrador da Odisseia. No Canto 6, ficamos sabendo que o povo, que é a própria antítese da selvageria ciclópica, outrora viveu ‘perto’ dela: [...] Mas Atena foi à cidade populosa dos feácios, que antes tinham habitado na espaçosa Hipereia, perto dos Ciclopes, homens de terrível insolência, que continuamente os pilhavam por serem mais fortes. Foi de lá que os trouxe o divino Nausítoo e os estabeleceu em Esquéria, longe dos homens que comem pão. Em torno da cidade construíra um muro; edificara casas, Fronteira náutica Quem melhor explorou a ‘função transicional’ dos feácios, que fazem a ponte entre dois mundos, foi Charles Segal, no ensaio ‘Os feácios e o retorno de Odisseu’, apresentado em duas partes no livro Cantores, heróis e deuses na Odisseia (Segal, 1994). O enfoque de Segal privilegia o aspecto psicológico e concentra-se na simbologia do renascimento. Para o estudioso norte-americano, o fato de Odisseu chegar nu à Esquéria indicaria sua volta à vida depois de sua quase morte em Ogígia, motivo que seria retomado no Canto 22, quando ele “[...] despiu os farrapos[...]” (gumnóthe rhakéon, Odisseia, XXII, 1) para dar início ao ataque contra os pretendentes. De fato, no poema a ideia de salvação da morte – ou de um novo acesso à vida – vem bem destacada na despedida entre o herói e Nausícaa, a jovem que o vestiu em sua chegada (Odisseia, VI, 457-468). Além desse binômio morte/vida, Segal explora os pares secundários atividade/inatividade e sociabilidade/isolamento, no contraste dos feácios com as duas figuras principais das aventuras de Odisseu, Calipso e o Ciclope. Sobre a importância Acta Scientiarum. Language and Culture templos dos deuses e procedera à divisão das terras. Mas agora, vencido pelo destino, estava já no Hades; o rei era Alcínoo, cujos conselhos igualavam os dos deuses. (Odisseia, VI, 2-12)2. De certa maneira, esse movimento de ‘transposição’ – de um ambiente bruto em direção a um comedido – experimentado pelos feácios parece reproduzir aquele agora vivido por Odisseu, habilitando-os, assim, a se encarregarem da ‘reinserção’ do herói no mundo civilizado (ainda que esse mundo esteja sujeito à mesma insolência, como vemos pelos pretendentes). Do mesmo modo, o contato dos feácios tanto com o âmbito divino quanto com o mortal os coloca mais uma vez na borda entre dois mundos. Como 1 […] The Phaeacians, with their activity, agility, and seamanship, are antithetical to the inactivity enforced on Ogygia ant to the lack of means of transportation that Calypso alleges to Hermes (5.141-42). […] The loneliness and isolation of Ogygia also contrast with the Phaeacians’ fondness for society and collectivity. […] Scheria thus forms an essential stepping-stone from the complete suspension of Ogygia to the complete involvement of Ithaca. 2 Citamos sempre a tradução de Frederico Lourenço (2011). Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017 Os feácios e a transição de Odisseu na Odisseia 3 afirma Zeus a Hermes no Canto 5, eles ‘são parentes dos deuses’ (agkhí theoì gegáasin, Odisseia, V, 35 = Odisseia, XIX, 279), e, segundo Nausícaa, ‘pelos deuses imortais especialmente estimados’ (Odisseia, VI, 203). Ainda assim, não têm a condição divina de Circe ou Calipso e ficam sujeitos à cólera de Posídon. Posídon, não por acaso, é uma divindade fundamental para entendermos o papel dos feácios. Segundo afirma Atena no Canto 7, o deus é avô de Alcínoo (Odisseia, VII, 56-66). Esse parentesco com os deuses, que inclui também uma relação com figuras excessivas, é afirmado pelo próprio Alcínoo, quando se indaga sobre quem seria o forasteiro recém-chegado: Porém se ele for um dos imortais, descido do céu, outra coisa doravante estarão os deuses a planear: é que antes sempre se nos revelaram de forma clara, quando oferecíamos as gloriosas hecatombes; e eles, conosco sentados, banquete. conosco participavam do E se algum de nós, caminhando só pela estrada, encontrar um dos deuses, eles não se ocultam, visto que são parentes nossos, como são os Ciclopes e os selvagens Gigantes. (Odisseia, VII, 199-206). A maneira como Odisseu é recebido revela de maneira muito clara essa tensão característica do povo. Por um lado, temos uma hospitalidade irretocável, que a jovem Nausícaa, a primeira a ter contato com o herói, demonstra possuir de modo inequívoco. Já no palácio de Alcínoo, é a vez de o ancião Equeneu dar as seguintes orientações ao rei Alcínoo: Levanta dali o estrangeiro e senta-o num trono decorado com prata, e ordena aos escudeiros que misturem o vinho, para que a Zeus que lança o trovão ofereçamos libações: pois é ele que segue no encalço dos venerandos suplicantes. E que a governanta lhe dê uma ceia do que houver lá dentro. (Odisseia, VII, 162-165). Por outro lado, essa intrigante hesitação de Alcínoo – que o leva a precisar de orientações sobre como agir naquela situação – vem se juntar a uma falta de sociabilidade, a um isolamento (a cidade é Acta Scientiarum. Language and Culture cercada por muralhas; Odisseia, VI, 262-263), que parecem pôr em dúvida essa hospitalidade aparentemente irrestrita. Nesse sentido, sabemos pelo que diz Nausícaa (como vimos), que os feácios vivem ‘remotos’ e não têm ‘associação’ com outros povos (Odisseia, VI, 204-205). Mais do que isso, a jovem diz com todas as letras que há homens ‘presunçosos’ (huperphíaloi, Odisseia, VI, 274) em Esquéria, numa qualificação que é idêntica à empregada para o Ciclope (Odisseia, IX, 106) e para os pretendentes (em Odisseia, I, 134 e 227, entre outras ocorrências). O passo não é isolado nem se liga simplesmente a um possível ‘ciúme’ dos jovens locais em relação ao forasteiro: Atena, disfarçada, também reafirma para o herói esse lado não amistoso dos feácios, quando comenta que não são muito receptivos com estrangeiros, não tratando bem nem dando boas-vindas a quem vem de outra terra (Odisseia, VII, 31-33). Poderíamos supor que temos aí apenas um movimento da deusa no intuito de aguçar a atenção e a desconfiança já características do herói, mas o fato é que a sequência da narrativa comprova que não se pode descartar o desrespeito da parte dos feácios. Na passagem dos jogos, como sabemos, Euríalo trata de maneira indevida Odisseu ao desconfiar da capacidade atlética deste (Odisseia, VIII, 158-185) e acaba sendo comparado pelo herói a um ‘desvairado’ (atastháloi andrí, verso 166). No final, o jovem busca a reconciliação (Odisseia, VIII, 396-416), sem, contudo, desfazer a impressão de que a hospitalidade irrestrita guarda dentro de si um lado sombrio e perturbador. Portanto, estamos diante do que Suzanne Saïd denominou de ‘terra de contrastes’ – ilha e continente, com origem divina e destino mortal, hospitaleira e com uma agressividade latente, isolada e dada à sociabilidade. A uma imagem inicialmente unívoca vêm se juntar, marginalmente, ‘notas discordantes’, nos dizeres novamente da helenista francesa. Para Saïd, em Esquéria, [...] o aspecto selvagem vive lado a lado com a civilização em seu mais alto grau. Essa dualidade fica aparente desde a chegada de Odisseu. A ilha é coberta por um denso bosque e a princípio oferece apenas um abrigo natural (Odisseia, V, 478-480), apropriado mais para um animal do que para um homem (não por acaso a mesma fórmula é usada no Canto 19 (versos 440-442), para descrever o esconderijo do javali ferido pelo jovem Odisseu), e um simples leito de folhas. Mas ela também tem, crescendo junto a uma oliveira selvagem, uma árvore enxertada e cultivada, como aquelas que crescem em Ítaca, bem como ‘campos cultivados’ e uma cidade de fato, com ‘longas, altas paliçadas’ (Odisseia, VII, Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017 4 Malta 44-45), e uma ágora [...] (Saïd, 2011, p. 179-180, tradução nossa)3. Esses contrastes, como dissemos, podem ser um recurso feliz no poema para sintetizar a função transicional dos feácios: guardando elementos das duas ‘pontas’ da viagem de Odisseu, eles podem conectar à sua realidade o homem oriundo da fantasia. Concretamente, é a capacidade náutica desse povo a chave para que essa passagem se dê. Como acontece com frequência no poema, a transparência dos nomes é explorada aqui de modo eloquente. Alcínoo, Rexenor e Arete não têm denominações associadas à atividade marítima, mas Nausícaa (Nausikáa) retoma o avô Nausítoo (Nausíthoos, ‘Nau-ligeira’), e já vimos acima a intervenção do velho e sábio Equeneu (Ekhéneos, ‘Detém-nau’). O passo fundamental, no entanto, é o catálogo do Canto 8 (versos 111119), quando somos apresentados a vários feácios; as traduções apenas vernaculizam os nomes gregos, tirando-lhes a transparência original. É curioso notar como essa perícia é revestida ora de um aspecto mágico, ora realista, como se houvesse aí também uma junção de opostos. Quando Nausícaa descreve a pólis feácia e o caráter navegador do povo – informação que Odisseu certamente ouve com alegria –, a ênfase recai sobre o ‘trabalho’ com as naus, que proporcionam o prazer da travessia (Odisseia, VI, 263-272). No Canto 7, Atena diz a Odisseu que se trata de um povo que “[...] confia apenas nas suas rápidas naus velozes[...]”, as quais “[...] são rápidas como uma flecha ou um pensamento[...]” (versos 34-36), o que parece conferir a elas um caráter sobrenatural, ainda que a mesma Atena sublinhe o conhecimento prático, ao afirmar que os “[…] feácios são os mais sabedores de todos os homens/ sobre como navegar[...]” (108-109). Mais adiante, ainda no Canto 7, é a vez de Alcínoo destacar a condição incomum do transporte marítimo praticado por seu povo (numa passagem em que o afastamento da Esquéria do mundo conhecido fica novamente indicado; Odisseia, VII, 319-328). O trecho parece apontar para uma combinação – livre de contradição – entre a ação dos marinheiros (que percutem o mar com remos) e um movimento sem esforço ou cansaço (áter kamátoi). Ou seja, ao trabalho dos 3 […] wildness exists side by side with the highest degree of civilization. This duality becomes apparent from the moment when Odysseus arrives. The island is covered in dense woodland and at first only affords him a natural shelter (5.478.80), more fitting for a beast than for a man (it is no accident that the same formulae are used at 19.440-2 to describe the lair of the boar that wounded the young Odysseus), and a simple bed of leaves. But it also has, growing alongside a wild olive tree, a grafted, cultivated tree, just like those that are grown in Ithaca, as well as ‘cultivated fields’ (7.44-5) and a true city with ‘long, high palisaded walls’ (7.44-5) and an assembly-place […]. Acta Scientiarum. Language and Culture feácios com suas naus vem se juntar uma facilidade típica do âmbito divino. A passagem mais explícita sobre o modo sobrenatural como operam as naus fica reservada, no entanto, para o trecho final desse Canto 8: E diz-me qual é tua terra, qual é a tua cidade, para que até lá as nossas naus te transportem, discernindo o percurso por si sós (tituskómenai phresí). É que os feácios não têm timoneiros, nem têm lemes, como é hábito entre as naus dos outros; mas as próprias naus compreendem (ísasi) os pensamentos e os espíritos dos homens, e conhecem (ísasi) as cidades e férteis campos de todos, atravessando ocultadas o abismo do mar rapidamente, por nuvens e nevoeiro (kekalumménai). Nunca receiam que algo de mal lhes aconteça, nem nunca têm medo de se perder. (Odisseia, VIII, 555-563). Por aí vemos que se, por um lado, as naus são objeto do empenho e da dedicação dos feácios, os quais, quando no mar, atuam como seus remeiros, por outro elas prescindem dos condutores e lemes típicos das embarcações ‘mortais’, atravessando o mar por meio de uma espécie de ‘piloto automático’. Reparemos como o aspecto divino delas fica destacado por meio da repetição da ideia de um saber total (verbo ísasi, ‘conhecem’, nos versos 559 e 560); da informação sobre o ‘encobrimento, que as separa, pela invisibilidade, do mundo comum, como se existissem em outro plano (como as Musas ‘envoltas por muita névoa’ na Teogonia, ou o próprio Odisseu ‘enevoado’ por Atena); e da ausência de medo e de risco de dano. Em outras palavras, as naus ganham aí uma autonomia notável, em que, com o ato esperado de cruzar, ligeiras, o mar, são inesperadamente personificadas, sendo capazes de ‘saber’ e ‘(não) recear’. Assim se combinam, portanto, mesmo na atividade da passagem, características contrastantes: o símbolo máximo do ‘cruzamento’ – a atividade da navegação – reúne em si elementos mesclados, o divino e o humano, a facilidade e o trabalho. A tensão fica ainda mais forte se considerarmos que esses feácios, um pouco ‘mágicos’, podiam ser associados aos fenícios pela audiência homérica, o que ajudaria a contrabalançar irrealidade com Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017 Os feácios e a transição de Odisseu na Odisseia realidade, imaginário livre e ancoragem no mundo concreto. Quem explorou de modo interessante essa associação foi Carol Dougherty, em seu livro A jangada de Odisseu, de 2001. Segundo essa estudiosa, os feácios desempenham o papel de porta de acesso à imaginação etnográfica do mundo da Odisseia, sendo apresentados numa chave positiva e idealizada que os opõe, dentro de um mesmo universo de ‘troca’, aos gananciosos fenícios (trôktai, Odisseia, XIV, 289, e XV, 416). Em apoio a essa conexão, Dougherty invoca pelo menos quatro dados alusivos do texto: a similaridade entre a topografia de Esquéria e a da cidade fenícia de Tiro, assinalada já pelos comentadores (Dougherty, 2001); o fato de Leucótea, filha do fenício Cadmo, vir em auxílio de Odisseu no Canto 5 (versos 333 e 334); a menção feita pelo herói ao ‘novo rebento de uma palmeira’ (phoínokos érnos) no momento em que saúda Nausícaa (Odisseia, VI, 163), com o termo para ‘palmeira’ remetendo no original, pela sonoridade, a ‘fenício’; e, finalmente, o uso de um mesmo epíteto, ‘célebres pelas suas naus’, nausíklitoi, tanto para fenícios quanto para feácios – e apenas para eles – na Odisseia (aplicado aos primeiros em Odisseia, VII, 39, e aos segundos em Odisseia, XV 415). A partir disso, ela conclui: [...] o texto da Odisseia apresenta dois povos, os fenícios e os feácios, ambos afamados por seus navios e por sua habilidade náutica, e então os situa em polos opostos do espectro da troca [...]. Numa ponta está o modelo da contínua reciprocidade, corporificada pelo sistema de troca de dádivas; no outro extremo, roubo ou pirataria representam a completa falta de troca em todos os sentidos (Dougherty, 2001, p. 115)4. De acordo com Dougherty, é possível levar essa dualidade para a própria figura de Odisseu: [...] como um mercador fenício, Odisseu viaja pelo mar, pratica o engano e traz para casa uma grande quantidade de bens valiosos. Ao mesmo tempo, porém, Odisseu tem muito em comum com os fictícios feácios e, como eles, claramente conhece as regras de hospitalidade (Dougherty, 2001, p. 117)5. Qualquer que seja a interpretação adotada a respeito da ligação entre feácios e fenícios, é certo que essa possível conexão traz mais um nível de duplicidade 4 […] the text of the Odyssey presents two peoples, the Phoenicians and the Phaeacians, both famed for their ships and nautical skill, and then locates them at opposite ends of the exchange spectrum […]. At one end of the spectrum is the model of ongoing reciprocity embodied in the system of gift exchange; at the other extreme, outright theft or piracy represents the complete absence of exchange in any sense. 5 […] like a Phoenician trader, Odysseus travels by sea, practices deception, and brings home a great deal of valuable goods. At the same time, however, Odysseus has much in common with the fictional Phaeacians. Like them, he clearly knows the rules of hospitality. Acta Scientiarum. Language and Culture 5 aos transportadores de Odisseu, ao mesmo tempo ligando-os e separando-os da realidade. É interessante notar, desenvolvendo essa conexão de Odisseu com os feácios tanto pelo lado justo quanto pelo lado ‘fenício’, como o povo da Esquéria, em sua condição fronteiriça e híbrida, acaba sendo o alvo típico da cólera divina, por praticar ‘em excesso’ sua habilidade. Em certo sentido, a Odisseia nos mostra como sua hospitalidade pode ser perigosa, caso extrapole os limites, o que não só retoma uma questão central no comportamento do próprio Odisseu, como a apresenta num sentido invertido: os feácios, ao transportarem Odisseu, contribuem para o fim da cólera de Posídon contra o herói, ao mesmo tempo em que, com isso, estabelecem a ira do deus contra si próprios. Com efeito, não podemos concluir a discussão sobre a capacidade feácia de transporte náutico sem abordar esse motivo da cólera. Como já vimos, há um parentesco entre esse povo e Posídon – genealogia que em certo sentido explica o poder que aquele tem da travessia. Em termos concretos, os feácios cultuam o deus, recebendo em troca seu favor no mar. Essa relação de reciprocidade vem indicada no poema no momento em que somos informados de que o templo dessa divindade se destaca na paisagem da cidade (Odisseia, VI, 266) e de que esses marinheiros só conseguem passar pelo ‘abismo do mar por graça do Sacudidor da Terra’ (Odisseia, VII, 35). É exatamente por conta dessa relação típica entre mortal e imortal que paira sobre os feácios a ameaça de um eventual descontentamento divino, na realidade, ele faz parte de uma predição antiga, relatada por Alcínoo a Odisseu no Canto 8 (Odisseia, VIII, 564-571). É possível afirmar, pelas palavras do rei, que o agastamento divino se explica por um comportamento ‘imortal’ dos feácios na função de transportadores: essa condução não só é total, ‘de todos’, irrestrita e ilimitada, como também é ‘indene’, sem dano, sem sofrimento, fazendo assim de certo modo pender a balança da existência desse povo para o âmbito sobre-humano, como se eles não estivessem sujeitos às vicissitudes da vida finita. É bom lembrar que esse trecho vem logo a seguir ao comentário de Alcínoo (citado acima) sobre o caráter mágico e timorato das suas naus: ele mesmo tem consciência, portanto, de que sobre essa ‘facilidade’ deve necessariamente se associar um descontentamento, para o qual a profecia aponta. Há, naturalmente, uma ironia no fato de que o dia indeterminado (poté, Odisseia, VIII, 567) para o cumprimento da predição chegou – e de que a predição é comunicada a quem é responsável por levá-la a cabo, Odisseu. Mais do que isso, no Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017 6 Malta entanto, importa destacar que esse esquema predição-cumprimento se liga a um padrão no poema, figurando de diferentes maneiras ao longo da narrativa – na volta de Odisseu e no seu destino pósOdisseia; na morte de seus companheiros; no cegamento do Ciclope; na morte dos pretendentes – e que, assim, o ‘vidente’ Nausítoo vem se juntar a Haliterses, Têlemo, Tirésias e Teoclímeno. Como elemento comum, temos a presença de uma inevitabilidade conjugada, paradoxalmente, à possibilidade de antecipação dos fatos – num desenho cujos efeitos trágicos, tão evidentes na Ilíada, talvez se apliquem, em Odisseia, apenas aos pretendentes. No caso específico dos feácios, podemos ver com clareza como opera a cólera divina no diálogo entre Zeus e Posídon do Canto 13, quando o Treme-terra vê que Odisseu foi transportado com sucesso até Ítaca. O deus imediatamente reage: o fato de o herói retornar para casa com mais dádivas do que teria obtido, caso tivesse vindo diretamente de Troia, incólume, faz Posídon sentir-se desonrado pelos que são da sua ‘linhagem’ (genéthles), o que põe em risco sua própria honra entre as divindades (Odisseia, XIII, 128-138). Zeus responde que não há risco de desonra, entre os imortais, para quem é ‘o mais velho e o melhor’ (presbútaton kaì áriston), e que contra os homens que agem com violência há sempre a possibilidade de vingança (tísis), conforme ele, Posídon, desejar (versos 140-145). O Tremeterra comunica então sua vontade: estilhaçar a nau, para que os feácios desistam do transporte, e cercar a cidade com uma montanha (versos 147-152). Zeus concorda com a segunda medida, mas sugere que, em vez da destruição, a embarcação seja transformada em pedra, num prodígio à vista de todos (versos 154-158), solução mais inteligente, porque faz a agilidade e rapidez serem vingadas com o estabelecimento da condição inversa, a imobilidade... A partir desse ponto, lemos, então, o seguinte: Quando ouviu estas palavras Posídon que abala a terra, foi para a Esquéria, onde habitam os feácios, e aí esperou. Aproximou-se a nau preparada para o alto mar, navegando rapidamente; e dela se aproximou o deus que abala a terra e transformou-as em pedra, enraizando-a no fundo do mar com um golpe da mão; e de seguida partiu. Acta Scientiarum. Language and Culture Entre eles proferiram palavras apetrechadas de asas os feácios de longos remos, famosos pelas suas naus. E assim falava um, olhando de soslaio para outro: Ai de mim, quem estancou no ar a nau veloz quando regressava para casa? Estava à vista de todos! Assim falava alguém, sem saber como tudo se cumpria. Mas Alcínoo, tomando a palavra, falou no meio deles: Ah, na verdade vêm ao meu encontro os oráculos há muito proferidos pelo meu pai, que afirmava que Posídon se agastara conosco, ao sermos indenes transportadores de todos: disse que um dia à nau bem-feita dos varões feácios, após voltar de um transporte pelo mar enevoado, destruiria, e com grande monte a pólis cercaria. Assim proferia o velho. E agora tudo se cumpre. Mas agora àquilo que eu disser obedeçamos todos. Cessai o transporte de mortais, quando à nossa cidade vier ter alguém; e a Posídon sacrificaremos doze touros escolhidos, para que de nós se digne apiedar-se e a cidade não nos rodeie com uma grande montanha. Assim falou; eles sentiram medo (édeisan) e prepararam os touros. Fizeram suas preces a Posídon soberano os príncipes e conselheiros do povo dos feácios, em pé em torno do altar. Acordou então o divino Odisseu... (Odisseia, XIII, 159-187). Em toda a cena, vemos a combinação dos dois motivos fundamentais para a vingança divina – excesso e honra -, os mesmos que reaparecem nas cóleras de Posídon contra Odisseu e do Sol contra seus companheiros (na cronologia linear, eventos já acontecidos, mas ainda por narrar na disposição enviesada da Odisseia). Diante das similaridades, portanto, podemos afirmar, seguindo Charles Segal (Segal, 1994), que Odisseu deixou sua marca – a inevitabilidade do sofrimento – com os feácios, agora forçados a compartilhar da sofrida condição mortal, e que a última visão que temos deles, no mesmo verso em que Odisseu acorda em Ítaca (Odisseia, Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017 Os feácios e a transição de Odisseu na Odisseia XIII, 187), é de incerteza. De fato, o povo cujas naus navegavam sem receio agora sente medo e se apoia na esperança – ao que tudo indica, vã – de que a profecia (a cidade ser rodeada por um monte) não se cumpra. Essa ‘marca’, por sua vez, permite não apenas que entendamos os feácios à luz do contato com Odisseu, mas também Odisseu à luz do contato com os feácios: ou seja, esse povo é ‘contaminado’ pela presença do herói, mas o que se passa com este é igualmente iluminado pelo destino dos habitantes da Esquéria. Ao mesmo tempo, a despeito de a ruína de que são vítimas ajudar a romper qualquer conexão que ainda persistia deles com um âmbito fantasioso livre de problemas – uma vez que são apresentados de modo muito humano na relação com o divino, sendo alvos da cólera de Posídon e precisando apaziguá-la –, não nos parece que essa conexão fique totalmente desfeita por esse desfecho. Pelo contrário: o fato de Odisseu ser o último a ser transportado por esse povo parece lançar de vez os feácios num passado mágico e inacessível, com o qual ninguém mais, dentre os mortais, terá contato. Casamento, esporte, política Se é certo que, vista em seus detalhes, a representação dos feácios está caracterizada por uma natureza ‘transicional’, não é menos certo que a ‘impressão’ geral que fica desse povo é a de uma idealização: no fim das contas, é a pintura positiva que sobressai. Nenhuma outra passagem indica isso melhor do que a descrição, no Canto 7, do pomar de Alcínoo, cenário saído de uma verdadeira Idade de Ouro. Essa descrição surge no momento em que Odisseu, envolto por uma névoa, adentra o palácio do rei: depois de se maravilhar com as paredes de bronze, as portas de ouro e as colunas de prata, entre outras características sobre-humanas (versos 82111), o herói se depara com o seguinte quadro: Fora do pátio, começando junto às portas, estendiase o enorme pomar, como uma sebe de cada um dos lados. Nele crescem altas árvores, muito frondosas, pereiras, romãzeiras e macieiras de frutos brilhantes; figueiras de figos doces e viçosas oliveiras. Destas árvores não murcha o fruto, nem deixa de crescer no inverno nem no verão, mas dura todo o ano. Continuamente o Zéfiro faz crescer uns, amadurecendo outros. Acta Scientiarum. Language and Culture 7 A pera madurece sobre outra pera; a maçã sobre outra maçã; cacho de uvas sobre outro cacho; figo sobre figo. Aí está também enraizada a vinha com muitas videiras: parte dela é em local plano de temperatura amena, seco pelo sol; na outra, homens apanham uvas. Outras uvas são pisadas. À frente estão uvas verdes que deixam cair a sua flor; outras se tornam escuras. Junto à última fila da vinha crescem canteiros de flores de toda a espécie, em maravilhosa abundância. Há duas nascentes de água: uma espalha-se por todo o jardim; do outro lado, a outra flui sob o limiar do pátio em direção ao alto palácio: dela tirava o povo a sua água. Tais eram os belos dons dos deuses na casa de Alcínoo. Ali, de pé, se maravilhou o sofredor e divino Odisseu. (Odisseia, VII, 112-133). Essa produção contínua (mál’ aieí, verso 118), que se estende por todo o ano (epetésios, verso 118, e epeetanón, verso 128), talvez explique o nome do lugar, Skheríe – conforme uma das hipóteses citadas acima –, e o uso excepcional na épica, num trecho narrativo, do tempo presente (versos 103-131), contribui para dar vivacidade à descrição, como se víssemos tudo pelos olhos maravilhados de Odisseu. O trecho nos lembra a descrição da Idade de Ouro, que encontramos nos Trabalhos e dias, de Hesíodo (versos 109-119). A associação não é completa, porque, em Hesíodo, o homem dessa idade está aparentemente livre do trabalho – verdadeiro sinal, em seu poema, de uma ‘queda’ do paraíso. Já nesse canto da Odisseia, apesar de estarmos diante de ‘dons dos deuses’, de uma terra verdadeiramente pródiga, em que a ‘perenidade’ é marca de uma condição sobre-humana – os frutos são imperecíveis, não murcham –, ainda assim há indicações de labuta, com as uvas sendo apanhadas e pisadas (versos 124125). A videira ‘em local plano’ (verso 123), com a fonte que flui ‘em direção ao palácio’ (verso 131), também ajuda a sugerir a ideia de um planejamento humano, que desfaz a impressão de uma espontaneidade absoluta. É como se fosse retomado aqui o mesmo padrão que encontramos em relação à atividade náutica: o elemento mágico não anula a Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017 8 necessidade de aplicação e empenho. Mesmo assim o quadro é de um lugar ideal: o cultivo da uva e da oliveira nos mostra que estamos perante uma sociedade tipicamente grega, mas levada a uma condição sublime, maravilhosa, utópica. Três âmbitos ‘idílicos’ dos feácios são particularmente importantes para o plano geral da Odisseia: o casamento, a disputa atlética e a condução política. Eles pintam uma situação de paz e prosperidade que de certo modo antecipa o que Odisseu deverá estabelecer em Ítaca em sua volta, numa sociedade que está perturbada pela corte indevida, pelo espírito belicoso e pela acefalia. O tópico da união matrimonial é explorado na relação do herói com a jovem filha do rei, Nausícaa, figura que Homero elabora com extrema delicadeza. Quando aparece pela primeira vez, no Canto 6, somos informados de que ela ‘na forma e na beleza igualava as deusas’ (verso 16) e de que seu casamento estava ‘próximo’ (verso 27): não permaneceria ‘virgem por muito tempo’, já sendo cortejada por ‘pretendentes os mais nobres’ (versos 33-34). O fato de a jovem surgir sonhando com os preparativos do casamento – estratégia de Atena para que, ao ir lavar o enxoval, encontre Odisseu – já nos transmite algo de um impulso erótico que perpassará, com inigualável sutileza, todo o episódio. Ao mesmo tempo, a descrição que se segue ao momento em que acorda traça indiretamente um contraponto entre essa adolescente e Telêmaco, ambos prestes a ingressar no mundo adulto – mas o dela, ao contrário do que acontece com o filho de Odisseu, livre de problemas (Odisseia, VI, 48-55). Em poucas linhas Homero é capaz de nos indicar como a mãe, Arete, desempenha a atividade tipicamente feminina em total paz – não sendo obrigada, como Penélope, a usar a tecelagem como arma contra invasores de seu palácio – e como Alcínoo, o pai, está envolvida com as funções políticas de um líder num ambiente de ordem e harmonia. O que Nausícaa experimenta na Esquéria é exatamente o inverso do que vive Telêmaco em Ítaca. A relação Arete-Alcínoo, naturalmente, é um modelo para a relação a ser restabelecida entre Penélope e Odisseu, mas o que parece estar em mais evidência aqui é a situação de corte, isto é, o fato de Odisseu, enquanto possível candidato à mão de Nausícaa, contrapor-se aos pretendentes de Penélope e já se colocar como ‘pretendente’ justo da própria esposa. A possibilidade de união com Nausícaa vem sugerida no primeiro discurso que Odisseu dirige à jovem. Acordado pelos gritos da princesa e de suas servas – que jogavam bola depois de concluída a lavação das roupas -, Odisseu sai de Acta Scientiarum. Language and Culture Malta seu arbusto totalmente nu (a não ser por um tapasexo) e com um aspecto selvagem (versos 127-136). O erotismo é incontestável, não só por conta da nudez desse homem, que é como um leão faminto prestes a atacar fêmeas indefesas, mas em razão ainda do fato de que elas, banhadas e ungidas com azeite (verso 96), brincavam sem seus véus, de certa maneira também estando despidas (verso 100). Nessas condições, Odisseu opta, inteligente e respeitosamente, por uma súplica a distância. Notando a puberdade da jovem, ele elabora um discurso ‘doce mas proveitoso’ (meilíkhion kaì kerdaléon, verso 148): primeiro compara a princesa a Ártemis – deusa pura, virginal –, por conta de seu porte (versos 150-152), assemelhado a dois elementos vegetais, um ‘caule’ (verso 157) e um ‘rebento de palmeira’ (verso 163), para depois relatar suas agruras no mar e pedir acolhida. Na parte inicial, a beleza da jovem o faz proferir as seguintes palavras: Por sua vez é mais bem-aventurado de todos aquele homem que com os presentes nupciais te levar para casa. (Odisseia, VI, 158-159). Na parte final, por sua vez, Odisseu formula os seguintes votos, no caso de ser acolhido: E que a ti os deuses concedam tudo que teu coração deseja: um marido e uma casa. Que a ambos deem igual modo de sentir (homophrosúnen), essa coisa excelente! Pois nada há de melhor ou mais valioso do que quando, sintonizados (homophronéonte) nos seus pensamentos, numa casa habitam um homem e uma mulher. Inveja causam aos inimigos, e alegria a quem os estima. Acima de tudo, eles próprios têm fama. (Odisseia, VI, 180-185). Esse conjunto de elementos, portanto, trazendo à tona o motivo da corte – tão central no poema -, coloca numa perspectiva justa aquilo que é, em Ítaca, violência e soberba, transgressão de normas e falta de decoro, antecipadamente justificando, por meio de um quadro ideal, a vingança de Odisseu – desde o Canto 6 um ‘pretendente’ modelar – contra os pretendentes de Penélope. Uma idealização afim aparece no âmbito esportivo, que afasta os feácios da guerra e do conflito letal. Apesar de Esquéria ter os traços típicos Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017 Os feácios e a transição de Odisseu na Odisseia de uma cidade grega – o que inclui uma muralha construída por Nausítoo (Odisseia, VI, 9) –, o enfrentamento bélico parece não fazer parte da realidade de seus habitantes, homens avessos à agressão e que já tinham se afastado da violência dos Ciclopes (Odisseia, VI, 5-6). Como diz Nausícaa a Odisseu, ‘aos feácios não interessam os arcos e as flechas’ (Odisseia, VI, 270), voltados que estão para a atividade náutica. A demonstração de excelência desse povo fica restrita àquele outro âmbito, benéfico e inofensivo, da disputa atlética, o mesmo que vemos no Canto 23 de Ilíada. De fato, no Canto 8 acompanhamos a disputa de cinco provas: corrida a pé, luta, salto, lançamento de disco e pugilato. Primeiramente, os feácios são convocados por Alcínoo (Odisseia, VIII, 97-103). Um pouco mais abaixo, num trecho narrativo curto, de apenas 11 versos, os jogos são apresentados (Odisseia, VIII, 120-130). O mais curioso – e que parece contribuir para a idealização, mesmo no já restrito âmbito da disputa atlética – é percebermos que, ainda nesse Canto 8, depois de Odisseu ser arrogantemente desafiado (e de reagir com um lançamento de disco espetacular, que supera as marcas anteriores de seus anfitriões, versos 131-234), Alcínoo afirma que, de todas as provas, os feácios se destacam apenas na corrida, não privilegiando nem a luta nem o pugilato. Na verdade, notamos nesse discurso – em que o tópico central é a ‘excelência’ areté – que a corrida vem, por duas vezes, coordenada, de modo significativo, às atividades da navegação, do canto e da dança (Odisseia, VIII, 236-253). Portanto, esse povo não só está livre da guerra, mas também parece pouco propenso a qualquer atividade física que represente violência. Ainda que, como vimos, os feácios pratiquem a luta e o pugilato, é nos âmbitos pacíficos da corrida, da navegação e do banquete que eles se sobressaem, numa existência voltada para a celebração, como o próprio Canto 8 – com a combinação de cantos, danças e jogos – nos mostra bem. Podemos dizer, assim, que Homero elabora aí mais uma vez a visão de uma existência ideal, não beligerante e convival e que de certa forma vem sintetizada pelo verbo ‘brincar’ (paízo), empregado por Alcínoo no final de seu discurso (paísate, verso 251). Considerações finais Finalmente, na representação desse povo está presente ainda uma excelência política com cores claramente utópicas. Logo de saída, chama-nos a atenção a figura da rainha Arete, com poderes que parecem mais indicar uma estrutura matriarcal. Acta Scientiarum. Language and Culture 9 Como sabemos, Nausícaa diz a Odisseu que a acolhida dele depende da vontade da mãe, a quem o herói deve se dirigir primeiro ao chegar ao palácio: [...] Aí, contra a mesma coluna, está o trono de meu pai, onde se senta como um imortal a beber seu vinho. Passa apenas por ele; atira-te antes aos joelhos da minha mãe, para os abraçares, para que vejas o dia do teu regresso, depressa regozijando-te, apesar de teres vindo de tão longe. Se ela te acolher com gentileza no coração, há esperança de que revejas a família e regresses à tua casa bem construída e à tua terra pátria. (Odisseia, VI, 308-315). No Canto 7, é a vez de Atena, disfarçada, dizer o seguinte, repetindo, nos três versos finais, as palavras de Nausícaa: [...] Arete. Foi ela que Alcínoo escolheu como esposa; e honrou-a, como poucas mulheres na terra são honradas, todas as que em suas casas estão sob a alçada dos maridos. Ela é, e sempre foi, honrada além do que estava destinado, pelos queridos filhos, pelo próprio Alcínoo e pelo povo: eles contemplam a rainha como se fosse uma deusa, e como tal a cumprimentam quando atravessa a cidade. Pois a ela não falta de modo algum entendimento: dirime contendas, mesmo entre homens desavindos. Se ela te acolher com gentileza no coração, há esperança de que revejas a família e regresses à tua casa bem construída e à tua terra pátria. (Odisseia, VII, 66-77). Essa rainha que ‘atravessa a cidade’ e tem poder de arbítrio entre os homens não se ajusta à figura feminina tipicamente grega, mas seria apressado concluirmos que há, aí, uma estrutura política diversa. Se atentarmos para essa e outras passagens – e para o modo como Homero nos apresenta a acolhida de Odisseu na Esquéria –, veremos que o Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017 10 Malta poder claramente está nas mãos do rei, Alcínoo: ele não só ‘escolheu’ Arete como esposa, mas ela está ‘sob sua alçada’ (Saïd, 2011). Durante a recepção ao forasteiro, é ele que conduz as atividades, podendo, inclusive, se dirigir assim à mulher: [...] o transporte [de Odisseu] dirá respeito A todos, sobretudo a mim; pois meu é o poder nesta terra! (Odisseia, XI, 352-353). Além do mais já ouvimos, anteriormente, o narrador nos dizer que Nausícaa encontrou o pai a “[...] sair para a assembleia, onde se reuniria/ com os reis gloriosos, e para a qual o convocaram os feácios” (Odisseia, VI, 48-55). Esses reis descobrimos depois – são 12 e na realidade parecem ser apenas líderes locais, que devem se submeter ao poder maior de Alcínoo: Nesta terra são em número de doze os reis principais que reinam e dão ordens; eu próprio sou o décimo terceiro... (Odisseia, VIII, 390-391). Essa conformação (como uma liderança ao mesmo tempo fracionada e unificada sob o comando de uma figura principal) é, ao que tudo indica, a que encontramos em Ítaca, onde domina a mão masculina e o papel da mulher é secundário. Se assim for, como entender esse quadro, em que a rainha Arete recebe honras superiores e transita publicamente, com autoridade? Uma resposta possível estaria em justamente imaginar que Homero trabalha aqui, mais uma vez, com a visão ideal, segundo a qual a esposa deve se equiparar ao rei, não por vontade própria, mas porque o esposo a “[...] honra como poucas mulheres são honradas na terra”. Em outras palavras, o que temos aqui é o ‘igual modo de sentir’ (homophrosúne) de que Odisseu falou a Nausícaa no Canto 6 (Odisseia, VI, 181-185): por essa harmonia, a consorte acaba por ser uma espécie de reflexo da virtude política do homem (Bolmarcich, 2001) – e não podemos ignorar o fato de que, em grego, o nome Aréte certamente remetia a audiência à ideia de ‘excelência’, areté6. Nesse sentido, é interessante notar como, no Canto 19, o mendigo Odisseu assemelhará a fama adquirida por Penélope àquela de um rei justo: Mulher, não há homem mortal em toda a terra ilimitada 6 Etimologicamente, a associação não é possível, porque o primeiro ‘e’ de Aréte é longo, e não breve, como em areté. O nome Arete seria da mesma raiz de aráomai e significaria ‘por quem se fez rogo’ ou ‘a quem se fez rogo’ (em referência à súplica que lhe dirige Odisseu?). Acta Scientiarum. Language and Culture que te pudesse censurar. A tua fama chegou já ao vasto céu, à semelhança do rei ilibado que, temente aos deuses, reina sobre muitos homens valentes e promulga decisões justas: a terra escura dá trigo e cevada, as árvores ficam carregadas de fruta e os rebanhos estão sempre a parir crias; o mar proporciona muitos peixes em consequência do bom governo. Sob a sua alçada o povo prospera. (Odisseia, XIX, 107-114). Aqui também Penélope é alçada a uma posição ‘masculina’, de destaque, igualando-se ao próprio esposo, Odisseu – não por acaso, o herói usa aqui a expressão ‘a glória alcança o vasto céu’ (kléos ouranòn eurùn hikánei), a mesma que, com pequenas modificações, aplicara a si próprio no Canto 9 (kléos ouranòn híkei, verso 20). E, no Canto 24, a ênfase dada por Agamenon à excelência, areté, de Penélope (versos 193 e 197), fará dela uma rival do próprio marido, o que pode ser entendido como mais um sinal positivo da ‘sintonia’ entre ambos (Doherty, 1992). Portanto, a situação política especial dos feácios – com uma rainha equiparável ao rei e uma prodigalidade da natureza (vista no pomar de Alcínoo) a refletir a condução justa da comunidade – parece ser a concretização daquilo que, no âmbito ‘real’, corresponde a um ideal a ser constantemente buscado: não um governo feminino, mas sim um governo masculino que, ao mostrar excelência, cobre também de honras a rainha, possibilitando que esta demonstre sua virtude e capacidade de pensamento. Também aqui os feácios contrastam com os seus antigos vizinhos, os Ciclopes, e a idealização antecipa a ordem que deve ser imposta em Ítaca. Referências Bolmarcich, S. (2001). Homophrosúne in the Odyssey. Classical Philology, 96(3), 205-213. Doherty, L. (1992). Gender and internal audiences in the Odyssey. The American Journal of Philology, 113(2), 161177. Dougherty, C. (2001). The raft of Odysseus: the ethnographic imagination of Homer’s Odyssey. Oxford, UK, Oxford University Press. Garvie, A. (1994). 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Maringá, v. 39, n. 1, p. 1-11, Jan.-Mar., 2017